Nasreddin Hodja, a quem se atribuem por todo o Médio Oriente inúmeras e bem-humoradas histórias, caminhava à beira de um rio quando alguém lhe gritou da outra margem: “Nasreddin, ajuda-me a atravessar para o outro lado!” Ele olhou e respondeu: “Mas tu já estás no outro lado!”
Para lá da facécia, um simples “ajuda-me a passar para o teu lado” teria evitado o mal-entendido, mas nesse caso a graça perdia o efeito. A anedota mostra como a perspetiva é importante. Tal como as palavras. Já os factos, esses não mudam e são inquestionáveis: cada um estava mesmo numa margem diferente.
Para o jornalista, a verdade dos factos e as palavras são centrais no exercício da profissão, e o que escolhemos contar e a forma como contamos acaba por dizer muito sobre o jornalismo que cada um faz. São opções não isentas de risco, e o risco é tanto maior porquanto as armadilhas são múltiplas: preconceitos próprios (alguns até inconscientes), narrativas decorrentes de agendas de comunicação, pressão dos poderes, tentativas de condicionamento por parte dos muitos agentes ao serviço de poderes, imposição de narrativas decorrentes daqueles que controlam a agenda internacional - exemplos não faltam.
O trabalho do jornalista nunca é cómodo porque a sua função é mesmo a de ser incómodo, o que faz com que não tenha muitos amigos. Nunca teve, aliás. No Dictionaire amoureux du Journalisme, Serge July, antigo diretor do Libération, enumera uma série de críticas dirigidas ao jornalista, algumas certamente com razão, outras seguramente injustas. Lá encontramos Voltaire, Rousseau, Thomas Jefferson, Balzac – a lista é grande entre aqueles que colocam em causa a legitimidade do jornalista.
A liberdade de imprensa incomoda. Deve incomodar. E incomoda tanto mais quanto mais for capaz de expor os excessos do poder. Seja ele qual for. E não nos enganemos: qualquer que ele seja tem sempre uma visão instrumental do jornalismo. Até mesmo nas nossas democracias ocidentais.
Sem a reportagem, sem jornalismo de investigação, resta o jornalismo de agenda, o mais conveniente na ótica dos poderes e das suas estratégias para influenciar o quotidiano. É através dele que organizam a liberdade da imprensa e, com isso, reduzem a liberdade de imprensa. Quanto mais jornalismo de agenda mais o jornalista se arrisca a deixar de ser visto como um contrapoder para passar a ser olhado como simples correia de transmissão desses poderes.
Com este ambiente, é fácil aos partidos extremistas, nacionalistas e antissistema denunciarem o trabalho dos jornalistas, com alguns até a exortar os seus militantes a não recorrer à imprensa, agora que conseguem falar diretamente aos seus eleitores através das redes sociais. Encerram-se numa informação militante, sem direito contrapontos e chegando mesmo a apresentar “factos alternativos”, como referiu um dia com total desfaçatez uma assessora de Donald Trump.
O risco para a democracia desta informação de trincheiras é enorme. Mesmo uma democracia sólida como a norte-americana corre riscos, o que ficou espelhado no assalto ao Capitólio pelos partidários do antigo presidente dos Estados Unidos da América, em janeiro deste ano, após meses a serem bombardeados nas redes sociais por uma falsa alegação de que as eleições presidenciais lhes tinham sido roubadas.
Tal como outrora, ser jornalista continua a ser um risco. Atualmente, basta um dirigente político mandar os seus trolls denegrirem alguém para que uma multidão transforme um profissional da imprensa num alvo a abater no pelourinho das redes sociais. Para vários governantes o tweet tornou-se até num instrumento de comunicação extraordinário: Narendra Modi, Erdogan ou Donald Trump. Ou Orbán. Ou Sissi. É o mundo a preto e branco, a velha lógica binária do “estão connosco ou estão contra nós.” É claro que há certos regimes que vão sempre um pouco mais longe, colocando jornalistas na prisão, impedindo outros de trabalhar. É assim todos os anos em várias latitudes e longitudes.
O poder crescente das redes sociais tem retirado à imprensa o monopólio do discurso mediático e, por via disso, tem-na privado de recursos financeiros. Sem financiamento, sem poderem ir ao terreno, sem poderem prosseguir grandes investigações, o papel dos jornalistas na sociedade torna-se cada vez mais difícil. E quando para sobreviver os órgãos de comunicação social são obrigados a inserir-se em grandes grupos económicos e com gente ligado ao mundo dos negócios, as suspeitas em torno da isenção, independência, seriedade dos jornalistas tendem a aumentar. Viu-se como um jornal prestigiado como o New York Times foi posto em causa pelos partidários do antigo chefe de Estado norte-americano por causa da animosidade deste último relativamente ao dono do jornal, mas também, é claro, pela sua linha editorial pouco alinhada com as decisões da Casa Branca.
Na verdade, nas redes sociais cada um escolhe a sua informação, seleciona aqueles e aquelas por quem pretende ser informado, os assuntos sobre os quais quer ser informado. E o que é mais: as redes oferecem a possibilidade a cada um e a cada uma de serem um ator da informação e não apenas simples consumidores (o que é quase uma ironia, afinal acabam todos a dar ao algoritmo o poder de escolher por eles o que é suposto lhes interessar, sem que esse mecanismo procure contrapontos, o que lhes reforça apenas as certezas).
