segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Documentário: Eu Não Sou Seu Negro


A voz de Samuel L. Jackson carrega dor, revolta, injustiça, sofrimento, mas também esperança. No tom exacto das emoções que as palavras de James Baldwin transmitem, a narração de “I am not your Negro” transporta-nos para o turbilhão racial da América, na longa e sangrenta luta pelos direitos civis.

O documentário nasceu das páginas de “Remember This House”, romance que a morte de James  Baldwin, em 1987, interrompeu.

O livro, segundo nos conta a produção de Raoul Peck, parte do compromisso assumido pelo escritor de “contar a história da América, através das vidas de três dos seus amigos que foram assassinados: Medgar Evers, Martin Luther King Junior e Malcom X”.

Todos símbolos de um movimento que continua a pagar com a morte a luta pela igualdade racial.

A trajectória dos três ícones, indissociável da de Baldwin – e de tantos outros afroamericanos que marcharam e marcham contra a opressão, pela libertação negra –, começou a ser documentada pelo escritor em 1979, mas “nunca foi além das 30 páginas de anotações”, revela-nos o documentário.

Estava em curso uma “missão impossível”, conforme o romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social, acabaria por descrever.

O caminho de regresso a casa, para quem há muito se tinha mudado para França – numa fuga ao racismo e homofobia de que era alvo nos EUA -, acabou por se cumprir sob a direcção de Raoul Peck, a quem Gloria Karefa-Smart, irmã do escritor, confiou as notas de “Remember This House”.

“Aqui está Raoul. Saberás o que fazer com isto”.

Estava consumada a passagem do testemunho de Baldwin, já depois de uma batalha jurídica centrada no adiantamento de 200 mil dólares que o autor tinha recebido da editora.

“I am not your Negro”, estreou-se em 2016, e chegou a estar na corrida aos Óscares, na categoria de Melhor Documentário.

O prémio da Academia de Hollywood não veio, mas o contributo desta produção para o entendimento das tensões raciais que atravessam a América é inequívoco.

“Não somos os ‘vossos’ negros, somos seres humanos”

“O que as pessoas brancas devem tentar compreender, olhando para dentro dos seus corações, é, antes de mais, a razão de ter sido necessário criar a figura do ‘negro’”, defende Baldwin, apelando à reflexão sobre a origem de uma construção social que oprime e marginaliza cidadãos em função da cor da pele.

O escritor, cujo livro de estreia foi o aclamado “Go tell it on the Mountain” (“Se o disseres na montanha”) – que apenas chegou a Portugal no ano passado, 65 anos após a publicação –, coloca-nos perante uma evidência.

“Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado”, observou Baldwin, acrescentando: “O confronto nem sempre traz uma solução para o problema, mas enquanto não enfrentarmos o problema, não teremos solução”.

O problema é o racismo, exposto nas imagens e mensagens que fazem de “I am not your negro” um documentário com relevância histórica. O problema é continuarmos sem reconhecer que as sociedades em que vivemos estão racialmente contaminadas por séculos de elevação do branco e opressão do negro. O problema é não aceitarmos que a estrutura social que herdámos está automatizada para favorecer brancos e subjugar negros. Ou, como escreveu, Baldwin: “A História não é o passado. É o presente. Carregamos a História connosco. Nós somos a nossa História. Se fingirmos que não, estaremos a ser criminosos, literalmente. Eu comprovo-o. O mundo não é branco. Nunca foi branco, nem pode ser branco. Branco é a metáfora do poder”.

Um poder que criou o negro para se perpetuar, que lhe retirou humanidade para o subjugar. Entenda-se de uma vez por todas, a necessidade de se enfrentar esses demónios. Porque, conforme sentenciou Baldwin, que parafraseamos no plural: “Não somos os ‘vossos’ negros. Somos seres humanos”.

Sem comentários: