Imagine o leitor que está em frente do simpático Vasco Palmeirim, participando no jogo de televisão Joker. Sem mais Jokers, surge-lhe uma pergunta acerca da qual não faz a menor ideia de qual a resposta certa: A, B, C ou D? A única hipótese é jogar totalmente ao acaso, escolhendo, digamos, a resposta A. Como é habitual, Vasco Palmeirim revela que duas hipóteses são erradas: “a resposta certa não é B nem C”. Torna-se assim claro que a resposta certa é A ou D. Suponha o leitor que isto se passa em 2022 e que, com novas regras do jogo, Vasco Palmeirim dá-lhe a hipótese de trocar: “Queres manter a escolha inicial A, ou trocar por D?”. Muitas pessoas diriam que é indiferente, pois ambas as hipóteses têm igual probabilidade de estar certas. No entanto, essas pessoas estariam erradas. Isso era verdade antes de levar em conta a informação dada pela frase “a resposta certa não é B nem C”. De facto, como inicialmente, a probabilidade de A ser a resposta certa é 25%. No entanto, os restantes 75% que, antes da revelação de Vasco Palmeirim, se distribuíam igualmente por B, C e D, concentram-se agora em D, pois fomos informados que B e C têm probabilidade zero. Consequentemente, a escolha racional óptima (a que maximiza o ganho esperado) é trocar A por D.
O parágrafo anterior é uma adaptação do famoso problema de Monty Hall (apresentador de um concurso televisivo nos EUA) que gerou muita polémica, envolvendo até matemáticos profissionais. É mesmo considerado um paradoxo verídico (veridical): a resposta demonstravelmente correcta parece errada para algumas pessoas. Esta polémica evidenciou que lidar de forma racional e correcta com probabilidades e tomar decisões óptimas sob incerteza pode ser contra-intuitivo.
A ferramenta essencial para fazer cálculos com probabilidades é a famosa lei (ou teorema) de Bayes (pastor presbiteriano e matemático inglês do séc. XVIII), redescoberta e refinada pelo importante matemático francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827). O raciocínio simples descrito no primeiro parágrafo é, de facto, a aplicação directa da referida lei. Para a ilustrar, consideremos um exemplo (hipotético) de diagnóstico médico. O teste para uma dada doença tem uma precisão de 95% nas pessoas com a doença (isto é, dá 95 positivos em cada 100 doentes testados; o termo técnico para este número é sensibilidade). Nas pessoas saudáveis, o teste dá (falso) positivo em apenas 2% dos casos; diz-se que a especificidade é 98%. Se o leitor, sem qualquer outra informação ou sintoma, tiver um resultado positivo num destes testes (de tão alta precisão) deve ficar muito, pouco ou nada preocupado? Um resultado positivo com um teste tão preciso certamente indica que, com alta probabilidade, o leitor padece da doença em causa, certo? Errado! Para esclarecer esta questão, é preciso recorrer à lei de Bayes e usar um outro número: a probabilidade de uma pessoa escolhida ao acaso ter a doença, a chamada prevalência da doença. Completemos o exemplo tomando uma prevalência de 0.1% (a doença é relativamente rara, afecta uma em cada 1000 pessoas). Da aplicação da lei de Bayes, resulta a que a probabilidade de ter a doença, dado que testou positivo, é cerca de 4.5%; não muito preocupante. Em jargão de probabilidades, diz-se que a probabilidade “a priori” (antes do teste) de ter a doença era 0.1% e a probabilidade “a posteriori” (depois do teste) é 4.5%. O resultado do teste por si só não permite calcular a probabilidade da pessoa testada ter a doença, mas apenas actualizar essa probabilidade do valor base (a prevalência de 0.1%) para o novo valor 4.5%. Considerar apenas o resultado do teste, ignorando a prevalência, é a chamada falácia da frequência de base (base-rate fallacy) e tem sido a causa de inúmeras decisões erradas, em contextos médicos, jurídicos e muitos outros.
Quando alguém argumenta que as vacinas contra a Covid-19 são ineficazes, apontando o facto de que muitos casos graves, ou mortes, se verificam em pessoas vacinadas, está precisamente a incorrer (por ignorância ou má-fé) na referida falácia da frequência de base. Neste caso, está a ignorar (ou esconder) o facto de que a maioria da população está vacinada. Ilustremos com números (aproximados) de Portugal. Cerca de 95% da população com mais de 60 anos (2.8 dos 2.95 milhões) está vacinada. Desde o dia 1 de Agosto, morreram cerca de 200 pessoas por Covid-19, 180 das quais nesta faixa etária. Embora esses números não sejam divulgados, consideremos pessimisticamente que metade (90) estavam vacinadas. Se assim for, neste período morreram 90 dos 2.8 milhões de vacinados (0.003%) e 90 dos 150000 não vacinados (0.06%, uma percentagem 20 vezes maior). Estes números apontam para uma redução de risco por um factor de 20, ou seja, uma vacina com a alta eficácia de 95% relativamente a morte nesta faixa etária. Estas contas simples não são mais do que a aplicação da lei de Bayes.
Concluo com uma mensagem para o Ministério da Educação. A lei de Bayes é claramente uma das ferramentas matemáticas com a mais alta relação entre utilidade e dificuldade. A sua compreensão e aplicação em contextos simples exige apenas saber contar, somar, multiplicar e dividir. A esta facilidade técnica alia-se a capacidade que dá de raciocinar correctamente com probabilidades e estatística, conhecimento essencial na sociedade moderna. Não há, pois, qualquer razão para a lei de Bayes não integrar o programa de matemática do ensino secundário, devendo fazer parte da literacia numérica básica de um cidadão informado.
Por opção do autor, o texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico.
Professor do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa
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