Fonte: WRM |
Em setembro de 2015, durante o XIV Congresso Florestal Mundial, milhares de pessoas foram às ruas de Durban, na África do Sul, para protestar contra a forma problemática em que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) insiste em definir as florestas.(1) A definição da FAO basicamente considera as florestas apenas como “um monte de árvores”, enquanto ignora outros aspectos fundamentais, incluindo as suas muitas outras formas de vida, como outros tipos de plantas, animais e as comunidades humanas que dependem da floresta. Da mesma forma, a definição ignora a contribuição vital das florestas para os processos naturais que proporcionam solo, água e oxigênio. Além disso, ao definir “florestas” como sendo apenas uma área mínima de terra coberta por um número mínimo de árvores com um percentual mínimo de altura e copa, a FAO tem promovido ativamente o estabelecimento de muitos milhões de hectares de plantações industriais de árvores, principalmente de espécies não nativas e nos países do hemisfério Sul. Como consequência, apenas um determinado setor tem se beneficiado: a indústria de plantações de árvores. As plantações industriais de árvores têm sido a causa direta de muitos impactos negativos sobre as comunidades locais e suas florestas, os quais têm sido bem documentados. (2)
Na marcha de protesto que aconteceu em Durban, as pessoas tinham cartazes dizendo Plantações não são florestas!, e a manifestação terminou em frente à sede do Congresso Florestal Mundial, que foi organizado pela FAO. Em resposta a um chamado de líderes da sociedade civil na marcha, um membro do WFC saiu do prédio onde ocorria o Congresso para receber um abaixo-assinado com mais de 100.000 assinaturas de pessoas e grupos de todo o mundo. O documento chamava a FAO a alterar urgentemente sua definição de floresta e reconhecer as florestas por seu verdadeiro significado. Mas, mais uma vez, a organização não alterou a sua definição.
No entanto, algo novo aconteceu: ao contrário do silêncio diante das reivindicações anteriores para que a FAO mudasse sua definição equivocada de floresta, desta vez a organização reagiu ao protesto e enviou uma carta. Um ponto que consta da carta da FAO é particularmente interessante: “Na verdade, há mais de 200 definições nacionais de florestas que refletem uma variedade de interessados no tema…”. E continua: “… para facilitar a comunicação de dados…, é necessária uma categorização globalmente válida, simples e operacional das florestas”, que permita “comparações constantes, durante longos períodos, sobre o desenvolvimento e as mudanças florestais globais”. Ao escrever isto, a FAO tenta nos convencer de que o seu papel é apenas o de harmonizar as mais de 200 diferentes definições de florestas de diferentes países.
Mas será que a definição atual de floresta da FAO não influencia a forma como as 200 definições nacionais foram formuladas? E a FAO está correta ao afirmar que as muitas definições nacionais de floresta refletem uma variedade de interessados nesses países, novamente menosprezando sua própria influência?
Nós acreditamos no contrário. Para começo de conversa, a definição de floresta da FAO foi adotada há muito tempo, em 1948. De acordo com uma análise conjunta feita recentemente por diferentes autores de conceitos e definições florestais, “a definição da FAO, acordada por todos os seus membros [membros da ONU], é a primeira a ser usada por todos os países para fazer relatórios com padrões comuns; a definição de floresta adotada pela FAO continua sendo a mais usada hoje em dia”.(3)
Um bom exemplo para ver se a definição da FAO está sendo usada é o Brasil, o país com a maior cobertura florestal no Sul global e, de acordo com fontes oficiais, com quase 8 milhões de hectares de plantações industriais de árvores, principalmente monoculturas de eucalipto. Em sua publicação Florestas do Brasil, de 2010 (4), o Serviço Florestal Brasileiro (SBF), que faz parte do Ministério do Meio Ambiente e é responsável por questões relacionadas a florestas, “(…) considera como floresta as tipologias de vegetação lenhosas que mais se aproximam da definição de florestas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)”. Como consequência lógica do fato de que sua definição se baseia no que a FAO já definiu, afirma que “o Brasil é um país (…) de florestas naturais e plantadas”, onde a expressão “florestas plantadas” se refere aos 8 milhões de hectares de monoculturas, em sua maioria de eucalipto. A forma como o governo brasileiro define floresta, portanto, não é resultado de um processo que “…reflete uma variedade de interessados no tema”. Pelo contrário, é resultado do que a FAO já havia determinado.
