Daniel Deusdado, DN, 12 Julho 2019 |
Não por acaso um dos títulos mais belos e estranhos - Que farei quando tudo arde? - é de um escritor português, Lobo Antunes, e se o livro não é sobre a floresta, o contexto psicológico em que o título aparece tem muito do Portugal de final do século XX e anos seguintes, em que tudo começou literalmente a arder, de forma galopante, chegando-se ao ano de 2003 em que uma onda de calor impiedosa alastrou a morte pelas pessoas e natureza. Nesse ano arderam 225 mil hectares de floresta e dois anos depois um novo pico estatístico: 170 mil. Desde aí nada ficou igual. Ficamos ainda mais subjugados a esta realidade de um abandono da terra, da sua entrega à exploração mais fácil e selvagem, e à rendição coletiva de conforto em que "o país" representasse algo mais do que uma ideia, uma língua e um discurso social emanado a partir das cidades. Proveta e ruído. Critério editorial e opinião. Muito disto tem lideranças que vogam entre garagens e garagens, carros de ar condicionados e pisos alcatifados, a uma distância face ao mundo que só ligeiros sobressaltos de tragédias geram precários espantos. Exemplo: 2017, o novo recorde em todas as frentes - 250 mil hectares de floresta ardida e todas as vítimas civis que conhecemos, não apenas bombeiros (porque esses já eram apenas danos colaterais frutos do erro humano e falta de formação...).
A rendição às necessidades da economia/emprego é a maior falácia do nosso pequeno mundo. O que perdemos do ponto de vista agrícola, turístico e de vida em todo este território é incomensuravelmente maior do que uma fileira predadora da civilização portuguesa (as palavras têm de ser estas).
Portugal gasta valores próximos dos 240 milhões de euros do Orçamento de Estado para o combate a incêndios, mas este valor não reflete os milhões autárquicos mais os milhões da sociedade civil e não mensura o alvoroço inusitado num país "desenvolvido", alvoroço esse consequência dessa rendição a um território abandonado, predado por meia dúzia de grupos económicos da celulose que fizeram deste país a sua mina de ouro.
Não está em causa que existam plantações de eucaliptos em Portugal. Mas está tudo em causa quando a ganância fez de uma espécie não autóctone a maior colonizadora do território português, com consequências dramáticas, nos fogos, na diminuição da biodiversidade e no despovoamento a que estas duas coisas conjugadas com fogos e pobreza tornaram inexorável.
É por causa disto que se percebe que ninguém acredita na "terra", esse Portugal feito de terra, a fronteira mais antiga da Europa.
A fronteira é terra, rios, montanhas, e depois precariamente "nós", geração após geração, quase sempre sem memória. A fronteira não são estes portugueses que se esquecem do lugar que fez a nossa virtude, História e identidade ao longo de quase 900 anos. É de Afonso Henriques e dos seguintes que temos de falar porque conquistaram estes quinhões de terra para que os portugueses existissem e usufruíssem deles por gerações e gerações. E, no entanto, na ganância e no onirismo financeiro, destruímos rios e água potável com excesso de barragens, algumas em pleno século XXI, e em sequência ciclópica, erodimos cada vez mais o litoral sem as areias transportadas pelos rios. Lamentamos a seguir a "Caparica" ou o "Furadouro", como se o mar avançasse em fúria, esquecendo que fomos nós que deixamos de alimentar de areia aquelas zonas de embate.
E se destruímos os rios, esquecemos que comemos paisagem. Entramos no processo de osmose com os produtos que compramos em prateleiras iguais, produtos normalizados a baixo custo, baixo teor de quase tudo, embalagens diferentes para as mesmas coisas.
Restam-nos paisagens simplificadas de monoculturas e abandono de terras e consumidores simplificados.
Envergonhamo-nos então por gradualmente ser difícil reconhecer paisagens próprias de cada região, como se, por exemplo, a região Centro tivesse sido toda a vida aquela vergonha de milhares e milhares de hectares de eucaliptos contínuos, sempre em risco de arder.
Para a indústria da celulose e do papel esta dimensão colossal de horror natural e feiura ao olhar não conta. Não chega nem nunca chegará. Não lhes interessa, são danos colaterais. O negócio deles é outro. Gerirem muito melhor o que já têm e estragaram. Porém, precisam sempre mais, em quantidade e em barato, ignorando a miséria das terras depois dos despojos, a côdea aos proprietários e a barbárie de um país esvaziado de vida humana e natural, à exceção da área ocupada e silenciosa - o deserto de árvores.
Sim, temos de atacar o plástico nos oceanos, mas a solução não é substituí-lo por sacos de papel ou cartão, por mais que pareça bonito e ecológico e novo nos jornais de fim-de-semana. Aumentar o consumo de papel é, no caso português, legitimar e perpetuar o nosso fogo quotidiano, dia quente após dia quente, ceifando tudo, incluindo vidas humanas e milhões de unidades vegetais, pássaros, ruminantes, insetos, anfíbios e tudo mais.
