Maria Amélia Martins-Loução * |
As evidências são inequívocas: as alterações climáticas vieram para ficar e a perda de biodiversidade, essencial para as gerações presentes e futuras, tem vindo a ser destruída pela ganância e desinteresse das estratégias, ditas de desenvolvimento, como não há precedentes. Apesar das políticas em prol do ambiente estarem inscritas no Programa do Governo, as incongruências, desvios, omissões, acabam por desvirtuar os compromissos assumidos pelo Acordo de Paris e pela Convenção de Bona, sobre a conservação de espécies migradoras, e pela ratificação da Convenção para a Diversidade Biológica. São assumidas e justificadas pela necessidade cega do desenvolvimento económico, como duas faces da mesma política.
É verdade que Portugal se constituiu como exemplo ao atingir valores recorde de produção de energias renováveis e ao inscrever no seu programa a ambição da neutralidade carbónica em 2050. No combate às alterações climáticas, a redução de emissões de gases com efeito de estufa é um dos grandes objectivos, justificando a melhoria da política de apoio aos transportes públicos. Mas, de forma incongruente, incentivam-se, paralelamente, os transportes aéreos, principalmente junto aos grandes centros urbanos. É a outra face da política, alimentada pela ânsia do aumento do turismo. Esquece-se que este crescimento não é limitado pela oferta de um país, e que o contraste ímpar de paisagens naturais ao longo de um pequeno Portugal é o cartão-de-visita. Esquece-se, sobretudo, que o plano único para a construção do novo aeroporto do Montijo se faz ao arrepio da Convenção de Bona, que Portugal assinou, e do compromisso europeu para a constituição e salvaguarda da Rede Natura 2000, através da Directiva 92/43/CEE. Estamos a falar da maior zona húmida do país e uma das mais importantes da Europa, considerada como um santuário para a fauna aquática e, sobretudo, para aves, que nele se detêm aquando da sua migração entre o Norte da Europa e a África.
Como se podem aceitar as medidas de mitigação propostas? Ensinam-se as aves a mudar de trajectória para diminuir os riscos de colisão com as aeronaves? Ignora-se a poluição que irá para o estuário? É isto congruente com o combate às alterações climáticas como grande objectivo governamental? À vaidade e prazer em assumir-se como um dos países que mais tem contribuído para a produção das energias renováveis, associa-se a ganância ambiciosa da construção de uma infra-estrutura, tão desejada quanto prejudicial para a cidade de Lisboa, que arrasta ainda mais assimetrias entre o litoral e o interior do país.
A política para a neutralidade carbónica passa, ainda, pela troca de veículos a combustão por veículos eléctricos, para o qual não é alheio a inovação das baterias e o investimento em novas tecnologias de eficiência energética. Esta transição será incentivada por ferramentas fiscais que orientam a economia e a sociedade para hábitos de consumo mais sustentáveis e eficientes. A esta transição positiva alia-se um problema: o incentivo à exploração de lítio, precisamente em zonas de reserva ecológica adjacentes a sítios de Rede Natura 2000, sem sequer ter sido exigido um estudo de impacte ambiental.
Se, no século XX, o petróleo foi o suporte da transformação, no século XXI o lítio é já considerado o “petróleo” do futuro. O lítio é fundamental nos equipamentos electrónicos portáteis, mas foi a revolução dos veículos eléctricos que o trouxe para a ribalta. Portugal é o quinto maior produtor mundial deste metal, mas as aparências iludem. Desde a extracção do minério até à forma pronta a ser usada nas baterias eléctricas e electrónicas, o processo é difícil e dispendioso. À semelhança do aeroporto, este é um outro caso em que o desejo de posse ignora ou desvirtua os compromissos assumidos por Portugal em matéria de conservação da natureza. É o desenvolvimento económico a ultrapassar as mais elementares regras europeias de salvaguarda do território, património cultural e natural de todos nós.
Quer isto dizer que se deve ser contra a exploração deste ou de outro qualquer minério? Não, desde que seja alvo de Avaliação Ambiental Estratégica, que não se sobreponha a áreas protegidas, e onde os estudos de impacto ambiental permitam e apoiem esta exploração económica.
Os ecólogos, cuja actividade profissional cobre a Ecologia como área transversal do conhecimento, têm a consciência de que a sustentabilidade ecológica não pode ser separada da actividade humana. Porém, importa realçar que a diversidade biológica e a utilização sustentável dos recursos do planeta são uma medida da segurança e da estabilidade da biosfera. Os ecólogos possuem o conhecimento para compreender as respostas dos sistemas em desequilíbrio, para dar indicações para as transformações adequadas e para apontar as soluções técnicas e formativas necessárias a uma sociedade em mudança. Este entendimento saiu reforçado no congresso da Federação Europeia de Ecologia realizado este ano em Lisboa, onde o papel dos ecólogos foi colocado à discussão de todos em http://www.speco.pt/pt/iniciativas/265-the-responsability-of-ecologists-en
*Bióloga, professora catedrática de Ciências Universidade de Lisboa; presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia
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