terça-feira, 6 de julho de 2021

Entrevista ao Professor António Galopim de Carvalho

A - o jovem/estudante:
1 - Como foi o Galopim, enquanto estudante (ensino básico/secundário e universidade)?
GC – Detestei a Escola Primária que foi um tempo de sofrimento. No Liceu, fui bom aluno nas disciplinas com cujos professores estabeleci laços afectivos. Nas outras fui sofrível, por vezes mau. Na Universidade, como aluno de Geologia, fui francamente bom.
2 - Qual foi o(s) motivo(s) que o levou/aram à Geologia?
GC – A influência do professor de Ciências Naturais no meu 5º ano do Liceu (actual 9º ano do básico). Ele colocou em mim a semente que floresceu muitos anos depois (aos 27 anos) durante os quais me movimentei, a contragosto e sem sucesso, bela licenciatura em biologia e pelo serviço militar onde, sem perspectivas de emprego, permaneci como miliciano até o posto de tenente.
3 - Qual o Professor que mais o impressionou durante o trajeto estudantil? Porquê?
GC – Pelas piores razões, o professor primário. No Liceu e pelas melhores razões, que já referi, o dito professor de Ciências Naturais. Entre os universitários, o que mais me marcou foi o professor de Geografia Orlando Ribeiro, da Faculdade de Letras de Lisboa, com quem aprendi a associar uma componente humanista em toda a minha actividade profissional.
4 - Um episódio marcante durante os anos de aluno universitário.
GC - Na necessidade de garantir a minha subsistência consegui, em acumulação com o de vendedor de máquinas registadoras e de escritório, um lugar de delegado de propaganda de produtos farmacêuticos. Por um salário de 600$00 (267 euros) mensais, cumpria-me visitar uns 4 ou 5 médicos por dia, numa zona compreendendo a Avenida da Liberdade e suas envolventes mais próximas. Este trabalho era normalmente feito ao fim da tarde, percorrendo consultórios nos quais exerciam clínicos de diversas especialidades. Assim, muitas vezes, num único local, cumpria a minha obrigação contratual sem perder muito do tempo que me era precioso para estudar.
Nesta actividade houve uma situação que retive bem viva na memória. Passou-se com um médico que me recebeu com simpatia e muito boa disposição. Devo começar por dizer que entre as especialidades farmacêuticas que eu representava, havia uma pomada e uns supositórios para alívio do hemorroidal, em cujos princípios activos figurava vitamina F99 (assim se dizia), dois fármacos cujos nomes eram, respectivamente, Algan e Sulgan. Acontece que, quando entrei no gabinete deste simpático clínico, não me dei conta que a sua especialidade era oftalmologia. Comecei, de imediato, a desbobinar a cassete adequada à gama dos medicamentos que me competia propagandear, com ênfase especial nas propriedades terapêuticas, quase milagrosas, da dita vitamina na aludida enfermidade. Com bonomia, o meu interlocutor deixou-me “estender o lençol”, já muito estereotipado, por força da repetição, e só no fim, quando abri a mala em que transportava as amostras e lhe perguntei quais desejava, ele olhou-me nos olhos e, num admirável sentido de humor, disse:
- Tendo em conta as afinidades com o meu trabalho, só se forem aqui estes supositórios.
Esta resposta e o sorriso que se lhe abriu no rosto, ao dizê-la, denunciaram-me a associação que fez entre os olhos da cara e o outro, escondido na base das costas. Só então me dei conta de que entrara no consultório errado.
B - O Professor universitário:
5 - A carreira de professor universitário era um objetivo pré-definido, ou surgiu em virtude das circunstâncias que foi vivendo como aluno universitário?
GC – Acontece que dada a paixão pela geologia nascida com o dito professor do Liceu, fui um aluno interessado e, logo que concluí a licenciatura em Ciências Geológicas na Faculdade de Ciências de Lisboa, em 1961, fui convidado a ficar como “segundo assistente, além do quadro”. Percorri aí todas as avaliações próprias desta docência e saí, em 2001, como professor catedrático jubilado, com a idade de 70 anos.
6 - Como acompanhou os avanços no conhecimento geológico, nomeadamente a Tectónica de Placas, enquanto jovem adulto?
