sábado, 27 de dezembro de 2025

Porque votas chega?

Não há nada de revolucionário em votar no Chega.
Há desespero, há raiva, há frustração acumulada. E isso é compreensível, o que não é compreensível é confundir raiva com lucidez.
Durante décadas, Portugal foi governado pelos mesmos blocos políticos. Muitos de vós votaram neles. Outros abstiveram-se. Outros desligaram.
Agora, de repente, apresentam-se como “os que sempre viram a verdade”, como se tivessem acabado de acordar para um país que sempre existiu.
Não acordaram para a verdade!

Acordaram para um discurso simplista que vos disse exactamente aquilo que queriam ouvir!
Há algo que convém não esquecer: uma parte significativa das figuras do Chega vem precisamente desses blocos políticos que dizem combater. Vieram do PSD, do CDS, do sistema que hoje acusam de todos os males.

Durante anos, enquanto lá estiveram, o país não lhes parecia assim tão intolerável. A indignação só apareceu quando perderam espaço, influência ou a possibilidade de subir na hierarquia.

Para alguns, a ruptura não foi moral nem política. Foi uma derrota interna. E a conversão súbita em “anti-sistema” raramente é sinal de virtude tardia. É, muitas vezes, apenas ressentimento reciclado.
É confortável acreditar que existe um culpado único para tudo. É confortável apontar o dedo a “eles”: os imigrantes, os pobres, os dependentes de subsídios, os professores, os jornalistas, os “esquerdistas”, seja lá o que isso signifique esta semana.

É muito mais difícil aceitar que os problemas de um país são estruturais, antigos, complexos, e que não se resolvem com slogans nem com gritos.

Pergunta simples: sabem definir, sem caricaturas, o que é direita e esquerda em política? Sabem distinguir liberalismo económico de conservadorismo moral?

Sabem explicar por que razão o mesmo líder um dia é carne e noutro é peixe? Num dia é liberal e noutro "Esquerdalha"? Num dia é um malfeitor e noutro "respeitador da lei"? Num dia é um racista psicopata e noutro anda a rezar à virgem santíssima?

Não é coerência. É oportunismo.
Não é coragem. É teatro.
O discurso muda conforme a oportunidade. Num dia é lei e ordem, no outro é vitimização. Num dia é liberal selvagem, no outro é sindicalista.

Não há visão de país. Há apenas estímulos emocionais dirigidos a quem está cansado demais para pensar. E pensar dá trabalho.

Pensar obriga a admitir que a corrupção não nasce apenas nos partidos. Nasce na pequena fraude aceite, no jeitinho, na cunha, no “não faz mal”, no “todos fazem”.

Nasce na falta de cultura cívica, na ausência de leitura, na recusa do contraditório, no desprezo pelo conhecimento.

Não é um problema de ideologia. É um problema de carácter colectivo!

Dizem que “andaram a roubar-nos”. Onde estavam vocês enquanto isso acontecia? A participar? A fiscalizar? A informar-se? Ou simplesmente a viver, desligados, até alguém vos apontar um bode expiatório conveniente?

A raiva pode ser compreensível. Mas não é um projecto político. Nunca foi. E quando a raiva governa, não cai sobre os poderosos. Cai sempre sobre os mais fracos. Sobre quem tem menos voz, menos recursos, menos defesa.

Falam muito de crianças e de futuro. Então pensem nisto: que exemplo é ensinar um filho a resolver problemas com ódio, com humilhação, com desprezo pelo outro?

Que futuro se constrói quando se troca pensamento crítico por frases feitas?

Quando foi a última vez que leram um livro? Um qualquer. Quando foi a última vez que ficaram meia hora em silêncio, sem televisão, sem tablet, sem telemóvel, apenas a pensar? Não a reagir. A pensar.
Talvez descubram algo desconfortável: que muitas das palavras que repetem não são vossas. Que a indignação foi cultivada. Que a realidade é mais complexa do que vos disseram. E que ninguém vos está a salvar.

Esse momento dói. Mas liberta.

Porque perceber que o mundo não se conserta esmagando outros é o primeiro passo para deixar de ser manipulado.

Porque perceber que a democracia exige mais do que raiva é o primeiro passo para a levar a sério.

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