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Em dezembro de 2015, após quatro anos de negociação, 195 países decidiram se unir para frear o aquecimento global. Eles assinaram o Acordo de Paris, em que se comprometeram a tomar medidas para conter o aumento da temperatura do planeta em até 2°C acima dos níveis pré-industriais. Cada nação definiu as próprias metas para atingir este objetivo. A União Europeia (UE) se prontificou a diminuir em 40% a contaminação da atmosfera com gás carbônico, enquanto o Brasil prometeu chegar a 43% de redução nas emissões de gases de efeito estufa até 2030. Para isso será preciso zerar o desmatamento ilegal e ainda recuperar 12 milhões de hectares de florestas já derrubadas.
Mas enquanto o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) ameaçou sair do Acordo de Paris e a Amazônia registrou em 2019 a maior taxa de desmatamento em dez anos, a Europa já começou a se mexer – tendo como uma das principais linhas de ação o mercado financeiro. “O setor financeiro tem um papel chave para atingir estes objetivos, já que grandes quantidades de capital privado terão de ser direcionados aos investimentos sustentáveis”, afirma o bloco europeu.
A certeza vem da compreensão, cada vez mais consensual, de que nenhum esforço será suficiente para conter as mudanças climáticas se os donos do dinheiro continuarem alimentando setores que emitem toneladas de CO2. É o caso das empresas de carne bovina que atuam na Amazônia e que são financiadas por grandes instituições europeias como Deutsche Bank, HSBC, Santander e Credit Suisse. Em 2018, a pecuária foi responsável por 19% das emissões de CO2 do Brasil. Se a conta incluir o desmatamento na Amazônia, onde dois terços das derrubadas são para abertura de pasto, o setor se torna responsável por até 45% da contaminação atmosférica nacional no período.
Para orientar os investidores na transição para uma economia de baixo carbono, a Comissão Europeia lançou, em março deste ano, o EU Taxonomy, um guia que classifica os setores econômicos segundo seu impacto ambiental e cria uma régua padrão para comparar a sustentabilidade de cada um. “Ao classificar as empresas, a taxonomia vai permitir que o investidor saiba o quanto aquele negócio está contribuindo para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas. É uma ferramenta sofisticada, que vai muito além do que qualquer outro país já fez. É absolutamente poderoso”, elogia Natalie Unterstell, administradora pública e diretora da Talanoa, organização que produz estudos e projetos para mitigação de riscos climáticos.
A partir de dezembro de 2021, as instituições financeiras e grandes corporações europeias terão que incluir esse indicador verde ao divulgarem onde estão investindo seus recursos. Desde 2018, já há obrigatoriedade para as empresas de informar nos relatórios anuais sua conduta em relação à proteção ambiental, responsabilidade social, diversidade de seus conselhos de administração, respeito aos direitos humanos e medidas anticorrupção.
Para o Brasil, o cerco europeu sobre quem desrespeita o meio ambiente pode ter consequências práticas: o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, debatido por mais de duas décadas e finalmente fechado em 2019, pode vir abaixo pela omissão do governo Bolsonaro no combate ao desmatamento. Neste tratado, há um capítulo inteiro dedicado ao desenvolvimento sustentável, que obriga os signatários a cumprirem o Acordo de Paris e os proíbe de enfraquecer seus níveis de proteção ambiental, revogar leis ambientais ou deixar de aplicá-las de forma reiterada. Um sinal de que o Brasil deveria levar a sério as advertências de autoridades europeias é um pacto semelhante firmado entre o bloco e o pequeno Vietnã: o texto só foi aprovado pela assembleia da UE depois que o governo vietnamita se comprometeu a fortalecer os direitos trabalhistas no país.
Do lado de cá do Oceano Atlântico, o compromisso com negócios e investimentos socioambientalmente corretos ainda é uma quimera. “O Brasil está a reboque do resto do mundo. Infelizmente não estamos criando regras aqui”, lamenta Unterstell, que antes de fundar a Talanoa, coordenou o mais ambicioso estudo de cenários e alternativas de adaptação à mudança climática no país – o Brasil 2040, lançado em 2015 pela presidência da República.
Desde 2014, empresas que operam na bolsa de valores brasileira são obrigadas a incluir informações ASG (compromissos ambientais, sociais e de governança) no formulário de referência que entregam anualmente à Comissão de Valores Mobiliários, e que auxilia os investidores nas suas tomadas de decisão. Mas na prática, os dados são vagos.
