Fonte: Wilder |
Neste seu quinquagésimo ano de vida, a Peneda-Gerês vive momentos decisivos de vária ordem. Se não libertarmos parte do território para a vida selvagem, se a pressão humana não for regulada e controlada, se as alterações climáticas não forem mitigadas através de uma urgente recuperação do coberto vegetal natural, o futuro deste mundo singular será cada vez mais sombrio.
O mundo admirável que mais uma vez é evocado nestas crónicas é um território de setecentos quilómetros quadrados que abrange não apenas o mítico Gerês mas também as serras da Peneda, do Soajo e a Amarela, os planaltos de Castro Laboreiro e da Mourela e que há cinquenta anos é o único parque nacional português.
Espaço montanhoso, com alguma amplitude altitudinal, de orografia complexa, está sujeito à interação de três influências climáticas. A continental, a atlântica e a mediterrânica. A mistura de inúmeros factores em que sobressaem precisamente o relevo, a ligação ao interior da península e a proximidade do oceano atlântico e da bacia mediterrânica, geram microclimas que exponenciam a grande diversidade de tipos de habitat, de associações vegetais, de espécies de fauna e de flora.
Na Peneda-Gerês existem meia dúzia de tipos de vegetação natural, a mais expressiva das quais são as cerca de duas dezenas de formações florestais. Os carvalhais destacam-se pela predominância e pela variedade das suas composições. São sistemas complexos. Um carvalhal não é uma monocultura de carvalhos, como um sobreiral não é apenas um conjunto de sobreiros. As árvores são o elemento mais visível e não devem viver isoladas nem ser dissociadas de toda a vida que sob elas progride, quando devidamente associadas.
Na Peneda-Gerês exigem-se manchas boscosas maduras, não meras arborizações ou arvoredo regenerado de incêndios cíclicos. E quando falamos da importância do arvoredo, não podemos esquecer o papel que ele continua a cumprir mesmo depois de sucumbir ao peso da idade. Sem manta morta, sem troncos a decompor-se no solo, não podemos falar de carvalhais. A maior mancha no Parque Nacional é a Mata de Albergaria que, numa situação ideal, deveria até ser expurgada aqui e ali de algumas intromissões estranhas do passado. Mas outras prioridades se impõem no território. Esta mancha referencial tem de ser replicada, unida a outras igualmente importantes que se encontram extremamente debilitadas.
Abordar o arvoredo da Peneda-Gerês impõe referir os vidoais de altitude, as únicas teixeiras (bosquetes de teixo) de Portugal, os azevinhais centenários, as galerias ripícolas nos afluentes dos cursos de água maiores.
Dependentes dos bosques, crescem as herbáceas próprias de ambientes húmidos e sombrios. Os matos, muito propagados pelo fogo, cobrem a maior parte do território. Os prados são de extrema importância e no seio da vegetação rupícola que prospera imersa no fraguedo granítico, encontram-se plantas raras que o fogo não alcança. Finalmente, são valiosas as comunidades de plantas associadas à água que apenas sobrevivem nos complexos hidroturfosos. As turfeiras de altitude são um tipo de habitat precioso e particularmente ameaçado, também pelas alterações climáticas.
A flora do Parque Nacional é enorme. Compõem-na trezentas plantas briófitas e mais de setecentas vasculares que incluem uma centena de endemismos ibéricos, sessenta da região noroeste. E a Peneda-Gerês é, em Portugal, o local de ocorrência quase exclusiva de cerca de uma dúzia de espécies florísticas.
A fauna não fica atrás. Cerca de 230 espécies de vertebrados, 200 com estatutos de proteção (convenções e directivas). Entre os mamíferos sobressai a cabra, o ícone maior e um exclusivo nacional. Mas outras preciosidades merecem destaque como a toupeira-d´água, a marta e 20 espécies de morcegos. Nos répteis e anfíbios o Parque Nacional também se impõe com as duas espécies de víboras que ocorrem em Portugal, a salamandra-lusitânica, a rã-ibérica e o tritão-de-ventre-laranja, à cabeça.
Maior ainda é o mundo dos invertebrados. Entre as cerca de 1.200 espécies identificadas, saltam – literalmente – à vista, as borboletas e as libélulas.Foto: Miguel Dantas da Gama
Neste seu quinquagésimo ano de vida a Peneda-Gerês vive momentos decisivos de vária ordem. Se não libertarmos parte do território para a vida selvagem, se a pressão humana não for regulada e controlada, se as alterações climáticas não forem mitigadas através de uma urgente recuperação do coberto vegetal natural, o futuro deste mundo singular será cada vez mais sombrio. As características que diferenciam positivamente o território esbater-se-ão, as suas especificidades ficarão mais pobres, a biodiversidade continuará a ser aniquilada.
Há problemas prementes a resolver. O peso da monocultura de pinheiro-bravo continua excessivo, grandes manchas de plantas infestantes em áreas mais ou menos definidas, comprometem seriamente o futuro.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês é, não me canso de o dizer, um território sem paralelo em Portugal, onde projectos ambiciosos de preservação da natureza ainda fazem sentido se o ser humano não continuar a exigir tudo para si, tudo moldado para sua conveniência. Se as espécies vegetais e animais motivam muitas vezes ações específicas em sua defesa, o que se impõe empreender neste mundo admirável é, mais do que nunca, uma intervenção que não perca de vista todo o espaço físico que lhe deu nome. Um parque nacional deve ensinar-nos o que é a natureza, um sistema complexo, dinâmico, composto por seres vivos, pelos elementos que os permitem, como a água e o ar e pelos espaços que os suportam.
O Parque Nacional é, antes de mais, um projecto de conservação da natureza e da vida selvagem. E porque cinquenta anos não bastaram para o confirmar, o último capitulo desta série de sete crónicas dedicadas ao seu quinquagésimo aniversário será, em cima do dia festivo que se aproxima, uma prosa diferente.
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