Por : Odete Severino Soares
Poderão os pais, enquanto detentores das responsabilidades parentais, dispor do direito à imagem e privacidade dos seus filhos ainda que perante um universo virtual limitado de pessoas? Ou tal circunstância corresponderá a uma violação do direito à imagem da criança e até da sua reserva da vida privada? Importa refletir sobre onde e como se estabelece a fronteira entre aquilo é a “vontade” dos pais enquanto primeiros responsáveis pelo bem-estar dos filhos e aquilo que são os seus direitos à imagem e privacidade no curto e longo prazo
O uso das redes sociais desencadeou um conjunto de “novos” desafios no que concerne à proteção dos direitos das crianças e à parentalidade no meio digital. A Convenção sobre os Direitos das Crianças de 1989 veio reconhecer as crianças como titulares de direitos, protegendo a infância ao fazer da criança um (novo) protagonista, quer da sociedade, quer da família.
O recente fenómeno de sharenting - combinação de dois vocábulos da língua inglesa: sharing (partilha) e parenting (parentalidade) - e que quer dizer o ato dos pais partilharem informações como fotografias e outros dados sobre os seus filhos menores, sem o respetivo consentimento deles, nas redes sociais, tem levantando questões sobre direitos de personalidade, designadamente, os direitos à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada das crianças, bem como questões de ordem ética, evidenciando preocupações com o exercício da parentalidade no meio digital e as suas implicações na vida das crianças.
Não raras vezes, os pais partilham a imagem dos filhos menores em diferentes fóruns cibernéticos de maior ou menor alcance. Os perigos do sharenting são subestimados pelos pais – responsáveis pelo dever de zelar pela educação, saúde e segurança do filho menor. Muitos estão alheios aos riscos de pedofilia, fraude e roubo de dados. Alguns, embora cientes destes perigos, ainda assim consideram-se protegidos pelo discurso de que têm o controlo da situação, já que as informações disponibilizadas nas redes sociais são visualizadas (ilusoriamente) por um público previamente selecionado e autorizado.
A questão que se coloca é a de se saber se os pais poderão, enquanto detentores das responsabilidades parentais, dispor do direito à imagem e privacidade dos seus filhos ainda que perante um universo virtual limitado de pessoas? Ou tal circunstância corresponderá a uma violação do direito à imagem da criança e até da sua reserva da vida privada?
Em Portugal, os direitos à imagem e à privacidade constam da Constituição da República Portuguesa (artigo 26.º) e do Código Civil (artigo 79º), existindo ainda a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e a Convenção sobre os Direitos da Criança. “O princípio da privacidade impõe que se respeite a sua intimidade, o direito à sua imagem e reserva da sua vida privada”.
A par disso, a atuação no âmbito das responsabilidades parentais norteia-se pelo superior interesse da criança e devem os pais decidir, em cada momento, de acordo com tal princípio. Aliás, os pais, ao abrigo do “poder-dever de guarda”, podem até monitorizar os relacionamentos dos seus filhos menores. Por maioria de razão, também existirá uma legitimidade de controlo dos pais face à disposição do direito à imagem do filho quando levada a cabo por este numa rede social – não obstante a opinião da criança ser considerada de acordo com a sua maturidade (artigo 1878º do Código Civil). E o que dizer quando tal divulgação é propiciada pelos próprios pais? Ser-lhes-á licita a disposição de um direito de personalidade da criança que, não obstante ser juridicamente incapaz e estar sujeita às responsabilidades parentais, é um sujeito autónomo de direitos?
A este propósito é importante referir um acórdão pioneiro do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de junho de 2015 que aponta a problemática do sharenting, sem, contudo, empregar tal expressão no seu escopo, como um “perigo sério e real” ao desenvolvimento da personalidade do público jovem, e posiciona-se favoravelmente à proteção da imagem, privacidade e segurança da criança acima do desejo de qualquer progenitor partilhar nas redes sociais imagens, dados e outras informações pessoais que permitam a identificação da criança.
A decisão que foi proferida diz respeito a uma criança de 2 anos de idade, no âmbito de um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais que julgou válida a decisão de um tribunal de primeira instância que havia condenado os pais da criança a "abster-se de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a filha nas redes sociais".
O acórdão sublinha ainda que “os filhos não são coisas ou objetos pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo prazer. São pessoas e, consequentemente, titulares de direitos. Se, por um lado, os pais devem proteger os filhos, por outro, têm o dever de garantir e respeitar os seus direitos. As “responsabilidades parentais devem ser sempre norteadas, pelo “superior interesse da criança”.
No acórdão, são identificados os perigos da exposição de menores em redes sociais representados por “muitos predadores sexuais e pedófilos”. “O exponencial crescimento das redes sociais nos últimos anos e a partilha de informação pessoal aí disponibilizada” permite que os que “desejam explorar sexualmente as crianças recolham grandes quantidades de informação disponível e selecionem os seus alvos para realização de crimes”, conclui o acórdão.
A importância do acórdão não reside apenas na novidade da proibição, mas também nas afirmações apresentadas e vale ainda por representar um alerta para todos os pais quanto à informação relativa aos seus filhos que eles próprios ou terceiros revelam diariamente nas redes sociais.
É certo que, enquanto menores, os filhos serão representados pelos pais. Porém entendo que esta representação diz respeito somente aos atos que beneficiam a criança e cuja representação carece, inevitavelmente, da decisão dos seus pais. Ora a disposição do direito à imagem, sendo um direito de personalidade, será também um direito pessoal que só deverá ser exercido pelos pais em situações de necessidade dos filhos.
Nesta circunstância não se vislumbra qualquer interesse ou benefício que a criança possa retirar pelo facto da sua imagem ser divulgada, partilhada e perpetuada indefinidamente na Internet ou numa qualquer rede social. Além dos perigos das redes sociais que são reais, é também verdade que estes não são proprietários da imagem dos filhos, nem da sua privacidade, não lhes sendo lícito, sem mais, dispor destes direitos de personalidade.
Por ser um fenómeno recente, é importante a adoção de políticas públicas centradas na proteção da criança e na educação dos pais acerca do significado e das implicações legais, morais e sociais decorrentes do sharenting. Neste âmbito, o reconhecimento da privacidade dos filhos menores relativamente à autodeterminação e à respetiva identidade digital é importante. A par disto, também se afigura importante a regulamentação jurídico-normativa do assunto em sua especificidade para minimizar os potenciais riscos de dano à imagem e garantir a proteção física e moral das crianças na Internet e, sobretudo, regular a responsabilidade civil dos pais. Convém ressaltar, contudo, que a falta do consentimento do filho menor, quando este tenha a maturidade suficiente para prestá-lo, é que atribui ao sharenting um caráter ilícito e culpável.
Importa, assim, refletir sobre onde e como se estabelece a fronteira entre aquilo é a “vontade” dos pais enquanto primeiros responsáveis pelo bem-estar dos filhos e aquilo que são os seus direitos à imagem e privacidade no curto e longo prazo.
PS: Artigo baseado no Estudo sobre “A Divulgação da Imagem do Filho Menor nas Redes Sociais e o Superior Interesse da Criança”, 2016, Rossana Martingo Cruz, Universidade do Minho ; E também no trabalho intitulado "Parentalidade Digital: reflexões em torno da privacidade das crianças online”, da Revista Desenvolvimento e Sociedade – Revista Interdisciplinar em Ciências Sociais, por Alexandra Batista, 2021, Universidade de Évora.
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