Em 2019, por exemplo, a JBS dedicou dois parágrafos em 650 páginas para informar que as mudanças climáticas podem “ter um efeito material
adverso sobre resultados operacionais, situação financeira e de liquidez”. Apesar disso, o documento não relaciona a atividade principal da empresa, que em 2017 tinha 32 frigoríficos na Amazônia, com o risco de desmatamento e suas consequências para o controle da temperatura do planeta. A única referência ao problema aparece no capítulo “ações judiciais”, quando dá notícia do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne, um acordo firmado com o Ministério Público Federal em que a empresa se compromete a não comprar gado de desmatamento ilegal. A empresa anota que “não há chance de perdas” financeiras em decorrência do TAC, embora o procurador da República Daniel Azeredo afirme que o expediente não tem sido suficiente para impedir que os grandes frigoríficos abatam animais provenientes de áreas desmatadas.
O Banco Central do Brasil (BC), que regulamenta o sistema financeiro nacional, também publicou resoluções que obrigam bancos e instituições financeiras a considerarem aspectos ambientais em suas operações. A mais antiga, de 2008, condiciona a concessão de empréstimos a fazendeiros na Amazônia à entrega de documentação que comprove a regularidade ambiental das propriedades.
Mas a norma não pegou. Segundo a assessoria de imprensa do BC, jamais uma instituição financeira foi sancionada por descumprir a resolução. A única vez que um banco foi responsabilizado no Brasil por financiar o desmatamento foi em 2016, quando o Ibama multou em R$ 47,5 milhões o Santander por financiar o plantio de grãos em área de proteção ambiental – terra sobre a qual vigorava um embargo, ignorado na hora de analisar o pedido de crédito. O Ministério Público Federal cobrou mais R$ 7,3 milhões do banco, a título de indenização por danos ambientais. O Santander recorreu e, três anos depois ainda não teve que pagar um tostão. Na lista do Ibama, há 19 bancos multados por irregularidades ambientais, mas o do Santander é o único caso de autuação por financiamento de produção em área embargada.
Além de exigir regularidade ambiental para quem solicitar crédito, em 2014 o Banco Central determinou que as instituições financeiras considerem os riscos socioambientais antes de decidir apostar suas fichas em um determinado investimento – o que foi reafirmado em 2017. Em 2018, a imposição passou a valer também para as aplicações financeiras de entidades fechadas de previdência complementar.
Mais uma vez, as regras parecem não funcionar bem. Segundo uma análise de ((o))eco com base em levantamento da Global Witness, os três frigoríficos que mais compram bois na Amazônia receberam 18 bilhões de dólares em investimentos entre 2013 e 2019. Oito bilhões de dólares vieram de instituições financeiras brasileiras, embora JBS, Marfrig e Minerva sejam apontadas pelo Imazon como a primeira, a quinta e a décima processadoras de carne do país com maior chance de promoverem o desmatamento.
“Todos os bancos que a gente identificou que financiam estas empresas têm políticas socioambientais, então, em teoria não poderiam investir em frigoríficos com exposição ao desmatamento”, assinala Chris Moye, investigador florestal e um dos autores do relatório da Global Witness, Money to Burn.
Estados Unidos freiam avanços
Mesmo na Europa, onde as regras mais rígidas estão sendo implantadas, os investidores seguem apostando suas fichas na indústria de carne brasileira. Um quarto do dinheiro estrangeiro que alimenta JBS, Marfrig e Minerva vem de países europeus.
Depois dos brasileiros, os norte-americanos são os que mais investem nos frigoríficos contaminados com desmatamento – uma dificuldade extra na transição nacional para uma economia de baixo carbono. O presidente norte-americano, Donald Trump, já iniciou o processo para que os EUA abandonem o Acordo de Paris e as diretrizes para investidores são cristalinas: administradores de fundos de aposentadoria, por exemplo, “não devem tratar os fatores ASG como economicamente relevantes” nas suas escolhas de investimento, e sim “colocar sempre em primeiro lugar os interesses econômicos”.
“Os Estados Unidos não estão assumindo posições tão duras quanto a Europa”, afirma o analista Cole Martin, da Fitch Solutions, empresa que faz análises de diversos setores da economia. “As empresas norte-americanas não estão sob grande pressão para aumentar suas credenciais de sustentabilidade ou sua transparência nesta área. As que estão fazendo isso, fazem por vontade própria”, complementa.
