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A estratégia inicial do governo do Reino Unido para lidar com a pandemia de coronavírus foi radicalmente diferente da de outros países. Pelo menos nos primeiros tempos, enquanto os países europeus e a China adotaram medidas de isolamento, de quarentena, de limitação de movimentos, medidas de contenção mais ou menos radicais, a atitude do governo de Boris Johnson foi a de desvalorizar o impacto deste vírus.
Esta reação inglesa não é mais uma bizarria de um excêntrico como podemos julgar ao ver Boris Johnson nas televisões a vender as maravilhas do Brexit. É fruto de uma ideologia, apresentada como tendo uma base científica. A utilização da ciência como justificativo ideológico para medidas de controlo da sociedade tem antecedentes que se perdem nos tempos — é o que ainda fazem os feiticeiros dos povos ditos primitivos com unguentos e fumos de ervas — e o mais conhecido e próximo terá sido o programa de eliminação de doentes mentais do nazismo.
É evidente que Boris Johnson não é Hitler, nem a sociedade inglesa atual é a alemã do nazismo (nunca foi), mas o sistema de produção de riqueza das duas sociedades assenta em princípios comuns e por isso quer a Inglaterra quer a Alemanha estiveram juntas na “fundação” do colonialismo (Conferência de Berlim), que é a “madre de todas las cosas” que acontecem e aconteceram no “nosso mundo” de combustão capitalista. Divergiram nos anos 70, quando a Alemanha reassumiu o seu papel de locomotiva industrial e a Inglaterra se especializou como centro comercial e financeiro, com um complemento de atividade turística. A partir desta opção, a Inglaterra pós-industrial e pós-colonial deixou de ter necessidade de mão-de-obra fabril e passou a depender dos negócios e serviços, com a correspondente exigência da mobilidade e de manter abertas as portas dos estabelecimentos.
A teoria da “imunidade de grupo” é normalmente defendida por epidemiologistas para falar dos benefícios da aplicação de vacinas recebidos por pessoas que não as tomaram. Mas ainda não havia vacina para o coronavírus! A sua invocação foi mais uma mistificação para justificar a supremacia do mercado sobre as pessoas.
As estimativas previam que a “imunidade de grupo” contra a covid-19 no Reino Unido seria alcançada quando aproximadamente 60% da população fosse infetada pela doença, o que quer dizer cerca de 36 milhões de pessoas. O professor Willem van Schaik, da Universidade de Birmingham, citado pela BBC, estimou que ocorreriam possivelmente centenas de milhares de mortes.
Como justificar que o governo de “Sua Majestade” tivesse sido o único na Europa que seguiu a política de “deixar o vírus circular” em nome do mercado e que quem sobreviver verá (aproveitará) os resultados?
A teoria da imunidade de grupo para resolver uma epidemia adotada por Boris Johnson e a classe dominante inglesa radica no pressuposto ideológico de que a tecnologia moderna e a aplicação da ciência aos negócios aumentaram a tal ponto a produtividade que a “questão económica fundamental hoje é organizar compradores, e não estimular produtores”. É este o papel de croupier e de centro de seleção e calibragem de compradores que a Inglaterra assumiu. A bíblia neoliberal da Escola de Chicago foi declarada religião oficial no Reino Unido e nos EUA desde Margareth Tatcher e Donald Trump e promove, em termos simples, um programa de limpeza de produtos “descontinuados”, no caso seres humanos fora dos circuitos de consumo. Quem não compra é um excedente, um mono.
Para os neoliberais, adeptos da imunidade de grupo em termos sanitários, a questão é preservar os grupos sociais com poder de compra — porque a produção está garantida à partida com a automação e com a reposição rápida de trabalhadores descartáveis por estrangeiros ou jovens suburbanos, os “nim-nim”, disponíveis para atividades de baixa tecnologia, como parte da atividade ligada ao turismo, por exemplo, ou caixas de supermercado.
Os neoliberais no poder em Washington e em Londres, assumem que perder 40% da população até pode ser estimulante para o mercado, desde que esses sejam os que não compram, que sobrecarregam os serviços sociais e de saúde (a tal peste grisalha de que falava um deputado português desta escola). Para Margareth Tatcher e Reagan, como para Boris Johnson e Trump, o mercado (neste caso o mercado do vírus) agirá para regular os custos do produto, neste caso da vida. Mas esse é um pormenor. O importante é o mercado funcionar e é ele quem escolherá os sobreviventes, os que melhor se vendem e compram.
