Com a vitória de Luis Arce do Movimiento al Socialismo (MAS), economista e ex-ministro das Finanças de Evo Morales, a Bolívia voltou a mostrar nas urnas o que já havia demonstrado em 2019, antes do golpe. Uma crónica de Raquel Ribeiro.*
Na sua leitura no Nueva Sociedad, o sociólogo Julio Córdova Villazón, explicava a contundente vitória do MAS no domingo como um voto de resistência de um sector popular, tanto urbano como rural, vítima de uma série de violências no último ano na Bolívia: “a violência eleitoral” da falsa denúncia de fraude de 2019, aceite pela Organização dos Estados Americanos (OEA); a “violência a simbólica” sofrida pelos indígenas e populares, com “constantes desqualificações, desde o Estado e das redes sociais povoadas por sectores conservadores de classe média, que difundiram imagens de ‘hordas de violentos e ignorantes’, e em Novembro de 2019 polícias que queimaram a wiphala (bandeira indígena reconhecida constitucionalmente)”; “violência militar-policial”, materializada em vários massacres; e a “violência económica” imposta no contexto pandémico.
Não foi, então, por acaso a percentagem de participação popular nas eleições de domingo: 87%, superior à do ano em que se elegeu Morales (2005). Alguém há de explicar as sondagens que colocavam Arce timidamente em segundo-lugar atrás de Mesa, ou taco-a-taco com Mesa para uma muito provável segunda volta. Talvez as sondagens não tenham ouvido os populares, rurais e urbanos, vindas como vêm de empresas geridas por yuppies, homens de fato completo e camisa branca bem engomada à Guaidó, ou mulheres loiras platinadas como Jeanine Añez, gente que faz capa na Forbes como calendário da Playboy para executivos que se auto-proclamam presidentes.
Talvez as sondagens tenham servido igualmente para lembrar a opinião pública de quanto pode ser manipulada, de dentro (da Bolívia, da América Latina), e sobretudo de fora (EUA). Em meados de setembro, o Washington Post revelava que o Facebook tinha suspendido um dos seus anunciantes, CLS Strategies, porque usava contas falsas na Venezuela, Bolívia e México para manipular opinião. A suspensão do anunciante deu-se porque “violava os princípios da ingerência no estrangeiro”, revela o Facebook.
Isso, sabemos, é o que o Facebook diz. Na verdade, a ingerência das empresas norte-americanas com o aval do governo, na América Latina, tem longa tradição, de que a mais recente é a corrida ao lítio para os carros eléctricos Tesla do magnata Elon Musk, que não teve pejo em afirmar no Twitter, em Julho, que os EUA (ou ele próprio? Usou um royal “we”) orquestrariam golpes onde quer que fosse preciso. “Deal with it”, escreveu. A Wikipedia chama-lhe “empreendedor” que é liberalês para “empresário”, com três nacionalidades (sul-africano, canadiano e norte-americano) cuja fortuna está avaliada nos 89 mil milhões de dólares. Também ele foi capa da Forbes, e está em 7º na lista dos milionários.
O hashtag #choraElonMusk dominou o Twitter Brasil toda a noite de domingo, com a eleição de Luis Arce – na verdade ele é MAS, mas é uma espécie de tecnocrata, até “elogiado” pelo jornal de direita ABC, em Espanha, pela sua “moderação”, que terá de limpar as forças armadas de golpistas, apaziguar a oposição, construir a Bolívia pós-Evo e, sobretudo, gerir a pressão internacional para a exploração de uma das maiores reservas de lítio do mundo.
Quem também concentra enormes reservas de lítio é a Argentina (agora com um governo de esquerda moderada) e o Chile, à beira da sua primeira reforma constitucional desde o fim da ditadura de Pinochet, e que levou, no Outono de 2019, às maiores manifestações (e consequentes repressões) de que ali há memória. Esse triângulo de desertos de sal entre o Chile-Argentina-Bolívia concentra 50% de todo o lítio do mundo, precisamente como nos tempos da colónia aí se concentravam ouro, prata, e, mais tarde, cobre e nitrato de potássio.
Não foi por acaso que o James Bond foi à Bolívia filmar o “Quantum of Solace” em 2008, em que 007 consegue impedir um magnata sem escrúpulos de participar num golpe de estado por causa do controlo da água de um lago. Rings a bell? Nem por coincidência, em 2019, a própria “brand” James Bond já anunciou o seu novo carro Aston EV com bateria de lítio, e ainda nem há cinco dias o submarino ao serviço de sua Majestade (da Royal Navy UK, não de Hollywood, claro) também revelou a sua nova bateria de lítio subaquática.
Quanto tempo “chorará” Elon Musk? Os analistas que ainda acreditam que há alguma diferença entre Republicanos e Democratas contam com o milagre nas eleições americanas no início de novembro. Para os latino-americanos, habituados a serem tratados como o quintal de Washington, sabe-se que não será Biden a mudar o status quo, porque o império nunca dorme e sempre contra-ataca.
*Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo. Escreve às quartas-feiras.
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