Pasi Sahlberg já liderou reformas no ensino de vários países. O seu livro "Lições da Finlândia 2.0: O que o mundo pode aprender com a mudança educacional na Finlândia" ganhou o prémio Grawemeyer de 2013 por ser uma ideia que tem "potencial para mudar o mundo". Em entrevista à TSF, o autor finlandês explica o que pode mudar na educação depois da Covid-19.
A pandemia veio demonstrar como o sistema de ensino está obsoleto?
Acredito que a atual pandemia, que perturbou tantos aspetos das nossas vidas, está a ampliar desafios e, especialmente, as desigualdades que já existiam antes do início do surgimento da Covid-19. Se a pandemia está a provar alguma coisa é as fragilidades das nossas sociedades e sistemas políticos, e isso mostra-nos que temos de estar preparados para enfrentar choques externos fortes como este.
Mas, na maioria dos países, na verdade, a pandemia provou o quão essenciais são os professores e diretores e como a falta de investimentos por parte dos governos enfraqueceu a capacidade das escolas para apoiar adequadamente a aprendizagem e o bem-estar das crianças.
Modelos como o finlandês, em que a flexibilidade é a única regra inflexível, podem ser os primeiros a adaptar-se e a melhor responder à crise?
A pandemia atingiu o sistema educacional finlandês da mesma forma que assoberbou a maioria dos outros na Europa e em todo o mundo. O sistema educacional da Finlândia é conhecido por ter mais flexibilidade, autonomia local e profissionalismo do que a maior parte dos restantes. Isso significa que as autoridades e toda a sociedade confiam no julgamento dos professores, também em situações incomuns, como o encerramento de escolas, que aconteceu entre março e abril.
Os professores são considerados educadores altamente profissionais e, portanto, eles tiveram muita liberdade para decidir como a aprendizagem à distância poderia ser organizada de forma a potenciar ao máximo o bem-estar das crianças e a aprendizagem em casa.
Outro aspeto importante do modelo finlandês é que as escolas são vistas como parte de uma rede maior de serviços sociais para crianças e pais e, por isso, a maioria das escolas adota como objetivo principal a saúde das crianças, não apenas a educação.
As escolas que já não adotavam, por sistema, horários e aulas rígidas podem estar mais preparadas para lidar com o desafio que a pandemia impõe?
Absolutamente. Flexibilidade e criatividade são os fatores críticos de sucesso nos sistemas educacionais. Por exemplo, os modelos de ensino que são pensados para que haja padrões de aprendizagem anuais e testes padronizados para medir como esses padrões são alcançados pelos alunos tiveram muito mais dificuldade para se ajustar à nova situação. Em países como a Finlândia, onde não existem tais padrões ou testes fixos, as escolas têm tido muito mais espaço para descobrir soluções mais criativas e inovadoras para reorganizar o ensino e a aprendizagem. A maioria das escolas em todo o mundo adota a conformidade, em vez de flexibilidade e criatividade, o que muitas vezes as impede de pensar em outras alternativas além das que vêm das autoridades acima.
Mas concorda que este é o momento mais desafiante de sempre para o ensino e para os educadores de todo o mundo?
Esta é a maior experiência social em educação de todos os tempos. Não apenas pelo facto de mais de 1,6 mil milhões de crianças e milhões de escolas terem feito parte dessa experiência, mas também pela profundidade da mudança no ensino que é absolutamente única: quando a escola tradicional foi interrompida, todo o processo de ensino e aprendizagem teve de ser completamente reorganizado. Portanto, este é provavelmente o momento mais desafiante da história da educação formal.
A tecnologia pode determinar a reinvenção do sistema educativo neste ponto de clivagem?
A tecnologia desempenhou um papel de destaque na solução durante esta experiência. É importante observar que, embora os computadores e as conexões de Internet fossem bastante comuns nas escolas antes da pandemia, apenas cerca de dois terços dos diretores nos países da OCDE disseram ter nas suas escolas instalações tecnológicas adequadas e pessoas treinadas para integrar tecnologias digitais como parte do ensino e da aprendizagem.
