Urbes menos densas e com mais espaços públicos, vivências mais restritas e amedrontadas, menos turismo e mais policiamento? Que mudança haverá nas cidades pós-Covid-19? Algumas possibilidades, em tempos de incerteza, pela voz de académicos de Geografia, História, Sociologia e Filosofia
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São perguntas de um milhão de euros.” Virgílio Borges Pereira, sociólogo da Universidade do Porto, inicia a conversa com um preâmbulo de incerteza, confrontado com questões em catadupa sobre o futuro das grandes cidades e dos seus moradores depois de o surto do novo coronavírus esmorecer. Em tempos inéditos, podem seguir-se “pistas” e falar de “possibilidades”, mas sem esquecer os infindos “ses” em cima da mesa: o futuro dependerá, entre muitas outras coisas, da duração da pandemia, da sua mortalidade, da união das comunidades, das descobertas científicas, da resposta do Estado e da União Europeia. A fronteira entre tempos, essa, talvez não se apague. Pelo menos não a curto prazo. “Isto vai deixar marcas, quer do ponto de vista de organização humana, quer do ponto de vista de organização do espaço”, acredita o geógrafo Jorge Ricardo Pinto.
Se as cidades são as pessoas, “em comunidade e em proximidade física e sentimental”, aponta o académico, então são as urbes quem está “em risco” quando a ordem é para manter distanciamento. Não um risco de extinção, mas de mudança. O futuro, arroga Rio Fernandes, não deverá constituir-se sem territórios urbanos – geografia onde habita mais de metade da humanidade. “Mas todas as grandes crises foram momentos de repensar as cidades e de se fazerem cidades diferentes. Creio que será de novo assim”, opina o geógrafo.
“Os problemas de saúde pública fizeram repensar a cidade porque as doenças atingiam tanto os pobres como os ricos.” A afirmação é de Richard Sennett, no livro Construir e Habitar, e aponta a origem do urbanismo moderno em Barcelona. Mas podia aplicar-se a Portugal. Rio Fernandes recorda como a peste bubónica, em 1899, conduziu o Porto a uma “política de habitação e de erradicação das ilhas, à “abertura dos mercados do Anjo e do Bolhão, ao encanamento de ribeiros, ao fim de boa parte das vendas nas ruas e à abertura de artérias mais largas”. O “movimento higienista” teve, pois, “intenções sociais”, mas também uma enorme preocupação com a “saúde pública global e colectiva”.
FotoNUNO FERREIRA SANTOS
Mas, nas cidades do século XXI, haverá tanto para mudar? As “possibilidades” – palavra reforçada uma e outra vez pelo geógrafo Rio Fernandes – são várias. Esta crise poderá, desde logo, “inverter um pouco a lógica de alta densidade em favor das médias e até baixas”, aponta o docente da Universidade do Porto. E isto significará, ao mesmo tempo, uma “maior valorização do espaço verde” e um reforço da “presença rural” nas urbes.
Solidariedade ou desconfiança?
O presente, sublinha Virgílio Borges Pereira, decorre já com uma maior “vinculação ao espaço de residência”, uma realidade que ia esmorecendo, apesar de, já antes da pandemia, alguns movimentos colocarem em causa os actuais modelos de progresso, pedindo novas cidades e outras formas de vivência. “Ao confinar as pessoas ao espaço doméstico, esta crise está a obrigar à descoberta de quem vive ao nosso lado”, afirma o sociólogo. E esse “aguçar do engenho” perante o desconhecido, capaz de estreitar relações entre quem vivia próximo mas não se olhava, manter-se-á? “A minha expectativa é que possa ficar e não seja apenas um fenómeno passageiro”, deseja o sociólogo.