Esta atitude tem suportes ideológicos antigos. Entre 1932 e 1935 Bernard London, um rico corretor da bolsa de Nova Iorque, judeu, originário do Leste europeu, publicou nos Estados Unidos três ensaios onde defendia políticas que facilitassem a obsolescência planeada (Ending the Depression Through Planned Obsolescence (1932), The New Prosperity Through Planned Obsolescence: Permanent Employment, Wise Taxation and Equitable Distribution of Wealth (1934), and Rebuilding Prosperous Nations Through Planned Obsolescence (1935)).
Ficou conhecido como o autor do conceito de “obsolescência programada” (muito utilizado na indústria aeronáutica até ser substituído pela análise das condições — manutenção on condition).
London que era, curiosamente, considerado um progressista, viveu numa época em que os progressistas acreditavam serem infinitos os recursos do planeta e que estes se mantinham intactos e disponíveis para serem transformados em quantidades ilimitadas de produtos. Acreditava no mito do crescimento eterno. Deitar fora o que atingira o prazo de duração programado resolvia os problemas sociais do desemprego. Para London, a solução seria planear a obsolescência dos produtos, para induzir a necessidade de serem substituídos e assim acelerar a produção de novos equipamentos e bens, estimulando a economia. Uma versão da antiga “lei de Say”, de que tudo o que pode ser produzido pode ser consumido. Produza-se então muito, que muito será consumido e todos terão trabalho!
De acordo com London, o principal problema seria o reacionarismo “ultrarretencionista” (de adiamento de compra e de poupança) dos consumidores nos períodos de crise, durante os quais “as pessoas tendem a manter os seus carros, equipamentos, roupas por muito mais tempo do que apontariam as curvas estatísticas”. A solução de London seria “não só planear o que produzir, mas também planear a destruição (a saída do mercado) dos objetos obsoletos”. (O que podia incluir pessoas). Ele propunha tabelar a obsolescência dos bens de consumo no momento do seu fabrico, porque assim haveria sempre trabalho, uma vez que a procura contínua de produtos novos manteria a produção constante. Apostava na destruição dos artefactos materiais como motor do mundo. Um mundo sempre novo em folha.
O neoliberalismo assente nestes princípios e a resposta instintiva de Trump e de Boris Johnson à epidemia foi a de a considerar uma oportunidade para uma lucrativa operação de obsolescência (se programada, se fortuita é outra questão). Só quando se aperceberam do clamor da opinião pública e viram a popularidade ameaçada surgiram a manifestar a sua preocupação e a atribuir a responsabilidade a um hipotético inimigo — Trump refere sempre o “vírus chinês”. Política da mais demagógica, mas só os irredutíveis crentes esperam princípios destas personagens!
Tal como os grandes investidores exigem das empresas que controlam um prazo de vida pré-estabelecido a todos os produtos, que depois de vendidos e usados dentro do prazo de validade económica estariam comercialmente ‘mortos’ e seriam destruídos, assim também aconteceria com os seres humanos da “força de trabalho”, meras máquinas com data de abate.
Deixar a natureza realizar a sua função de eliminar os mais fracos é uma escolha ideológica, a que a teoria da imunidade de grupo apenas dá cobertura científica. A moral está fora destas análises. As classes dirigentes são natural e historicamente apoiantes de um cocktail de eugenismo (métodos para aperfeiçoamento da “raça” humana) e de malthusianismo (limitação da população para evitar problemas como a fome e a miséria).
A questão que se coloca agora é a de como construir aquilo que alguns designam como uma “sociedade convivial” nos escombros políticos, sociais e ideológicos deixados por esta epidemia de coronavírus e de neoliberalismo. A questão é, ainda, a de os cidadãos das sociedades de economias avançadas perceberem que ao colocarem no poder dirigentes como Johnson, Trump, para já não falar de Bolsonaro (Putin e Jinping surgem de outras circunstâncias) estão a colocar as raposas a tratar do galinheiro.
Até conseguirmos ganhar essa consciência e tirar conclusões, temos de viver reconhecendo que o pânico não contribui para aumentar as nossas possibilidades de sobrevivência. Devemos aproveitar este tempo começando a pensar como enfrentar o futuro com novas pandemias, com escassez de recursos, com catástrofes ambientais e com dirigentes políticos cada vez mais primários, interessados antes de tudo na sua sobrevivência e na do grupo, cada vez mais restrito dos que com eles sobreviverão.
A imagem que poderia acompanhar este texto seria dos anos 70, no telhado da embaixada dos EUA em Saigão, com os vietnamitas amigos dos americanos a tentarem desesperadamente agarrar-se ao último helicóptero que vai descolar e deixar para trás os desgraçados abandonados à sua sorte.
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