Mas a influência da definição de floresta da FAO vai além de determinar as definições nacionais. Nestes tempos de mudanças climáticas, ela tem sido o principal ponto de referência para definir o que é uma floresta no âmbito da Convenção sobre Mudanças Climáticas da ONU (UNFCCC). Ao adotar a definição estreita da FAO, baseada na madeira, a UNFCCC também promoveu uma visão da floresta como uma área de terra contendo apenas árvores. Para a UNFCCC, o mais importante em uma floresta são as árvores, por causa de sua capacidade de armazenar carbono à medida que crescem, e não as comunidades que dependem da floresta. Na maior parte, essas comunidades afetadas são impactadas negativamente pelas restrições impostas ao uso de recursos florestais por “projetos de compensação carbono florestal”, também chamados, muitas vezes, de projetos de REDD+ (5). Uma definição de florestas que trata apenas de árvores abre a porta para incluir “florestas plantadas” – leia-se: plantações industriais de árvores – uma forma completamente falsa de “redução do desmatamento e da degradação florestal” – como opção dentro da convenção de mudanças climáticas, através da qual o carbono pode supostamente ser sequestrado da atmosfera e armazenado permanentemente. Na prática, é apenas mais uma oportunidade para a indústria das plantações de árvores ganhar dinheiro e uma grande ameaça para as comunidades afetadas pela tendência de expansão dessas plantações como “sumidouros de carbono”.(6)
Na sequência das últimas negociações da UNFCCC, os países têm revisto suas leis florestais recentemente, na esperança de atrair o chamado “financiamento para o clima”. Previsivelmente, as definições usadas têm por base a definição de florestas da FAO. Em Moçambique, por exemplo, em um seminário sobre REDD+, um consultor propôs uma nova definição de floresta para o país. Assim como a da FAO, ela também se baseia na presença de árvores, dizendo que uma floresta é uma área onde há “… Árvores com potencial para alcançar uma altura de 5 metros na maturidade (…)”. Também na Indonésia, a apresentação do Ministério do Meio Ambiente e Florestas à Conferência da ONU sobre o Clima em 2015 declarou que tinha “… adaptado a definição de floresta da FAO…” para definir suas florestas. Mais uma vez, é uma formulação que define e valoriza uma floresta somente através de suas árvores e divide “florestas” em um número de diferentes categorias, incluindo “floresta natural” e algo chamado de “florestas de plantação”.
A definição de floresta da FAO também influencia as ações das instituições financeiras e de desenvolvimento que promovem atividades baseadas na madeira, como a extração industrial de madeira de florestas, as plantações industriais de árvores e a compensação de carbono por REDD+. O principal exemplo é o Banco Mundial (BM), o qual, como parte do conglomerado da ONU, tem feito parcerias com a FAO por décadas, em uma série de iniciativas relacionadas a florestas. Recentemente, eles uniram forças mais uma vez, em um dos planos mais ambiciosos lançados durante a COP 21 em Paris, a chamada Iniciativa para a Restauração da Paisagem Florestal Africana (AFR100) (7). A AFR100 visa cobrir com árvores 100 milhões de hectares de terras desmatadas e chamadas de “degradadas” em diferentes países africanos. O Banco Mundial vai disponibilizar um bilhão de dólares para o plano. Mas, para entender o que o Banco considera como “reflorestamento”, é crucial ver como ele próprio define uma floresta. Previsivelmente, sua definição também é emprestada da FAO, descrevendo uma floresta como “uma área de terra … com cobertura de copa de mais de 10% e que tenha árvores …”. (8) Ao definir florestas dessa forma, o Banco Mundial escancara as portas para que empresas de plantação da árvores expandam suas grandes monoculturas sobre os territórios comunitários na África e, assim, façam parte do ambicioso plano de “restauração” que ele está promovendo em conjunto com a FAO e outros parceiros. A proposta da AFR100 se parece muito com o fracassado Plano de Ação para a Silvicultura Tropical (TFAP) da década de 1980, que também foi idealizado pelo Banco Mundial em colaboração com a FAO.
Considerações finais
É urgente que a FAO pare de apresentar as plantações industriais de árvores como “florestas plantadas” ou “silvicultura”, pois governos nacionais, outras instituições da ONU e instituições financeiras, bem como os principais meios de comunicação, seguirão seu exemplo inadequado. Essa confusão deliberada de plantações de árvores com florestas está enganando as pessoas, porque as florestas em geral são vistas como algo positivo e benéfico. Afinal de contas, quem seria contra “florestas”?
Acima de tudo, a FAO deve assumir total responsabilidade pela forte influência que sua definição de “floresta” tem sobre as políticas econômicas, ecológicas e sociais globais. O abaixo-assinado de 2015, que foi apresentado à FAO em Durban, afirma que ela se apresenta, em seus princípios fundamentais, como um “fórum neutro, onde todas as nações se reúnem como iguais”. Para corresponder a essa afirmação, entre outras coisas, a FAO deve rever urgentemente sua definição de floresta, passando de uma visão que reflete as preferências e perspectivas de empresas de madeira, celulose/papel, borracha e comércio de carbono, para uma que reflita as realidades ecológicas, bem como os pontos de vista dos povos que dependem da floresta. Em contraste com a atual influência dominante que as indústrias baseadas na madeira exercem através da FAO, um processo transparente e aberto para estabelecer definições novas e apropriadas para florestas e plantações de árvores também deve envolver efetivamente essas mulheres e esses homens que dependem diretamente das florestas e por isso as protegem.
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