segunda-feira, 11 de maio de 2020

A despedida da cientista MARIA DE SOUSA [1939 - 2020] - a Ciência, no centro da sua vida, esteve nas suas preocupações também à hora da morte...


Ainda lúcida, mas já perto da morte pela Covid-19, as últimas palavras escritas foram para os jovens.

«"Espero perdurar por via dos que ficam vivos”. Por mais dolorosa e triste que seja a morte, a vida tal como a conhecemos na Terra é infinita. As novas gerações sucedem-se ciclicamente e cabe sempre a elas a construção do nosso futuro colectivo.

Faz parte de ser jovem estar convencido de que vamos ser capazes de mudar o mundo para melhor.
Eu já não sou cronologicamente jovem, mas continuo a acreditar num cenário optimista para o futuro da humanidade!

É preciso coragem para mudar, sobretudo quando o nosso estilo de vida actual é tão confortável.
No entanto, as evidências científicas são irrefutáveis: a exploração que o homem está a fazer da natureza é insustentável.

Vivemos obcecados pelo crescimento económico, mas não é possível que as economias de todos os países continuem a crescer indefinidamente. Considero fundamental que os jovens de hoje se consciencializem dos inevitáveis riscos a curto prazo e façam ouvir a sua voz, pressionando a sociedade para a mudança.

Acredito que a ciência e a tecnologia vão tornar-se ainda mais essenciais nas nossas vidas. Precisamos de observações e medições rigorosas de tudo o que se passa em todos os locais do planeta para estarmos alerta e sabermos onde actuar. Mas acima de tudo precisamos de novas soluções para viver em harmonia com a Terra, desde novas formas de nos deslocarmos a novas formas de nos alimentarmos e reciclarmos o lixo que produzimos. Novas soluções para um problema não surgem de repente a partir do nada. São necessários anos de intensa investigação científica, e muitos problemas estão ainda por resolver.

Por exemplo, a propósito da actual pandemia, importa lembrar que entre 1918 e 1919 ocorreu um surto de infecção causada por um novo vírus da gripe que matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Já se usavam máscaras de protecção, desinfectantes e distanciamento social, mas não havia testes de diagnóstico, nem medicamentos, nem ventiladores. A 1ª vacina para a gripe foi desenvolvida em 1940 e aplicada apenas em militares. Só em 1960, após uma pandemia causada por um novo vírus da gripe que entre 1957 e 1958 matou mais de um milhão de pessoas em todo o mundo, iniciaram-se os programas de vacinação para grupos de risco (isto é, pessoas com doenças crónicas ou com mais de 65 anos). Uma vacina confere imunidade contra um tipo específico de vírus. Ora, o vírus da gripe altera com muita frequência a sua informação genética, dando origem a novas formas de vírus que escapam ao efeito da vacina. Esta diversidade genética dá também origem, ocasionalmente, a formas de vírus mais agressivas que causam pandemias. Foi o que voltou a acontecer em 1968, com mais de um milhão de mortes em todo o mundo, e apenas há dez anos, em 2009, causando a morte de cerca de 600 mil pessoas a nível mundial. Porque a capacidade de se reinventar geneticamente é uma característica de todos os vírus, a humanidade sempre esteve e vai continuar a estar sujeita a surtos de infecção por novos vírus. Foi o caso do VIH – vírus da imunodeficiência humana, causador da sida. Esta nova doença começou a ser detectada em 1981 nos EUA e já matou 32 milhões de pessoas no mundo. Em 1994, a sida era, nos EUA, a principal causa de morte de pessoas entre os 25 e os 44 anos. Só em 1995 começaram a ser ensaiados os primeiros medicamentos que viriam a ter um grande sucesso, evitando as mortes e transformando a sida numa doença crónica.

Mais recentemente, em 2003, foram reportados na China os 1ºs casos duma nova doença respiratória denominada SARS, causada por um coronavírus parente do actual SARS-CoV-2. Em plena pandemia, a sociedade pede muito aos cientistas medicamentos e vacinas eficazes.

Que lições tirar para o futuro? Acima de tudo, as novas gerações têm de estar conscientes de que vão ser confrontadas com grandes desafios. A falta de respeito pelos animais selvagens, vítimas de captura e comercialização, favorece a infeção humana por novos vírus (ou outros micro-organismos patogénicos) que poderão causar mortalidades bem mais altas do que a actual pandemia. Muitos modelos ainda praticados na indústria agropecuária incentivam a destruição de florestas, interferem com a qualidade dos solos, são poluidores e favorecem a propagação de epidemias em plantas e animais. Vão certamente ocorrer grandes desastres naturais como fogos, tempestades e terramotos. As alterações climáticas são uma realidade instalada. Vai faltar a água e aumentar a poluição. As sociedades do futuro vão depender da ciência e da tecnologia para lidar com catástrofes. Mas as sociedades de hoje insistem em ignorar os múltiplos alertas dos cientistas para perigos eminentes que ainda podem ser evitados.

Por isso, deixo aqui o meu apelo às novas gerações para acabarem de vez com a ilusão de que vai ser possível continuar a viver com os hábitos de hoje e a fazer os negócios do costume. O meu outro apelo é para valorizarem e cultivarem a ciência. Todos os jovens, independentemente das suas profissões futuras, devem ser treinados a aplicar o método científico nos problemas com que se deparam no dia-a-dia. Rigor na observação, raciocínio lógico nas deduções, conclusões baseadas em experimentação. Em paralelo, as profissões ligadas à ciência têm de ser atractivas e apetecíveis. Tal implica organização, infraestrutura e recursos em permanente actualização.

Finalmente, um alerta: todas as áreas do saber são igualmente importantes. Os avanços tecnológicos mais transformativos resultaram de descobertas que podiam, à primeira vista, parecer irrelevantes. Para o avanço da ciência não há temas de investigação inúteis, desde que as perguntas sejam bem formuladas.

E a ciência não pode deixar de avançar, sob pena de não sermos capazes de resolver os imensos desafios com que nos vamos deparar!»

Biografia

Sem comentários: