domingo, 27 de junho de 2021

França: a greve dos eleitores

Os tempos não estão fáceis para a política e para os partidos. A saúde das democracias europeias não é invejável. A primeira volta das eleições regionais francesas de domingo fez soar o alarme: 66,7% dos inscritos não compareceram nas urnas e a cena política aparece ainda mais fragmentada que antes. Estes são os fenómenos de fundo. Por fim, um relativo avanço da direita e um enfraquecimento de Emmanuel Macron e de Marine Le Pen suscitam novas incógnitas para as eleições presidenciais de Abril de 2022. Mas a própria análise destes efeitos é posta em causa pelo nível da abstenção.
A abstenção, uma perfeita greve dos eleitores, começa por se dever à desvalorização de uma eleição que devia rodar em torno de interesses regionais, mas que foi marcada por uma forte polarização política.
Dominique Reynié, director do think thank Fondapol, considera que “a campanha foi esmagada por temas nacionais e uma extrema politização”. Alguns evocaram a possível influência da pandemia, que teria acentuado a indiferença dos cidadãos. Mas, responde Reynié, “a abstenção de domingo inscreve-se numa série”. Na segunda volta das eleições legislativas de 2017, houve um recorde de 57,3% de abstenções, enquanto a mesma taxa nas presidenciais desse ano foi de apenas 25,4. Outro máximo foi atingido nas regionais de 2020 – 58,4. Olhando, num horizonte temporal mais largo e sempre no terreno das regionais, passámos de uma abstenção de 22% em 1986, para os 66,7 de 2021.
“A ‘des-institucionalização’ da vida política é um temível desafio para a nossa democracia”, sublinha Reynié. “Marca o advento de uma forma anómica da política (…) e a ascensão do peso do espaço público digital.” E deixa o campo livre à contestação por minorias activas. “Esta greve às urnas é grave”, escreve o Monde em editorial. “A abstenção é uma fábrica de contestação.”

Canibalização
Gérard Grunberg, do CNRS, atribui a enormidade da abstenção à “canibalização pela eleição presidencial das outras consultas eleitorais e à desestruturação do sistema partidário”. Por isso esta abstenção não deverá repetir-se em Abril de 2022. “Durante a V República, a eleição presidencial sempre foi a eleição rainha. Com a passagem do tempo tornou-se na única.” As próprias legislativas têm vindo a ser desvalorizadas.
A desestruturação do sistema partidário começou com o declínio da clivagem esquerda-direita no início do século e foi consumada nas presidenciais e nas legislativas de 2917, argumenta Grunberg. O Partido Socialista quase se evaporou. A direita clássica falhou a segunda volta das presidenciais, em benefício da nova polarização Macron-Le Pen. “Esta desestruturação do sistema não desembocou numa recomposição, privando os eleitores de referências claras para se orientarem no campo político.” O que, uma vez mais, favorece a abstenção.
A desorientação é patente entre os antigos líderes socialistas. Na Île-de-France (região parisiense), Lionel Jospin e François Hollande apelam ao voto em Julien Baylou, candidato ecologista apoiado pela esquerda, enquanto Manuel Valls e Jean-Paul Huchon, ex-presidente socialista da região, declaram votar na candidata de direita, Valérie Pécresse, que rompeu com Os Republicanos e lidera a região desde 2015.
O “estilhaçamento” do sistema partidário e o declínio das referências ideológicas tornam as previsões políticas cada vez mais aleatórias. Em Março houve um alarme. O Libération anunciou o fim da “frente republicana”, porque quase metade dos eleitores de esquerda declaravam recusar-se a escolher entre Macron e Le Pen na segunda volta das presidenciais: “Nem Macron nem Le Pen”, era o slogan.
Os resultados do passado domingo voltam a baralhar as contas. Segundo o semanário L’Obs, põem em dúvida a certeza de que a segunda volta de 2022 irá necessariamente ser disputada entre Macron e Le Pen.
Certo é que o resultado das presidenciais vai ser ditado pelos 30 milhões de abstencionistas que, em Abril, não deixarão de acorrer às urnas.

Os duelos de domingo
Quatro forças disputam domingo a segunda volta das regionais. A direita, relativamente unida, a esquerda (ora dividida ou unida), A República em Marcha (LREM), de Macron, e a União Nacional, de Marine Le Pen. Acontece que a maioria dos acordos de transferência de votos falhou. Assim, em vez de duelos ou das habituais competições triangulares, dominam as competições quadrangulares. Em muitos casos, os candidatos não se retiram em nome da clareza ou das incompatibilidades, o que se vai reflectir em baixas votações dos vencedores, o que se arrisca a enfraquecer a legitimidade dos presidentes das regiões.
Os partidos de Macron (que não se envolveu na campanha) e de Le Pen foram os mais penalizados na primeira volta. Sofrem os efeitos da deficiente implantação regional. Resta saber se será apenas isso. Le Pen, que recuou nove pontos em relação a 2015, “está em pânico”, diz a imprensa, temendo o impacto sobre a presidencial, onde a direita clássica lhe vai disputar a primazia.
Sylvain Courage, chefe de redacção do L’Obs, sublinha o engano das sondagens e pergunta se poderemos confiar nos estudos de opinião que colocam Le Pen à frente na primeira volta das presidenciais. “Outrora subestimado nas sondagens de intenções de voto, estará agora sobrevalorizado o sufrágio lepenista?”
Para “salvar os móveis” Le Pen precisa de conquistar uma região, a Paca (Provença-Alpes-Côte d’Azur), onde o seu aliado Thierry Mariani ficou em primeiro lugar mas é ameaçado pelo candidato do LREM, Renaud Muselier, apoiado por Os Republicanos e beneficiando da desistência dos ecologistas. As sondagens apontam para um resultado 50-50… Se o duelo da Île-de-France ainda assume a forma de confronto esquerda-direita, o da Paca significa uma barragem anti-Le Pen.
A direita tradicional foi quem melhor resistiu à abstenção. Estas regionais servirão também para aferir a força relativa dos seus três potenciais candidatos às presidenciais: Laurent Wauquiez, ex-líder de Os Republicanos, Xavier Bertrand e Valérie Pécresse, que abandonaram o partido após a eleição de Wauquiez que, entretanto, acabou por se demitir. Como vai a direita designar um candidato, agora que desistiu de fazer primárias? Para lá do resto, os três potenciais aspirantes ao Eliseu representam linhas políticas divergentes.
Outra incógnita: vão os ecologistas dirigir alguma região? Quanto à esquerda, as perspectivas não são brilhantes. Estas interrogações são, de certa forma, a “espuma das regionais”. O principal é aquilo a que alguns chamaram “um desastre cívico” ou “um cisma entre a classe política e os franceses.” Outra questão, com reflexo em 2022, é averiguar se o retrocesso da extrema-direita foi um acidente ou é uma tendência de fundo.»

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