Qualquer pessoa que conheça história sabe que aquilo a que chamamos “civilização” é muito mais frágil do que a crueldade, a violência, a prepotência, a vingança, o poder absoluto e brutal. Não é preciso sequer escolher grandes períodos da história, a “civilização” é uma raridade, acontece por pequenos períodos, torna a vida dos que vivem nesses tempos melhor e depois esgota-se e acaba. Não me interessa fazer grandes exercícios analíticos sobre qualquer das palavras que estou a usar, seja civilização, seja barbárie, toda a gente sabe a diferença entre um mundo, imperfeito que seja, desigual, muitas vezes injusto, mas onde as pessoas são senhoras do seu destino pelo voto, vivem no primado da lei, têm liberdade religiosa, acedem a condições mínimas de existência. Para contrariar o meu argumento podem vir com mil exemplos de imperfeição, de injustiça, de exclusão, mas o que sobra é melhor do que um mundo com pena de morte, tortura, censura, ausência de direitos, em que todos são indefesos face aos mais fortes.
A “civilização” como a conhecemos no mundo democrático ocidental está a acabar, diante dos nossos olhos, pela ascensão da brutalidade, da educação dos jovens pela distracção, da ignorância e do valor da força, do individualismo agressivo, do culto da ignorância e do pseudo-igualitarismo das redes sociais. A violência torna-se a regra nas relações como “outro” e o “outro” é fácil de encontrar nas nossas ruas, os imigrantes.
Não adianta virem-me dar lições de que este catastrofismo civilizacional é recorrente em certos momentos da história cultural, o que é verdade. Mas também é verdade que a catástrofe já ocorreu várias vezes, uma das quais nos anos 20-30 do século passado. O mundo que filósofos como Comte entendiam ter entrado numa senda de “progresso”, com a revolução técnico-científica do final do século XIX, entrou na barbárie da I e da II Guerra com milhões de mortos e anos de brutalidade em vários países “civilizados” da Europa e na URSS.
Há muitas explicações socioeconómicas para esta crise civilizacional, muito sérias, mas a guerra cultural dos nossos dias tem um papel fundamental. O culto imberbe pela modernidade, assente num deslumbramento tecnológico que oculta muita preguiça e manipulação, em que meia dúzia de gestos num telemóvel, explorando três ou quatro funções simples, passam por um saber semelhante ao falar português sem um erro ortográfico a cada palavra, a arrogância de dar opiniões sobre coisas que não se viram, ouviram e leram — tudo isto ajuda a erodir a frágil democracia porque “molda” a cabeça. É o que já cá está e o que vem aí.
Basta ver o X para se perceber o impacto em quem vive dependurado nas redes do que lá encontra: cenas de violência em que velhos, mulheres e brancos são atacados por imigrantes, em que mulheres de burka reclamam a conversão da Europa ao Islão, cenas de pancadaria para “punir” um ladrão ou um molestador apanhado em flagrante por “cidadãos verdadeiros”, acidentes de automóvel com pancadaria, uma sucessão elogiosa de enormes explosões na Síria, no Líbano, em Gaza, com origem nos “amigos de Israel”, a generalização da palavra “traidor” para designar quem não participa da fúria anti-imigrante e não quer participar na chamada “remigração” (e porque não organizar uns pogroms?), etc., etc.
No Instagram e no TikTok, um bom exemplo da platitude intelectual dos nossos dias é a classificação de “influenciadores”. Uma pequena multidão compete por essa “influência” nas redes sociais, alguns/algumas com alguma imaginação e esperteza, mas, por regra, com uma absoluta indigência intelectual, gigantesca ignorância, muito mau carácter, e truques de ganância que é, nos nossos dias, o principal motivador dinâmico do comportamento. Esses “influenciadores”, na sua maioria do sexo feminino, actuam para um público adolescente, também na sua maioria feminino, mas atingindo um público muito mais vasto e para além do nível etário da adolescência, embora, como se saiba, nos dias de hoje é-se jovem até aos 35 anos.
Alguns/algumas já cometeram crimes, desde violência sobre crianças (a história do banho de água fria para calar os berros da filha) ao atropelamento e fuga de um “criador de conteúdos”, forcado e apoiante do Chega. Ambos gabaram-se destes feitos, porque tudo é bom para terem os célebres 15 minutos de fama, e acabaram em tribunal. O facto de terem feito estas violências sem qualquer hesitação moral significa que olharam para elas como olham milhares de pessoas cuja principal preocupação, quando assistem a uma qualquer violência sobre os mais fracos, é puxar do telemóvel e filmar, para terem “material” para colocar nas redes sociais, e não ajudar.
No plano político, nestes “influenciadores”, predominam os homens e o Chega. Produzem uns comentários indigentes, mas sublinhando os temas da propaganda do partido, e fazem quase de imediato uns pequenos filmes em que qualquer das personagens da direita radical que tenha um debate com alguém à esquerda “arrasa”, “esmaga”, com imagem a condizer. As redes sociais, o YouTube, o Instagram, o TikTok estão cheios destes produtos, que funcionam como multiplicadores e são consumidos por um público jovem e adulto, o jovem mais atraído pela distracção que dá o confronto, quem “ganha” e quem “perde”, o adulto procurando um espelho daquilo que já pensa.
Este submundo é hoje o mundo. Sem princípios, sem saber, sem mediação, com apologia da força, elogio da violência e hostilidade aos mais fracos. Já estão a ganhar e, se os justos não lhes respondem alto e bom som, ainda vai ser pior.

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