GC – A tectónica de placas só entrou nos nossos curricula, 4 ou 5 anos depois da minha entrada na dita carreira. A partir de então, esta nova visão global da geologia nunca mais deixou de ser o fulcro da investigação e do ensino que ali se promovem.
7 - O que mais o apaixona na Geologia?
GC – Praticamente, tudo. Além de ter investigado, com a profundidade possível, o domínio da geologia que reúne a sedimentologia e a geomorfologia, fui e continuo a ser um generalista como professor e divulgador científico.
8 - Como surgiu a campanha que desenvolveu com os "Dinossáurios"?
GC – Tudo começou em 1986, quando dois finalistas da Licenciatura em Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa, Carlos Coke e Paulo Branquinho, meus ex-alunos, descobriram um vasto conjunto de pegadas de dinossáurios no fundo de uma pedreira abandonada e, na altura, a ser usada como vazadouro de entulhos e lixeira clandestina, em Pego Longo (concelho de Sintra) na vizinhança imediata de Carenque (Concelho da Amadora). Havia, pois, que proteger este património paleontológico, lutando por ele. Em 1990, surgiu um projecto de construção de uma autoestrada (a CREL) cujo traçado iria destruir o dito património. A luta em que, então, me envolvi (nessa altura eu era director do Museu Mineralógico e Geológico da minha Faculdade) ficou conhecida por Batalha de Carenque, que publiquei em livro pela Editorial Notícias, em 1994, já como director do Museu Nacional de História Natural.
9 - Que impacto teve em si essa campanha e que feedback teve dos pais/crianças do país?
GC - Em apoio desta luta apareci imensas vezes na comunicação social, a falar de dinossáurios. Fiz palestras por todo o lado e em especial nas escolas, e promovi grandes exposições sobre dinossáurios robotizados e outras que fizeram história na museografia nacional. Sem me dar conta, toda esta imensa e prolongada actividade associou o meu nome, definitivamente, aos ditos animais do passado. Para os mais jovens tornei-me o pai dos dinossáurios. Passados 30 anos, esta luta ainda não terminou e eu continuo nela, não como pai, mas como avô.
10 - Qual o papel que teve na inclusão da Geologia nos programas oficiais em Portugal?
GC – Não sei responder. Não obstante ter publicado vários livros nesta área de ensino, muitos artigos de opinião e entrevistas, nunca o Ministério da Educação me procurou.
11 - O que pensa sobre o facto de a Biologia e a Geologia estarem associadas ou separadas enquanto disciplinas do ensino secundário?
GC – No modo em que se insiste no tipo de programas em vigor (o de geologia é muito mau, sobre o de biologia não me pronuncio), acho que as duas disciplinas deveriam estar separadas e ministradas por professores da área. Num outro tipo de programas visando cultura científica e valorização da condição de cidadãos conscientes, as duas disciplinas (mais interessadas nos processos e princípios fundamentais do que nas definições estereotipadas dos conceitos) deviam estar fundidas.
12 - Qual a sua opinião relativamente ao estado do ensino das ciências naturais, nomeadamente a preparação dos professores desta área e dos alunos que são atualmente formados nestas áreas?
GC – Falo aqui não só dos desta área, mas de todas. Sou um crítico, não tão activo como devia e, ao mesmo tempo, um defensor tenaz da classe dos professores das nossas escolas. Esta importante classe profissional deveria estar (e, desgraçada e infelizmente não está) entre as primeiras (talvez, mesmo, a primeira) preocupações dos governantes. Acontece que a imensa maioria dos professores está prisioneira de múltiplas obrigações que nada têm a ver com o acto de ensinar. São uma classe desacarinhada, desprotegida e mal paga, a que a democracia retirou o respeito e a consideração que já tiveram. Relativamente aos alunos, já o disse e escrevi muitas vezes que, em termos de educação, não estamos a formar a maioria dos cidadãos que a democratização do ensino trouxe às nossas escolas. Estamos a trabalhar para os “rankings” e para as estatísticas. Estamos a forçar os professores a amestrarem os alunos a acertarem nas questões que irão encontrar nos exames finais.