Mas nas redes, na web e na darknet, é possível encontrar quase tudo. Até, por vezes, segredos de Estado. Ou discursos de ódio. Ou manuais de terrorismo. Ou inúmeras teorias da conspiração. Estamos cada vez mais inundados de informação. Nas redes tudo prolifera, verdadeiro ou falso, muitas vezes falso com a aparência de verdadeiro. E se pensarmos no deepfake, que usa vídeo e áudio e pode colocar alguém a dizer o que nunca disse com uma quase absoluta verosimilhança, arriscamos a confrontar-nos com manipulações muito perigosas para as sociedades.
Em Amusing ourselves to death, publicado em 1985, bem antes das redes sociais se terem imposto no nosso quotidiano, Neil Postman comparou duas das mais conhecidas distopias, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. As conclusões têm algo de visionário, pois os sinais de ambas estão crescentemente visíveis neste nosso tempo, um nas autocracias, de que a China é hoje o melhor exemplo, o outro nas nossas democracias ocidentais.
Orwell temia aqueles que nos negariam a informação, Huxley receava que nos dessem tanta que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade nos fosse ocultada, Huxley que a verdade ficasse afogada num mar de irrelevância. Orwell temia que nos tornássemos uma cultura cativa, Huxley que nos tornássemos uma cultura de trivialidades.
Recentemente, uma sondagem em França indicava que uma grande maioria de franceses, mais de oitenta por cento, admitia que as redes transmitem informações falsas, mas cerca de cinquenta por cento dos inquiridos garantia que será nelas que se irá informar para decidir em quem votar.
As redes já foram e são um instrumento da guerra híbrida, usadas na invasão da Crimeia e na desestabilização da Ucrânia; serviram e servem para desestabilizar democracias, influenciar desfechos eleitorais, como foram, por exemplo, os casos do Brexit ou das eleições norte-americanas de 2016.
Esta realidade e a necessidade de evitar a disseminação de informações falsas levou alguns governos a legislar e impor canhestramente novas formas de censura. O mesmo estão a fazer alguns responsáveis das redes em nome de um suposto politicamente correto, mas que na prática são métodos que não envergonhariam certas ditaduras. Estamos num momento delicado e que deveria suscitar muito mais reflexão antes de se adotarem certos dispositivos que abrem portas à restrição das liberdades.
A realidade é que só existe jornalismo em liberdade, esse que traz a verdade dos factos sem receios, que interroga, levanta dúvidas, inquieta e traz perspetivas diferentes. O compromisso com a verdade e a procura da verdade fazem toda a diferença e são a marca distintiva do que é ou deveria ser o jornalismo. Se os poderes não deixarem que os jornalistas vivam em liberdade, com a responsabilidade e o claro sentido ético dela decorrente, então não precisam de órgãos de comunicação social, apenas de panfletários.
Os órgãos de comunicação social precisam de financiamento e de financiadores, seja via investimento público ou privado, mas pessoas que entendam o jornalismo como uma atividade livre, mesmo que ela os incomode.
Pierre Bergé, que foi um dos acionistas a título individual do Le Monde, chegou a criticar abertamente o jornal do qual era também proprietário num outro órgão de comunicação social, mas não se livrou de uma resposta à altura por parte da Redação por “tentar intervir na linha editorial do jornal”. O caso Le Monde é, aliás, um exemplo interessante em torno do difícil equilíbrio entre investidores e independência.
A precisar de capital em 2010, o jornal abriu-se a investidores privados. Na altura, como me referiu um elemento da Redação numa reportagem para a RTP, o então presidente da república, Nicolas Sarkozy, pressionou os jornalistas do Le Monde a escolherem quem ele pretendia, deixando a ameaça de correrem o risco de não obterem apoios do Estado para a reconversão do parque gráfico.
Na realidade, o que a nossa reportagem mostrava era a galáxia de relações que o então presidente tinha com os detentores dos mais relevantes órgãos de comunicação social franceses. A Redação do Le Monde foi imune à pressão e acabou por escolher quem muito bem quis, a saber: Pierre Bergé, Xavier Niel e Matthieu Pigasse, mas com a independência editorial solidamente ancorada num compromisso com um polo formado por jornalistas, pessoal, leitores e fundadores do jornal.
E quando, há poucos anos, um outro investidor, Daniel Kretinsky, quis comprar uma parte das ações de um desses investidores, o jornal fez um perfil muito duro sobre os interesses nem sempre recomendáveis desse homem de negócios. Também Xavier Niel não foi poupado quando o jornal o expôs, no início deste ano, entre vários outros rostos no caso Open Lux, onde o Luxemburgo aparece uma vez mais como um ator chave na evasão fiscal na Europa.
Mas não nos enganemos, a imprensa nem sempre tem razão, erra e é injusta. O compromisso com a procura da verdade, com a independência, a isenção e o rigor não impede o jornalista de errar. A guerra no Iraque e a mentira então propalada de armas de destruição maciça pelo regime de Saddam Hussein são um exemplo por demais gritante.
Mas sem imprensa verdadeiramente livre mais se empobrece o ambiente de liberdade e o debate democrático, e quanto maior for a tentação de governos no mundo ocidental em domesticar o jornalismo de serviço público, esses governos que “confundem as suas vitórias eleitorais com a essência da democracia”, para citar a comissária europeia Vera Jourova, maiores serão os riscos. É um caminho que nos levará apenas a ver uma margem do rio. Nasreddin nem sequer poderia escutar quem lhe gritasse do outro lado, porque o outro lado deixaria até de se conseguir fazer ouvir.
Sem comentários:
Enviar um comentário