«Aconselhou Napoleão: “Nunca interrompas um inimigo que está a cometer um erro.” Joe Biden terá vantagem em seguir este princípio. Ao recusarem aceitar o resultado das eleições, continuando a denunciar a “fraude” eleitoral, Donald Trump e os republicanos caem na armadilha que eles próprios montaram. Na tentativa de deslegitimar o Presidente-eleito, não hesitam, por razões diferentes, em pôr em causa a democracia e enfraquecer o sistema político americano.
Quanto mais longe forem nesta paródia de “golpe”, que não têm força para consumar, mais ajudarão Biden a afirmar-se como garante da Constituição. Apesar das muitas feridas, a América não é uma “república das bananas”. Por ironia, as eleições de 3 de Novembro são qualificadas pelas autoridades eleitorais como “as mais seguras da História americana”. Trump perdeu, ponto final.
Que faz correr Trump? Ele não engana ninguém. Em 2016 esclareceu que só aceitaria o resultado eleitoral caso ganhasse. O seu comportamento está na linha dos seus hábitos, presentes e passados. Nas primárias republicanas de 2016 foi derrotado no caucus do Iowa pelo senador Ted Cruz. Reagiu assim: “Ted Cruz não ganhou o Iowa, roubou-o.” Cruz que, por oportunismo agora sustenta as teses conspirativas do Presidente derrotado, respondeu qualificando Trump de “sociopata” e “mentiroso patológico”.
O historiador Samuel Moyn, professor em Yale, desmente a imagem de “homem forte” que Trump procura representar. “Penso que acabaremos por o considerar como o mais fraco Presidente dos tempos recentes”, declarou ao New York Times. Não leva muito a sério a ameaça, que qualifica como “paródia de golpe” e demonstração dos limites da força de Trump.
Outro historiador, James Kloppenberg, de Harvard, afirma ao mesmo jornal que a recusa de Trump em reconhecer a derrota “não tem precedentes”, mas não é surpresa. “O modus operandi de Trump sempre foi, desde cedo, a violação das normas, por isso é irrealista esperar que se conforme com as normas democráticas.” Acrescenta: “Na falta de uma cultura que interiorize as normas de deliberação, pluralismo e, sobretudo, reciprocidade, não há razão para reconhecer como pior inimigo quem lhe ganha uma eleição, nem razão para reconhecer a legitimidade dos adversários.”
Na interpretação mais simples, alguns vêem a recusa de Trump como início da sua campanha eleitoral para 2024. Está já a angariar fundos, a pretexto da impugnação das eleições. Interessa-lhe potenciar a imagem de mártir de uma conspiração dos democratas, de forma a conservar a chave do voto republicano, pensando nas futuras primárias.
Há cenários mais delirantes. O historiador Sean Willenz sugere, com ironia, que “Trump possa tentar estabelecer um centro de poder distinto e antagónico ao governo eleito, […] um contragoverno administrado por tweets, […] uma espécie de governo no exílio, dirigido a partir Mar-a-Lago ou onde ele se instale para evitar a perseguição [judicial] pelo estado de Nova Iorque.”
Até lá, está a ajustar contas, despedindo os responsáveis de cuja lealdade duvida. Entre os mais destacados estão o secretário de Defesa, o apagado Mark Esper, provavelmente seguido pelos directores do FBI e da CIA.
Do lado dos republicanos
Convém ter em vista algumas datas. Os estados devem certificar as eleições antes de 14 de Dezembro, data da reunião do Colégio Eleitoral. Acontece que a segunda volta das eleições senatoriais na Geórgia é a 5 de Janeiro. Nelas está em jogo a maioria do Senado.
A mais imediata razão por que o Partido Republicano continua a denunciar a “fraude” tem a ver com a mobilização do eleitorado da Georgia. Até que ponto a data de 5 de Janeiro ameaça a certificação dos resultados e a reunião do colégio eleitoral? É que, até ao voto da Geórgia, a “guerra civil” não vai amainar.
Os dirigentes republicanos, como o líder do Senado, Mitch McConnell, ou o senador Ted Cruz, não duvidam do resultado eleitoral. Por que alimentam o mito da “fraude”? Neste momento, os seus eleitores são fiéis a Trump. Quem lhes ousará dizer que Trump perdeu numas “eleições limpas”? Pelo contrário, alimentam a ilusão. O secretário de Estado, Mike Pompeo, tem a desfaçatez de lhes garantir “uma transição suave entre as duas Administrações Trump”.
O Partido Republicano está já a pensar nas eleições midterm de 2022, que renovarão o Congresso. O endosso (endorsement) de Trump será provavelmente decisivo nas primárias republicanas. Trump não só transformou o partido como o mantém refém. Até quando?
São poucos os republicanos que contestam abertamente o mito da “fraude eleitoral”. Mas há outros sinais. O mais significativo é a “deserção” da Fox News, de Rupert Mudoch, fiel porta-voz de Trump mas que depressa reconheceu os resultados e passou a desligar as câmaras quando Trump e os seus porta-vozes mentem sobre as eleições.
Uma vitória precária
A vitória dos democratas é precária. A eleição de Biden significa a mudança de imagem da Casa Branca e dos Estados Unidos. Tem uma visível repercussão internacional. Mas Biden terá aquilo a que os americanos chamam um “governo dividido”, a presidência sem o apoio das duas câmaras do Congresso e um Supremo Tribunal hostil.
O mais grave é que herda uma nação ainda mais dividida do que em 2008 ou 2016, uma sociedade partida ao meio, não só em termos político-ideológicos, mas de valores, com uma forte carga de trumpismo. O lema “unir os americanos” parece uma longínqua miragem. As reformas institucionais do programa de Biden, tal como as relativas ao ambiente, não passarão. Resta ver o que acontecerá ao plano de combate à pandemia, ao estímulo económico, às políticas de saúde e de educação.
O futuro do Partido Republicano é uma grande incógnita. Para lá do poderoso oportunismo eleitoral, a lealdade ao trumpismo não é eterna. Com a retirada de Trump, acaba a fase “anti-sistema” e recomeça a da “política as usual”. Que margem de negociação haverá entre a Casa Branca de Biden e a bancada republicana de McConnell ? Com o controlo do Senado, os republicanos parecem tentados a neutralizar a Administração Biden desde o primeiro dia. A gravidade da situação norte-americana forçá-los-á a outra táctica? A nomeação do novo gabinete de Biden e das centenas de altos-funcionários que necessitam de confirmação no Senado será o primeiro grande teste.
Quanto ao resto, teremos de esperar pelo veredicto do tempo. Se a negação da vitória eleitoral de Biden é uma “paródia de golpe”, resta averiguar o que sucederá a Donald Trump uma vez fora da Casa Branca. Passará a ser o chefe da oposição, de um “governo no exílio” ou um messias populista? O velho Giulio Andreotti, especialista na matéria, deixou uma curiosa sentença: “O poder desgasta quem o não tem.”»
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