quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Filme: Filantropica (2002)


Por apresentar um ponto de vista que pode ser desconhecido ou difícil de captar para muitos espectadores não romenos, é recomendado conhecer algo da conjuntura histórica utilizada como pano de fundo do filme para uma melhor inteligibilidade. Trata-se do chamado “período de transição”, que foi um termo utilizado para descrever o período entre a Roménia comunista, do ditador Nicolae Ceausescu, e uma sociedade “normal”. Foi um período em que as pessoas teoricamente poderiam recuperar a dignidade, aprender a falar a verdade e confiar em seus semelhantes. A questão é que, na Roménia, como em todos os outros países ex-comunistas, esse período foi marcado por muitas desilusões, por muitos sonhos e destinos desfeitos, pois a recuperação não se mostrou fácil nem nos planos económicos, nem nos humanos. O lugar das relações humanas foi ocupado por artimanhas e roubos, o vazio dos slogans comunistas foi substituído pelo vazio da TV comercial. Sobreviver como ser humano era uma tarefa difícil. Outro ponto importante a se conhecer é que a literatura e o teatro romenos têm uma grande tradição satírica e isso é muito explorado na obra.

Contextualização histórica à parte, o filme é uma crítica à “nova ordem” instalada na Roménia após o fim do comunismo em 1989 com a Revolução Romena, e atribui ao novo regime a grande quantidade de mendigos, os golpes constantes, o sistema educacional deficitário, etc. Não vou me ater a estas peculiaridades, e sim ao roteiro, pois, dada a atual conjuntura brasileira, achamos tudo isso muito próximo de nossa realidade. Quem nunca se compadeceu por conta de algum pedinte com alguma história miserável? Quantas vezes ajudamos, mas ficamos desconfiados? Após assistirmos ao filme, é bastante natural que fiquemos pensando se isto realmente existe e quantas vezes já fomos enganados. Golpistas existem em todos os lugares do mundo, e ninguém esta imune às ações desse tipo de gente. Deve-se dar destaque, nesse contexto, às histórias inventadas por Don Pepe para seus “coletores de esmolas”, que são mirabolantes e espetaculares. No geral, porém, fica claro que a versão superficial e degenerada da nova ordem é o foco principal do filme.

Ovidiu é manipulado por Don Pepe e acaba até perdendo a sua própria identidade, ao entrar para esta orquestra de fraudes, em nome de sua condição de homem solitário e carente. É isso que Don Pepe procura: pessoas emocionalmente fragilizadas, necessitadas e ávidas por dinheiro fácil. Isso nada difere da situação de diversas pessoas utilizadas no tráfico de drogas, por exemplo. Nesse sentido, o filme acaba sendo bastante realista.

Temos atuações bem convincentes, por vezes até exageradas, mas é bom sempre ter em mente que estamos diante de uma sátira. Não há destaques absolutos, pois todos os artistas estão muito bem em tela, entretanto, os protagonistas Ovidiu, interpretado por um ator muito talentoso, diga-se de passagem, e o Sr. Puiutz realmente atraem os holofotes sempre que estão em cena através de um magnetismo impressionante.

As temáticas abordadas pelo filme, num primeiro olhar, nada combinam com uma comédia tão interessante, mas é para isso que temos bons diretores: para transformar temas pesados, como a miséria, em sorrisos. Mario Monicelli e seu fantástico “Feios, sujos e malvados” (1976) é um ótimo exemplo do tipo da manipulação da linguagem cinematográfica vista em “Filantrópica“, para que o leitor/espectador perceba que não estamos de algo originalíssimo, mas, de certo, muito especial. Abordar temáticas sociais de maneira leve é sempre uma boa estratégia para se transmitir a mensagem sem chocar. No fim das contas, vale muito a pena a audiência, pois proporciona boas gargalhadas e muitas reflexões. Rir e pensar andam de mãos dadas nessa grande obra da cinematografia romena. Mentiras podem ser vividas numa plena realidade!

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