Unterstell, por sua vez, não é tão pessimista em relação aos norte-americanos. Para a diretora da Talanoa, as mudanças estão sendo cada vez mais conduzidas pelo próprio mercado financeiro, independente da inércia do governo Trump. “É menos uma questão de estado ou regulação e mais de postura de mercado. Desde 2013 o que se vê são os maiores players – como Bloomberg e BlackRock – trabalhando com riscos climáticos e dando muita atenção aos títulos verdes. São eles que estão criando os padrões e as regras”, conclui.
Autorregulação falha no mundo inteiro
A preocupação com a economia de um mundo superaquecido vem originando inúmeras iniciativas dentro do próprio mercado financeiro para estimular investimentos ambientalmente responsáveis, criadas sobretudo nas últimas duas décadas. O pioneiro dos defensores dos investimentos verdes foi o Carbon Disclosure Project, ou Projeto de Divulgação de Carbono, uma ONG fundada no ano 2000 que se tornou a mais completa base de dados ambientais autodeclarados do mundo.
A mais recente entre as iniciativas do mercado é a Task Force on Climate-Related Financial Disclosures (Grupo de Trabalho sobre Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima), criada em 2015 pelo Financial Stability Board, órgão que monitora o sistema financeiro de todo o planeta. São mais de mil empresas associadas, apenas 20 no Brasil e nenhuma no setor da carne. Despontam entre os signatários as companhias japonesas (265 participantes), país que tem seis empresas entre as financiadoras internacionais de JBS, Marfrig e Minerva, contribuindo com mais de meio bilhão de dólares para seus negócios.
O maior acordo deste tipo foi firmado em 2006, na bolsa de Nova Iorque, quando apareceu a iniciativa PRIs – sigla para “principles for responsible investment”, ou, em português, “princípios para o investimento responsável”. Seus mais de três mil signatários se comprometem a incorporar questões socioambientais e de governança nas suas decisões de investimento, embora entre eles haja financiadores dos frigoríficos que operam na Amazônia.
A BlackRock é um caso emblemático: em janeiro deste ano, o CEO da gestora de ativos, Larry Fink, anunciou a seus agentes, por carta, a decisão corporativa de “posicionar a sustentabilidade no coração da nossa estratégia de investimento”. Mas até o ano passado a BlackRock era uma das 15 maiores investidoras mundiais na cadeia da carne brasileira que opera na floresta. Entre 2013 e 2019 realizou 36 operações de compra de títulos de dívida e ações nos três frigoríficos, num valor total de 236 milhões de dólares.
Outro exemplo – desta vez brasileiro – é o Bradesco, banco que se orgulha de ostentar os selos de signatário do PRI, do TCFD, do CDP e de outros sete acordos voluntários. O que não impede que a instituição seja a segunda maior financiadora nacional dos frigoríficos que operam na Amazônia, segundo a análise feita pelo ((o))eco a partir dos dados da Global Witness.
No Brasil, 63 instituições são signatárias do PRI – e a lista não inclui nenhuma indústria de carne.
Por aqui, entidades ligadas ao mercado financeiro também têm buscado se conectar com o discurso dos bons propósitos e do investimento verde, mas na prática ainda há muitas incoerências. A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) criou uma categoria de fundos de investimento chamada “sustentabilidade e governança”, mas entre os 2.610 fundos de ações ativos no Brasil, apenas 21 são desse tipo – dos quais dois possuem ações de ao menos um dos três frigoríficos que mais atuam na Amazônia. Outros cinco destes fundos – que deveriam valorizar as boas práticas de governança, entre elas a transparência –, omitem sua carteira de investimentos ao público. A Comissão de Valores Mobiliários disse que não se responsabiliza pela fiscalização desses fundos e a Anbima não respondeu qual é a garantia de que os produtos realmente financiam apenas empresas ambientalmente comprometidas.
A Associação de investidores no Mercado de Capitais (AMEC) publicou em 2016 um código com os princípios e deveres de empresas que administram investimentos. Um dos fatores “determinantes finais da decisão de investimento” são informações ASG.
A Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp) lançou um manual de autorregulação e um “Guia Prático para Integração ASG na Avaliação de Gestores”. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criou uma Régua de Sensibilidade ao Risco Climático, que mostra a pecuária com um dos investimentos de alto risco.
