«Quando era miúda, o tempo das férias “grandes” repartia-se por dois espaços contrastantes - o campo e a praia. Assim, chegado o Junho/Julho ia para casa dos avós, um lugar a cerca de 20 km de Coimbra, enfronhado numa serrania agreste que o Mondego serpenteava sem grande custo, enquanto aguardava, em ânsia, o Agosto/Setembro que me abria a visão à largueza do mar e me oferecia uma luminosa linha de horizonte em traçado geometricamente perfeito entre o céu e a terra. Confesso que o calor sufocante e espesso do campo com os seus cheiros de mato, mais os sons das cega-rega ou o coaxar das rãs, não me encantava.
Preferia mil vezes a contemplação fresca do oceano, num banho de azul que me enchia a alma de alegria, propiciando correrias e piruetas afoitas pelo areal fora sem o importúnio das advertências maternas. No entanto, anos mais tarde na Faculdade estudando Kant, foi a memória desses dias de campo que me veio à mente quando li o que lhe enchia a alma de admiração: o céu estrelado acima da sua cabeça e a lei moral em si. A casa dos meus avós tinha dois andares. No superior, uma varanda larga abria-se para a serrania e os campos defronte. Antes do 25 de Abril, a electricidade era quase só apanágio urbano. Na melhor das hipóteses, o campo queria-se ao abrigo do progresso, preservando a naturalidade dos seus elementos e dos seus estilos de vida, que proporcionariam a fruição da paisagem natural em harmoniosa relação com o homem.
Neste sentido, a demarcação contrastante do espaço urbano e do espaço rural permitiria a possibilidade de circulação entre mundos aparentemente opostos, num banho revigorante de atmosfera, humidade, cores e sons a uma alma citadina cansada da artificialidade do seu envolvente ou, inversamente, a incursão hipnótica e frenética do “homem silvestre” no espaço citadino, onde civilização equivalia a profusão de bens industriais e comerciais. Em suma, à noite, a luz da candeia tremeluzia dentro das casas e as ruas cobriam-se de um negro opaco, apenas cortado pela claridade do luar nos dias de fase crescente.
Nesses verões de calor abafado, as primeiras horas do escurecer passavam-se no fresco da varanda. Uma esteira e algumas almofadas no chão facultavam uma visão perpendicular ao céu estrelado sob o brilho prateado do luar. O fascínio que sobre mim exercia a imensidão profunda daquela abóbada cintilante não tem tradução discursiva. Lembro que me desligava progressivamente da minha concretude física e imergia naquela infinita grandeza feita de negro e milhares de minúsculos pontos de luz, num exercício de suspensão entre o cá e o lá que me dava um vivo sentimento de unidade cósmica.
A sublimidade dessa visão juntou-se ao maravilhamento ante a beleza cénica de paisagens naturais, campestres ou marítimas, que, nas deambulações infantis, foram despertando em mim a sensibilidade à natureza e abrindo-me a mente ao transcendente numa reverência feita de amor e respeito. Arrisco a dizer que tais experiências vibrantes de luz, cor e sentido, talvez tivessem feito mais pelo ser que sou do que as lições que fui colhendo ao longo da vida, formativas sem dúvida, mas sem a profundidade ontológica daquelas. Não foi por acaso ou por oportunidade que o nome de Kant apareceu nos primeiros parágrafos deste texto. O que o admirava e o enobrecia ecoou em idêntica correspondência de sentido em mim própria, tanto ontem como hoje.
Por isso, com a ideia de que a atracção sensível ao belo natural constitui um primeiro e fundamental movimento para o bem, cito as inspiradoras e intemporais palavras do filósofo de Königsberg: “Tomar interesse imediato pela beleza da Natureza é sempre sinal de boa alma; e, se este interesse é habitual, pelo menos indica uma disposição de ânimo favorável ao sentimento moral. (…) Podemos considerar como uma amabilidade que a natureza teve em relação a nós, o facto de ela ter distribuído com tanta abundância, para além do que é útil, ainda a beleza e o encanto e por isso a amamos, da mesma forma que a contemplamos com respeito por causa da sua imensidâo e nos sentimos enobrecidos nesta contemplação”[1]. Maria José Varandas
[1] - Crítica del Juicio, 1984 [CJ], § 42
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