Nem sempre a Terra teve flores. Subitamente, elas apareceram – um mistério que Charles Darwin considerou “abominável”. Portugal tem estado a contribuir para o estudo das flores primitivas, graças à descoberta de fósseis de várias plantas novas para a ciência.
A flor do Kajanthus lusitanicus, com 110 milhões de anos
Na palma da mão, é um ponto negro, indistinguível a olho nu. Já à lupa binocular, este pedaço de carvão, nem de um milímetro de comprimento, ganha formas. É uma flor, exemplar único, nova para a ciência. Esteve enterrada em argila durante 110 milhões de anos, até ter sido recolhida entre quilos de terra pelo investigador Mário Miguel Mendes perto da vila do Juncal, no concelho de Porto de Mós, distrito de Leiria. Ela e os fósseis de outras três plantas, também classificadas entretanto como novidades científicas, enriquecem as colecções do jardim português do Cretácico, quando os dinossauros reinavam e as plantas com flor começavam a despontar na Terra.
Antes, uma breve história. Há cerca de 440 milhões de anos, ter-se-ão deslocado para terra firme, vindas do mar, as primeiras plantas. “Esses primeiros colonizadores terão sido algas verdes já extintas, que apresentavam semelhanças com os briófitos, grupo de plantas a que pertencem os musgos”, explica-nos o paleobotânico Mário Miguel Mendes, do Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve, em Faro, e do Museu Geológico, em Lisboa. “Para que as plantas pudessem conquistar o meio terrestre, tiveram de desenvolver estruturas que possibilitassem, por um lado, a obtenção de água e, por outro, reduzir a sua perda. Além disso, desenvolveram as raízes que fixavam a planta ao solo, absorvendo água necessária à sua manutenção, e os caules que suportam as folhas, órgãos fotossintéticos por excelência.”
Estavam ainda longe de ter flores, e os continentes onde viviam tinham uma configuração muito diferente da de hoje. A evolução tornou as plantas mais complexas, até aparecerem as gimnospérmicas, como as coníferas, em que as sementes não estão encerradas dentro de um fruto, de que são exemplo os pinheiros e os seus pinhões. “Há cerca de 320 milhões de anos, em Portugal formavam-se cordilheiras de montanhas com lagos envolvidos e habitados por vegetação rica e diversificada. Havia cavalinhas gigantes e plantas afins de licopódios e selaginelas actuais, mas de porte arbóreo, a par de coníferas que lembravam araucárias. Os fetos eram particularmente abundantes e diversificados”, conta Mário Miguel Mendes. “Esta vegetação desenvolvia-se em ambientes pantanosos, em clima húmido e relativamente quente das áreas próximas do equador da Terra de então. São desta altura muitos dos depósitos de carvão mundiais, inclusivamente em Portugal.”
Há cerca de 250 milhões de anos, os continentes anteriormente existentes já tinham colidido entre si e formado um só supercontinente, a Pangeia. Mas a tectónica é imparável e a fragmentação das placas ao longo da era Mesozóica – iniciada há 235 milhões de anos, no período do Triásico, e terminada com o Cretácico, entre há 145 e 65 milhões de anos –, colocou novos desafios às plantas terrestres. Se na Pangeia viviam sobre a influência de um clima continental, com a fragmentação das placas tectónicas as plantas tiveram de se adaptar a condições mais húmidas. “Esta interacção entre clima e fenómenos tectónicos ditou o aparecimento e a extinção de alguns grupos vegetais”, explica o paleobotânico.
“Há 225 milhões de anos, no Triásico, as plantas foram povoando as imensas áreas continentais semidesérticas, a partir da vizinhança de áreas lacustres. No Jurássico (200-145 milhões de anos), as coníferas dominavam a vegetação arbórea. Os fetos abundavam.”
Mas a Terra continuava sem flores. As primeiras plantas com flores, ou angiospérmicas, apareceram relativamente tarde na história do planeta – “apenas” há cerca de 130 milhões de anos, no início do Cretácico, como indicam os fósseis mais antigos. E as suas flores eram pequenas. E sem pétalas. Hoje, as angiospérmicas dominam a vegetação terrestre, ocupando quase todos os ecossistemas e representando mais de 85% das espécies vegetais vivas.
“O aparecimento súbito destas plantas no Cretácico Inferior sempre intrigou os cientistas. Charles Darwin referia-se a este súbito evento evolutivo que provocou alterações profundas em todos os ecossistemas terrestres como um ‘ mistério abominável’. Aparentemente, o seu desenvolvimento foi feito a par da evolução dos insectos e a sua enorme diversificação terá resultado do êxito adaptativo das suas inovações evolutivas. Mas muitos aspectos relacionados com as condições paleoambientais que presidiram à proliferação das angiospérmicas continuam por esclarecer”, diz Mário Miguel Mendes.
Portugal tem contribuído para a reconstituição desta história do nosso planeta. Tal como nos Estados Unidos, na China e em Espanha, em Portugal encontram-se os fósseis de plantas com flores mais antigos do mundo. São de flores, sementes e frutos, com cerca de 125 milhões de anos, recolhidos em Torres Vedras pela dinamarquesa Else Marie Friis, uma das maiores especialistas em angiospérmicas. Por exemplo, identificou pólenes que só existem quando há flores de um género e espécie novos – a Mayoa portugallica, descrita em 2004.
Fonte: Publico
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