Quando o rei D. Carlos se passeava de palácio em palácio, enfastiado pelas intrigas entre os seus jurados apoiantes e cansado da maçada que era pavonear-se perante o povo, terá dito a alguns dos intelectuais que eram os seus colegas na arte do desespero que Portugal é “uma piolheira”. “Uma granja e um Banco: eis o Portugal, português. Onde está a oficina? e sem esta função eminente do organismo económico não há nações. Pode haver populações provinciais; pode haver Mónacos; mas falta um órgão de circulação, um membro ao corpo humano. Um povo constituído em nação é como um abecedário: todas as letras lhe são necessárias para escrever o que pensa.”, terá explicado Oliveira Martins, que, fiel à sua ambição e ao rei, tentou vários ministérios e parece ter falhado em todos. A “piolheira”, em todo o caso, era isto mesmo: granja, o poder dos aristocratas e novos-ricos fundiários, sentados num campesinato miserável governado pela baioneta dos guardas, e um banco, onde se negociavam os tesouros ultramarinos, as comissões, as falcatruas. Isso criava “Mónacos”, uma jogatana divertida no Estoril, mas pouca oficina; muito export-import, mas rara produção; um enriquecimento de alguns e um mar de pobres e de sacrificados. A piolheira era o Portugal das castas. Passou mais de um século e será que não nos tutela ainda uma réstia desse espírito de casta, desse menosprezo pela população, do fingimento como forma de política? Portugal dói desse passado que nos persegue e dói tanto quando o presente nos humilha.
Abuso
Portugal dói quando o primeiro-ministro se dirige aos idosos para lhes anunciar o maior aumento de sempre das suas reformas e pensões. São 8%, coisa nunca vista, um maná celestial, eu cuido de vocês. Ora, como quem lê estas páginas, o governo sabe que o valor do aumento de 2022 e de 2023 fica pelo menos 6% abaixo do valor da inflação dos mesmos anos e que, portanto, a proteção social empobreceu os idosos; sabe que está a preparar um ajustamento para 2024 que considere um aumento só sobre metade do valor que foi acrescentado em função do ano de inflação máxima e que, assim sendo, vai acentuar essa queda do poder de compra. E, apesar disso, anunciou-lhes um privilégio, um ganho que é uma perda, esperando que a ilusão monetária de um aumento abaixo da inflação os convença de que é uma benesse. A velha obsessão do PS de congelar as pensões, como propôs no seu programa de 2015, até se orgulhando da conta do que assim retiraria aos pensionistas, 1660 milhões de euros – graças a Catarina Martins, essa medida caiu logo que Costa precisou de negociar para ser governo – é agora transformada numa medida pior ainda, a redução do valor real espanejando um pagamento abundante. Saber e enganar, com a certeza de que isso resultará, como dói Portugal.
Dói que passem seis anos desde a promessa do médico de família para toda a gente, que foi agora enterrada com alguma baixeza e não pouco cinismo. Na verdade, nada foi feito, nem sequer tentado. E haveria 26 mil casas, todas as famílias que viviam em condições indignas chegariam aos 50 anos do 25 de abril com casa reabilitada ou construída – quatro anos depois, faltam os tijolos onde se multiplicou a solenidade do juramento, os ministros com a tutela da habitação estão sequestrados no governo, que lhes recusa o orçamento e a vontade política para começar, e agora multiplica declarações enfáticas sobre o que sabe que não vai acontecer. Em todos estes casos, eles sabem que não vão fazer, não vai acontecer, o tempo corre e o problema se agrava. Portugal dói da mentira.
Assalto
Privatizaram-se os correios, outra velha obsessão do PS, que pôs no seu programa essa grande reforma pelo menos desde 2011, por razões ainda hoje misteriosas, a empresa financiava o Estado e garantia uma presença de conforto em tantas vilas e aldeias onde é precisa. O mais antigo serviço do país foi entregue a uma horda de capitais vagamente reconhecíveis, a empresa degradou-se ao ponto da vergonha. E agora que a TAP dá lucro e portanto pode pagar o que ficou a dever, começa a corrida para a vender ao desbarato e a missão sagrada do Estado, que era preservar as “caravelas” modernas, disse-nos o primeiro ministro num arroubo poético, passou a ser vendê-la o mais depressa possível a espanhóis, franceses ou alemães ou a quem seja. O desprezo por Portugal dói.
A inflação dos produtos alimentares é em Portugal o dobro da de países com estruturas produtivas comparáveis, que importam parte do seu consumo e que, como nós, não produzem petróleo nem gás. Descobre-se que há supermercados que cobram na caixa um preço diferente do que afixam nas embalagens. Os bancos festejam lucros monumentais enquanto cobram juros e um maná de comissões e deixam as poupanças dos depositantes serem corroídas pela inflação. Os Vistos Gold meio que terminam depois de terem feito o seu serviço, entre a corrupção e a inflação imobiliária, agora temos um substituto melhor, os nómadas digitais para tendas milionárias ou rendas exorbitantes; o Alojamento Local só pareceu ser demasiado quando ocupou três quartos das habitações de um bairro. Se Oliveira Martins hoje nos visse, notaria que Portugal é agora uma granja turística e a finança, irmanados na especulação, o novo Mónaco. Neste festim atiram-nos à cara, como se fosse um sucesso, o que é o desprezo pelo povo. Portugal dói tanto.
(no Expresso)
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