sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Pitões das Júnias antes do presente


Carlos, gosto muito desta região, extensiva ao planalto Mirandês. Conheço inclusive Tourém. Gentes com algum sentido de comunidade e longe dos tempos modernos de wokismo e cancel culture, do crescimento preocupante da extrema-direita e dos apoiantes de menos Estado, piores que Salazar. Porém eram gentes doutrinadas à volta do Abade e da Professora Primária que coitada ia parar a esses locais. O médico também. Sim, algum bucolismo e soluções baseadas nos recursos locais, mas muita crendice em bruxarias, muita pobreza, colchões de palha (que rapidamente se enchiam de pulgas), muito trabalho braçal e também havia uma sociologia tão desigual como nas nossas cidades e nos dias de hoje. Havia e ainda existe a mesquinhez, a inveja, o quebra-canelas, a manha, o respeitinho pela linhagem genealógica. Ou seja, tirando os dialectos barronês e mirandês que estão a morrer com eles, Portugal não mudou muito. Reler Miguel Torga, Aquilino Ribeiro...

Texto de Carlos Aguiar
Os relatórios finais de curso do Instituto Superior de Agronomia são um extraordinário manancial de informação sobre os sistemas tradicionais de agricultura.
Li vários, mas há um que me emociona particularmente: "Uma Freguesia de Barroso", datado de 1964, da autoria do engº agr. Fernando Gusmão.
Tinha uma admiração imensa pela figura e pelo saber agronómico deste meu primo em segundo grau (por afinidade).
O texto, porém, vale por si mesmo. É um soberbo instantâneo de uma sociedade camponesa semi-fechada de montanha, imediatamente antes da mecanização agrícola, do uso de adubos de síntese, da emigração massiva e da aculturação pela escola formal e pela guerra colonial, quando o analfabetismo ultrapassava os 50% da população (acima dos 7 anos de idade) e mais de 70% das famílias do concelho de Montalegre ganhavam o seu sustento na agricultura.
Conheço bem Pitões das Júnias, a aldeia estudada por F. Gusmão. Recordo, com uma lagrimita a despontar no canto do olho, as minhas aventuras naquele imenso território nos primeiros anos da década de 1980 – as travessias a salto desde as Caldas do Gerês com o Ramiro, o João, o meu irmão e primos, os Carris e os cornos da Fonte Fria, os acampamentos no mosteiro, a água fresca da ribeira, o vento a roçar nas folhas do grande carvalho, as sacas de caveiras escondidas na pequena capela no cimo do monte, a venda da D. Maria e o cajado do sr. Preto Velho ...
Tinham passado 25 anos desde que o engº Gusmão tinha andado por alí, mas as ruas recentemente empedradas permaneciam empapadas de palha e estrume porque manter a fertilidade da terra era a tarefa maior do agricultor, e muita gente ainda preferia dormir na casa de colmo do que na recém-construída "maison" de emigrante. Vi a agricultura, a casa de pedra solta ou de perpianho, as famílias e a sociedade rurais descritas por Fernando Gusmão.
O relatório do engº Gusmão está escrito num português puro, com um vocabulário rico e invulgar (como o verbo morigerar). As interpretações da realidade social são as próprias da época, mas talvez com menos mordaças ideológicas do que as atuais.
Transcrevo três passagens:
“O número de mães solteiras é bastante grande recrutando-se estas, quase sempre, entre as famílias mais pobres. Este facto apresenta, na região, uma faceta característica: as mães solteiras não sofrem repúdio de qualquer espécie e são naturalmente aceites pela comunidade que se rege por uma moral social eivada do seu quê de naturalismo.”
“Com efeito, é no baldio [que ocupava 5/6 do termo] que se encontra grande parte do sustento dos efetivos pecuários existentes, como também é aí que se obtêm a totalidade dos matos e quase todas as lenhas. É este um aspecto que é de justiça ter em consideração ao pensar na desamortização em massa dos baldios. Se essa desamortização não se fizer preceder das necessárias alterações estruturais e alterações técnicas das explorações agrícolas dos povos a que os baldios estavam vinculados encaminhar-se-ão esses povos para a ruína.”
“Interessante é notar que, mesmo em completa liberdade [a pastar na montanha durante o verão], o gado [bovino] de cada proprietário raramente se separa e se durante o dia se dispersa um pouco mais, longo que cai a noite trata de reagrupar-se, levado por atávico instinto de defesa contra possível inimigo – neste caso o lobo.”
O relatório termina com uma análise da dieta das famílias camponesas. Diz o autor: “A alimentação, feita à base de reduzido número de produtos, é de uma monotonia extrema. O pão de centeio, as batatas, as couves e a carne de porco constituem o substracto do regime alimentar do pitonês.” Parece que estou a ver a minha avó montalegrense a cozinhar ...
Para que não se perca a memória, fica aqui um link do relatório de fim de curso do engº agr. Fernando Gusmão, amavelmente cedido pelo filho e meu primo, Nuno Gusmão.

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