Mas um estudo da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), de 2018, mostra que a preocupação com a sustentabilidade ainda está longe das planilhas dos gestores financeiros. Para começar, apenas 110 das 520 gestoras de recursos consultadas responderam ao questionário. Embora a maioria (85%) afirme considerar o potencial impacto de questões ambientais, sociais e de governança em suas decisões, apenas 11% tem equipe específica para análise destes aspectos. Entre as empresas que responderam, 20% usa um banco de dados específico para esta finalidade e 21,36% contam com uma política de investimento responsável. Apesar da baixa adesão, o estudo revela a falta de interesse para aprimorar estes métodos: 67% das gestoras de recursos não têm metas ou objetivos para integração desses aspectos nas suas análises de risco.
Pressão do consumidor fará cada vez mais a diferença
A pesquisa da Anbima revela por que, apesar de tantos guias, manuais e recomendações, as ações das empresas que compram e vendem a carne produzida na Amazônia seguem imunes à destruição da floresta.
“Aderir a acordos ou iniciativas ‘verdes’ é uma estratégia comum do setor empresarial, mas no Brasil se tornou uma forma de adiar ou evitar a imposição de uma regulação oficial sobre o tema”, denuncia Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon que acompanha há muitos anos as negociações em torno da indústria da carne.
Na prática, o resultado é ínfimo: “Se não tiver prazos vinculados a metas, desempenho e sanções claras, tem pouca oportunidade de avanço”, afirma Barreto.
A baixa efetividade dos esforços regulatórios mostra que o interesse em mudar o jogo do desmatamento terá de partir dos próprios investidores, cujas decisões são movidas por basicamente duas palavras: risco e lucro.
É aí que entra o papel do consumidor, especialmente para fazer pressão à indústria da carne. Empresas como a JBS interagem diretamente com o público, porque suas marcas estão expostas nas prateleiras dos supermercado. “Estas empresas estão sob risco de retaliação do consumidor”, avalia Cole Martin, analista da Fitch Solutions, que acredita que o desmatamento será um problema crescente para os frigoríficos da Amazônia daqui para frente.
“O governo também pode mudar regras, criar impostos sobre a carne em função do dano ambiental, ou aprovar novas leis sobre bem estar animal que vão aumentar os custos da empresa e diminuir seus rendimentos. Para mim é nisso que os investidores vão estar atentos”, afirma.
Um bom balanço desse ponto, segundo Martin, é a própria crise das queimadas da Amazônia no ano passado, quando as atenções de todo o mundo se voltaram para o Brasil. Embora tenha havido uma onda sem precedentes de solidariedade com a floresta, em 11 anos dos últimos 20 anos o estrago foi maior que o de 2019, segundo os dados do Inpe.
“Mas se você for ao Google Trends e procurar por ‘Floresta Amazônica’ desde 2004 você vê a linha achatada, e em 2019 você vê um boom. Houve uma enorme atenção da mídia, com a União Europeia se recusando a ratificar o acordo com o Mercosul. Os riscos para o mercado estão crescendo”, avalia.
Contraponto
Banco Central (leia a íntegra da resposta aqui):
"O Banco Central informa que cabe à própria instituição supervisionar a implementação das regulamentações ambientais. No caso do crédito rural, todas as operações são registradas no Sistema de Operações do Crédito Rural e do Proagro (SICOR) que possui críticas que impedem que a operação seja concedida caso esteja em desacordo com determinados parâmetros, como o registro no CAR e a duplicidade de operações na mesma área. Mesmo assim, o BC fiscaliza a atuação das instituições financeiras e monitora as coordenadas geodésicas das áreas financiadas. Em caso de irregularidades, além de interromper os incentivos e subsídios afetos ao crédito rural, podem ser aplicadas sanções previstas na Lei 13.506/2017 [que trata das punições a quem descumpre as regras do BC] e regulamentadas pela Circular nº 3.857/2017 [que trata do rito do processo administrativo das sanções], bem como a comunicação ao Ministério Público Federal, quando houver indícios de crime”. No que diz respeito às análises de risco socioambiental o BC afirma faz inspeções e monitoramento para avaliar os riscos assumidos pelas entidades supervisionadas."
Bradesco (leia a íntegra da resposta aqui)
1 comentário:
Hi, Anthony
Good job too.
Warm welcome.
Greetings
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