Olhem para os topos das serras portuguesas. O que vêm senão nada? Já houve árvores. Arderam uma vez, duas, três. As árvores caem ou são cortadas depois dos fogos, a terra (o solo fértil) vai-se perdendo serra abaixo e só restam pedras. Pedras onde não nasce nada. Onde vai demorar séculos a que se crie de novo terra que segure árvores.
Tudo isto está a acontecer em 50 anos. A minha geração - a nossa geração de portugueses que decide hoje (pelo exercício do Poder ou pelo voto) - não sabe, não quer saber, ou ganha com isto e faz de conta. Nem a nossa tábua de salvação atual, o turismo, subsistirá se não encontrarmos uma vontade transcendente para mudar. Um país que mata pelo fogo não continuará a ser destino mundialmente eleito. É tão fácil cair em desgraça.
Mudar a nossa terra significa investir para alterar radicalmente este caminho. Como? A União Europeia tem de olhar para Portugal como um caso extremo de pobreza natural e dar-nos dinheiro e um programa estrutural para mudarmos a nossa natureza, para reencontrarmos o caminho da nossa história natural porque este pedaço de terra também faz parte da Europa. E os Governos - este e os seguintes - assumirem que o Ministério da Agricultura tem de sair da rotina canhestra da PAC-CEE, como se nada tivesse evoluído, e deixar de fazer de conta que não percebe o que está a acontecer. Mudar o território é preciso - é navegarmos em nós próprios, 500 anos depois.
"Mosaico". Palavra mágica. Um país com agricultura, pastoreio e espécies autóctones a compô-lo. Isto necessita de um investimento massivo para que substituamos os eucaliptos e as espécies invasoras por sobreiros, azinheiras, carvalhos, castanheiros, pinheiro manso e também muito subcoberto vegetal e prado, além de agricultura, pomares, vinha e silvicultura (a floresta pode promover a diversidade alimentar com frutos silvestres, frutos secos, cogumelos e espargos e muito, muito mais). Há que pagar aos novos guardadores de biodiversidade um rendimento justo que dê tempo para que os 30 anos de um sobreiro adulto sejam, então sim, um abono de família e não apenas dinheiro para se limpar as matas de forma a que arda menos uma natureza artificializada pelo esmagamento da monocultura.
É extraordinário ir descobrindo, quinhão após quinhão, como este Portugal se pode reinventar e resgatar terras férteis a este ciclo de pobreza. Há alguns dias fiz de bicicleta a ecovia da antiga linha de comboio Amarante-Celorico de Basto-Arco do Baúlhe. No meio de lugar nenhum, geometricamente definidos, apareciam enormes hectares de vinha onde antes só havia eucaliptos ou mato (vê-se isso pelos terrenos que fazem fronteiras com as novas culturas). Uma beleza colossal nas margens altas do Tâmega.
Tanto que se pode fazer nas nossas terras férteis: vinho, fruta, cortiça, bolota, castanhas ou nozes, enfim, aquilo de que se faz o nosso sabor, a nossa História, o nosso prazer. Trocado hoje realmente pelo quê?
Sim, os senhores das celuloses podem continuar os seus negócios até os terrenos morrerem de exaustão. Mas até lá, obriguem-nos ao cadastro público do arrendamento de terras, a geri-las como deve ser, a limpá-las e ao que está em redor, a pagarem por cobertos vegetais que "criem" solo quando abandonarem as terras não produtivas. E principalmente a pagar pelos incêndios onde eles acontecem: indemnizações às vítimas, e aos danos nas suas casas, além dos prejuízos gigantescos na imagem de um país sempre em chamas. Verão como o el Dorado em que vivem se atenua.
É inadmissível que este Portugal que arde seja um problema dos cidadãos ou dos contribuintes. É inadmissível que estas indústrias pretendam sempre, através do lobby, continuar a crescer, como fizeram através da "Legislação Cristas", em 2013, que potenciou uma maior liberalização destas plantações, com os resultados de crescimento de área que ainda estamos a verificar.
Um Governo corajoso faria um plano nacional para a floresta não baseado no combate ao fogo mas na reestruturação da floresta: paisagens complexas com variedade de espécies e culturas (mosaico) para que os incêndios não sejam a nossa fatalidade.
É preciso dinheiro? Claro, os pequenos proprietários têm de ser compensados por deixarem de viver dos fast-food arvícola e passarem para espécies de crescimento lento mas a prazo mais rentável e gerador de riqueza para todo o ecossistema.
Há que salvar Portugal como pensamos em salvar a Amazónia. Queremos muito salvar a Amazónia. Não sabemos, no entanto, que precisamos de salvar a nossa própria terra. Achamos que nada podemos, individualmente. Mas podemos. Só todos podemos. Tivesse o poder político vergonha da submissão a que se sujeitou durante décadas e, um dia, um Governo daria o primeiro passo, em nome de D. Afonso Henriques, e em nome dos nossos netos para reflorestar Portugal como deve ser, com bolsas de apoios aos novos agricultores, pastores, silvicultores que refundariam o nosso território até Espanha. Não é para a nossa vida, mas essa herança será bem recebida por quem chegar a Portugal-2143, mil anos de perseverança, e constatar que recebeu como património o mais maravilhoso dos países. Portugal é esta terra, não somos apenas nós.
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