C - O passado, o presente e o futuro
13 - O que gostaria de ter feito e o que gostaria ainda de fazer?
GC – Em criança quis ser muitas coisas, mas, a partir da idade em que tomei conhecimento do que era a geologia, quis ser e tornei-me geólogo. Acontece que a vida, além de geólogo de todo o terreno (no campo e no laboratório) fez de mim um professor, missão que cumpri com plena satisfação e que ainda cumpro, empenhadamente, a partir de casa, através do computador. Nesta actividade, que pratico diariamente, costumo dizer, não tenho idade, nem dores do corpo ou da alma.
Sem dar por isso, tornei-me escritor, pois já publiquei uma trintena de livros e tenho mais no prelo, um “As Pedras na Ciência e na Cultura”, prestes a sair, e outro “Évora anos 30 e 40”, a sair para meados do ano.
14 - Olhando para trás, o que mais o emociona quando pensa nisso (na sua vida em geral, ou na Geologia apenas)?
GC - Poucas pessoas terão tido, como eu, o privilégio de exercer profissionalmente a actividade que preencheria os seus tempos livres e de sentir o local de trabalho como a sua própria casa. Esta condição sempre me diluiu a diferença entre dias ou tempo de trabalho e dias de descanso ou tempo de férias. Por vezes, dou comigo a dizer que estive sempre em férias, o que é uma maneira divertida de dizer que nunca deixei de trabalhar nesses tempos de lazer que a sociedade organizada concede a quem trabalha.
Na atrás referida luta que travei pela defesa das pegadas de dinossáurios, tive oportunidade de me relacionar intensamente com a comunicação social escrita, falada e televisionada. Aprendi a percorrer os corredores do Poder e, sem nunca me afastar das causas que abracei e pelas quais me bati e dei a cara, fiz amigos e estabeleci relações de muita simpatia com alguns ministros e, o que sempre foi muito importante, com os chefes de gabinete e com as senhoras secretárias. Outro tanto aconteceu no universo da Assembleia da República, independentemente das filiações partidárias, dos líderes das diferentes bancadas parlamentares aos deputados de todos os partidos. Tem sido assim nas Câmaras Municipais, à margem das respectivas cores políticas, com as quais iniciei e tenho mantido estreita cooperação, sempre a título gracioso, nunca remunerado, condição essencial que garante a minha não dependência desse outro poder, me não inibe de exercer livremente o meu juízo crítico e de procurar levar a bom termo os projectos em que me tenho envolvido. Gozar da simpatia de presidentes ou directores e de funcionários, dos mais categorizados aos mais humildes, nas mais variadas instituições públicas e privadas com as quais tive de me relacionar, profissionalmente ou apenas como cidadão, agilizou grandemente todo o trabalho que desenvolvi nesta fase da minha vida em que estive ligado ao Museu Nacional de História Natural. Devo dizer, em abono da verdade, que sem o suporte institucional deste museu e sem o apoio de alguns dos seus funcionários eu não teria tido nem a voz nem a visibilidade que os media me deram. Nas últimas décadas em que tive responsabilidades na Universidade de Lisboa e, em particular, no dito Museu, beneficiei, no exercício das minhas funções, da estima e da simpatia dos reitores que nos tutelaram nesses anos, nomeadamente os Profs. Rosado Fernandes, Virgílio Meira Soares, José Barata Moura e António Nóvoa.
Na Faculdade de Ciências, onde exerci a docência entre 1961 e 2001, ano em que me jubilei, a vida correu-me bem. Tive todas as condições para progredir, normalmente, sem sobressaltos nem esperas desnecessárias, algumas vezes, fruto de interesses inconfessáveis. Nada de essencial me faltou e, depois de um estágio de dois anos e meio, em Paris, como bolseiro, regressei à pátria, com meio caminho andado para o doutoramento que conclui, tranquilamente, em 1968. Quando, em 1975, estava, por assim dizer, maduro para ascender ao lugar de “professor extraordinário”, abriu-se-me a respectiva vaga. Do mesmo modo, em 1982, quando foi altura, abriu-se a vaga de “professor catedrático”. Pode dizer-se que tive uma carreira sem dificuldades de maior, que me permitiu viver em paz comigo, com os colegas e com a instituição, num ambiente de grande afectividade e simpatia. Foi prova deste viver a numerosa assistência à minha última lição, em 30 de Maio de 2001.
Ao actualizar o meu curriculum vitae, uma formalidade que tive de fazer todas as vezes que tal me foi pedido, fico perplexo com as muitas distinções e honrarias que me têm sido concedidas neste meu último quartel da vida. Fico surpreendido com as que fui acumulando, deixando-me, de certo modo, embaraçado e, muitas vezes, com uma espécie de sentimento de culpa face àqueles que tanto ou mais do que eu, as teriam merecido. Tenho plena consciência de que tais distinções e honrarias, visando, certamente, o trabalho que desenvolvi, o empenho e a persistência nas lutas cívicas que travei, foram ditadas, sobretudo, pelas simpatia e afectividade que sempre caracterizaram o meu relacionamento com as pessoas, quaisquer que sejam as suas posições no tecido social, dos Presidentes da República ao mais humilde dos cidadãos, dos ministros aos contínuos e às senhoras da limpeza do Ministério, dos patrões aos assalariados, dos generais e almirantes aos soldados e marinheiros.
15 - O que faria hoje de forma diferente, relativamente ao que fez na altura?
GC – Acho que nada. Continuo a ser professor e divulgador (à distância) com o mesmo empenhamento e entusiasmo, fazendo uso intensivo desta magnífica ferramenta que é a Internet.
16 - O que gostaria de fazer ainda?
GC - Escrever um livro mais, o que farei se a vida me o consentir e, ainda, o que já não posso fazer: viajar cá dentro e lá fora.
17 - O que gostaria de dizer aos professores de Biologia e Geologia / Ciências Naturais portugueses?
GC – Que tenham artes de inculcar e desenvolver, nos alunos, a afectividade, o gosto do saber pelo saber, a autoestima, e o dever cívico de estudar.
18 - Qual "a frase que levei para a vida"?
GC – Apetece-me dizer que tive artes de caldear o elitismo de algumas “torres de marfim” académicas com uma saudável dose de rusticidade que apreendi em criança e adolescente, entre os artesãos da minha cidade e os camponeses em volta dela.

Entrevista publicada no Boletim Nº 35, Julho de 2021, da Associação Portuguesa de Professores de Biologia e Geologia

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