Essa solidariedade acrescida em tempos de pandemia é uma das questões fortes do debate filosófico do momento. Paula Cristina Pereira, professora no departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem visto com agrado essa multiplicação de fraternidade. Mas recorda o outro lado da moeda: “Face à insegurança, a um rosto escondido pela máscara, ao confinamento ou medo do contágio, houve uma radicalização do outro como estranho e como perigo”, aponta. E essa alteração pode configurar “um risco para as relações sociais, face ao estrangeiro ou migrante e levar ao reacender de questões sociais entre etnias, seja pelo racismo, xenofobia ou outras formas.”
FotoMANUEL ROBERTO
A quem planeia as cidades e pensa o seu urbanismo caberá a responsabilidade de contrariar temores e promover contactos. Palavra a Rio Fernandes: “Seria importante pensar, mais do que em soluções técnicas ou volume de construção, em unidades de vizinhança” – em que espaços verdes podem as pessoas encontrar-se, que equipamentos existem, quão largos são os passeios? “Valorizar as cidades cosmopolitas, mas ao mesmo tempo a cidade com aldeias dentro.” No fundo, explica, resgatar o pensamento de Ebenezer Howard, urbanista do movimento utópico, defensor da junção entre cidade e campo num só espaço: “a cidade-jardim”.
Face à insegurança, a um rosto escondido pela máscara, ao confinamento ou medo do contágio, houve uma radicalização do outro como estranho e como perigoPaula Cristina Pereira, docente de Filosofia na Universidade do Porto
Muitas das questões agora debatidas estavam já debaixo de holofotes, mas reavivam-se em tempos de pandemia. Uma delas, aponta Paula Cristina Pereira, é a do direito à cidade – a “afirmação da diferença e integração do todo social, o habitar com as dimensões de individualização, de socialização, de liberdade e efectiva participação” estão, de momento, em suspenso. E o que pode provocar essa interrupção? “Pode dar origem a sentimentos de insatisfação, porque temos de pensar como vamos viver de novo a cidade, como vamos gerir os muitos sentimentos de privação do direito à cidade. Não vai ser fácil gerir”, antecipa a investigadora.
Turismo: eis o problema a nu
Habituado a estudar situações de crise, Virgílio Borges Pereira lamenta o frequente esquecimento do passado. “Um dos nossos problemas enquanto sociedade é não sabermos colocar as questões em perspectiva.” Em momentos destes, “os problemas ficam expostos”, diz: “Ei-lo agora, o turismo.” A afirmação do sociólogo era já o seu pensamento no mundo pré-Covid-19: “É importante que as cidades sejam diversas e não dependam apenas de um sector”. A “prova” está entre nós. “De repente, até descobrimos que tínhamos uma indústria capaz de responder a alguns problemas. Era preciso chegar até aqui?”
FotoPAULO PIMENTA
Para Rio Fernandes, os “efeitos colaterais” dos “excessos” ficam agora a nu: “Houve algumas zonas de Lisboa e do Porto que se tornaram monofuncionais, zonas para dormidas turísticas, para comer e beber”. E agora, “desaparecidos os turistas e fechados os restaurantes”, lamenta, “está em perigo o próprio coração das cidades”.
Como se poderá reinventar esse turismo é uma das grandes incógnitas para o geógrafo Jorge Ricardo Pinto, docente no Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo. Por um lado, aponta, a valorização “do momento e da experiência”, empurrada pela “certeza de que tudo é incerto”, pode incentivar a viagem. Por outro, existe a “ameaça”: “A viagem como um perigo, a deslocação como um custo para o ambiente, já para não falar num ameaçador policiamento individual que esta pandemia está a permitir, passo a passo.”
A “hegemonia tecnológica”, já existente e agora acirrada, aponta Paula Cristina Pereira, pode ter uma palavra a dizer no problema levantado por Jorge Ricardo Pinto. Se as tecnologias podem ser “fantásticas” - e são hoje a ponte possível entre vidas confinadas a quatro paredes - elas também comportam “riscos muito claros para o exercício da cidadania”.
A pandemia pode “radicalizar” o desenho de cidade e pretender esboçar “safe cities, cada vez mais monitorizadas”, como já acontece em alguns países europeus e também na China e nos EUA. “Neste momento, em nome da segurança e saúde, e com a nossa autorização, todas as actividades podem ser vigiadas”, afirma. Num momento em que se espera “uma uniformização dos nossos comportamentos”, o “risco” de isso perdurar para lá da pandemia é real. “Será que a democracia se pode compadecer com isto durante muito tempo e pode dizer ‘desculpe por esta interrupção, voltamos dentro de momentos’?”
FotoADRIANO MIRANDA
Por agora, o futuro é, ainda mais, um lugar incerto. E nem olhar o passado nos pode dar grande conforto. O historiador José Manuel Sobral diz ser impossível, “à luz da pandemia de 1918”, estabelecer “paralelo” com 2020. Um século de diferença fundou um outro mundo com uma “sociedade de informação” forte – e só isso mudou tudo. Em 1918, aponta, o jornalismo era censurado, a maioria da população era iletrada, as pessoas estavam mais isoladas. “Se acontecia alguém estar a chorar em frente a um hospital, essa pessoa era literalmente invisível. Isso hoje não existe.”
O historiador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa sublinha a falácia possível na análise do Portugal no pós-pandemia em confronto com o país de há um século: era um território com feridas da gripe pneumónica, mas também com marcas “da agitação daqueles tempos”, num “cenário de guerra total” – e ninguém pode distinguir o que se deve a um e a outro factor.
José Manuel Sobral tem uma certeza: “Se alguma coisa ficou da pandemia [de 1918] é que ela foi esquecida. Lembramo-nos dela agora por causa deste vírus”, aponta um dos autores do livro cujo nome é revelador desta reflexão A Pandemia Esquecida: Olhares Comparados sobre a Pneumónica (1918-1919). Esse estudo sobre lembrança e esquecimento interessa-lhe particularmente: “Como é que certas coisas ficam na memória colectiva ou das disciplinas e outros acontecimentos tão traumáticos, como a epidemia de 1918, ficam apenas na memoria individual ou familiar?”
Campo, teletrabalho e capitalismo
O geógrafo Rio Fernandes acredita que algo ficará desta vez. Pelo menos durante uns bons anos. Os dias de confinamento forçado, antecipa, serão bússola em algumas opções futuras. “Na altura de escolher casa, nós e os nossos filhos vamos preferir lugares com jardins, avenidas com árvores, sítios com hortas.” Nessa lógica, “as cidades muito densas e especuladoras podem sofrer”, diz: “A curto prazo com a diminuição do turismo, a médio com a diminuição da procura dos locais.” Talvez, no futuro, “se esteja muito bem em Lousada, em São João da Madeira…”
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O teletrabalho, hoje em teste real, pode acelerar essa opção: se estar perto do local de trabalho não for fundamental, viver em cidades mais pequenas e afastadas dos maiores centros urbanos torna-se mais viável. A adaptação da economia será rápida, prevê Jorge Ricardo Pinto, e o teletrabalho “vai impor-se”, com o mercado a “agarrar nas melhores oportunidades para baixar custos e impor o modelo”. O combate à poluição, aos combustíveis fósseis, aos movimentos pendulares e à hora de ponta, benefícios para as cidades, pode ser ao mesmo tempo uma “máscara para a redução dos custos das grandes empresas”.
Paula Cristina Pereira apraz-se com a colaboração dos portugueses na mudança comportamentos em tempos de pandemia: cumprir distâncias de segurança, usar máscara, lavar as mãos. Mas lamenta a ausência de um outro debate: “Muito pouca gente fala dos verdadeiros comportamentos que podem mudar o nosso modo de vida e evitar outras situações destas”. Tal passaria, por exemplo, por “modos mais cooperativos e colaborativos de pensar, produzir e consumir”. Mas essa é uma conversa mais intrincada. Porquê? “Não é o vírus que coloca em causa o capitalismo, mas seria essa transformação do modo de vida que ameaçaria verdadeiramente o modelo capitalista como o conhecemos.”
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