Não tenho a certeza de que a tecnologia acabará por ser a única coisa que nos ajudará a reinventar o sistema educacional, mas certamente auxiliará a encontrar soluções mais eficazes e úteis. Acho que o que impulsionará a transformação da educação em última análise é o nosso entendimento mais profundo da natureza humana e de como a educação escolar pode ajudar todas as crianças a realizarem os seus talentos e paixões. Isso exigirá, acima de tudo, relações entre humanos. A tecnologia terá um papel secundário.
A pandemia pode distanciar as pessoas, já o sabemos. É possível que esteja também a aumentar o hiato entre professores e estudantes?
Acho que não. O que a maioria dos alunos sentiu ter perdido durante o encerramento das escolas foi o contacto com os seus amigos e professores. Ouvi o mesmo de muitos professores: eles sentiam a falta dos seus alunos.
Ao mesmo tempo, muitos pais perceberam como é difícil ensinar os próprios filhos, ou mesmo entender o que eles deveriam fazer para aprender em casa, o que levou, de acordo com alguns estudos iniciais, a uma maior valorização da profissão docente.
E os professores trabalham mais do que antes. Acredito que todos esses aspetos combinados estão a aproximar alunos e professores.
Uma coisa a que ainda vamos assistir é à ampla gama de problemas na saúde e bem-estar mental das crianças causados pela pandemia e pelas suas consequências económicas e sociais nas famílias. É aqui que os professores se revelarão "trabalhadores essenciais" para assegurar que os nossos filhos sabem lidar com esses problemas nas escolas.
Além do conhecimento direto que fornece, a escola também assegura que as crianças se relacionam com os outros, o que pode ser uma importante ferramenta para o crescimento. Receia que os pais, com medo de que os filhos contraiam a doença, os privem desse regresso ao ambiente escolar?
Acho que as crianças aprendem com ou sem escola, com ou sem pais. A maioria das crianças aprendeu muito, tanto em conhecimentos quanto em habilidades, durante esta pandemia, mas nós, adultos, nem sempre percebemos isso. Muitos pais e políticos estão muito mais preocupados com o que as crianças perderam enquanto não foram à escola - durante semanas ou meses.
Os adultos perguntam-se como essa interrupção do ensino presencial pode afetar os testes ou notas dos mais novos. Muito raramente perguntamos o que as crianças realmente aprenderam durante esta crise.
E o que será que aprenderam?
Tenho dois filhos em idade escolar e eles aprenderam muito em casa connosco. Não necessariamente os mesmos conhecimentos e competências que teriam adquirido na escola, mas eles cresceram muito no sentido de compreender como o nosso mundo e as nossas vidas são realmente frágeis.
Aprenderam muito mais sobre a importância do amor, do carinho, empatia e brincadeira nas nossas vidas. E eu aprendi muito com eles sobre mim. Essas são lições muito importantes para eles e para mim. Já ouvi dezenas de histórias semelhantes de outros pais e professores também.
Na Finlândia, numa pesquisa realizada com pais durante a aprendizagem e o trabalho em casa, três em cada quatro mães (e alguns pais) disseram que estão mais felizes nas suas vidas agora do que antes do início da crise, exatamente pelas mesmas razões.
Há, sem dúvida, histórias tristes sobre crianças que sofrem por problemas que acontecem na família, e todos esses casos são alarmantes. Mas é importante que os pais entendam como os seus filhos vivem a pandemia, que conversem com eles sobre isso, que ensinem o essencial sobre o vírus e a morte e que deem aos filhos tempo para aproveitarem momentos juntos. Tenho a certeza de que entendemos melhor uma coisa do que antes da pandemia: bem-estar, saúde e felicidade são o que há de mais fundamental na vida, não são as notas dos testes ou as coisas que vamos poder comprar.
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