Há uns anos, o jornalista Carlos Santos Pereira explicava como a multiplicação dos canais de informação e a concorrência entre televisões e, sobretudo agora, nos media digitais, tem um efeito de afunilamento. «Nunca a informação foi tão uniforme, tão igual. A resposta à concorrência não é tentar fazer diferente do vizinho. É garantir que eu não deixei de dar aquilo que ele também deu», disse em 2016.
Toda a informação se tornou igual: a agenda é a mesma para todas as redacções, condicionada pelas agências e, depois, reflectida pelas redacções no osso, sem pessoal, dependentes de takes da Lusa ou de jornais internacionais. Jornais esses que os jornalistas (em Portugal também) lêem e citam com regularidade: o The Guardian, a BBC, o The New York Times, o Washington Post, o El País e, para os que ainda lêem francês, o Le Monde. E as agências AP e Reuters. Uma leitura atenta dos mesmos, todos os dias, revela que também eles se lêem e se citam entre si, afunilando ainda mais aquilo que poderia ser a cobertura do espaço mediático.
O exclusivo transformou-se num «quem dá primeiro a notícia», abrindo a porta à falta de precisão, de mínimos de investigação, ausência de contraditório, disseminação de informação incompleta, errónea e fake news. Isto quando esse exclusivo de «última hora» ou «ao minuto» não se transforma, enfim, numa massa uniforme e acrítica de notícias iguais reproduzidas, mais ou menos à letra, traduzidas para variadíssimas línguas no mundo inteiro. Basta procurar no Google News e perceber como um qualquer assunto é coberto em todo o país ou todo o mundo: uma imensidão de copy-paste que não nos permite saber mais ou para além daquilo que o take de uma agência nos proporcionou. O problema não é a agência em si: ela existe para reportar factualmente, e, quase sempre, ao minuto (ou de acordo com a sua agenda). O problema é que há, nas redacções, cada vez mais pouquíssima iniciativa, e a que resta é quase sempre olhada com desconfiança por um «quem mais está a falar sobre este ponto de vista?».
«O exclusivo transformou-se num “quem dá primeiro a notícia”, abrindo a porta à falta de precisão, de mínimos de investigação, ausência de contraditório, disseminação de informação incompleta, errónea e fake news. Isto quando esse exclusivo de “última hora” ou “ao minuto” não se transforma, enfim, numa massa uniforme e acrítica de notícias iguais reproduzidas, mais ou menos à letra, traduzidas para variadíssimas línguas no mundo inteiro»
Só isso pode explicar que o Público e o Observador tenham, por exemplo, acompanhado em directo, ao minuto, a viagem do multimilionário Richard Branson ao espaço no passado domingo. Não se pense que por estarmos a falar de Branson, de Elon Musk, Jeff Bezos, ou dos milionários que os media gostam de vender como os últimos Steve Jobs do deserto, os que «começaram do nada» e, a pulso, com muitos sacrifícios, chegaram às estrelas (à custa de muita exploração laboral e inúmeras ajudas dos estados em que operam) – não se pense que essa cobertura, afinal, seja muito diferente da cobertura mediática da prisão de Luís Filipe Vieira pela CMTV.
Enquanto redacções acompanham em directo aquilo que podemos simplesmente ver na internet (aliás, o próprio Branson transmitiu ao vivo), ou no The Guardian e na BBC (que, na verdade, têm o «seu» milionário de serviço coberto mediaticamente), há inúmeras histórias por contar e para as quais nunca há «espaço» ou «dinheiro» (nos media, espaço é dinheiro). Até a análise do momento fica por fazer com profundidade e relevância – e não, não é o Nuno Rogeiro na SIC que vai explicar como isto «é bom para economia».
É fácil chamar Luís Filipe Vieira de ladrão e depois aplaudir a «conquista do espaço» pelo Richard Branson. Lembro-me sempre dos dois mil milhões de compensação pela gestão ruinosa da linha de comboio Edimburgo-Londres ao fim de míseros três anos de concessão à Virgin Trains (que teve de ser renacionalizada em 2018). Ou dos processos de falência da companhia Virgin Atlantic, sediada nos EUA, que precisou de ajuda pública para pagar uma dívida de 93 milhões de dólares e estabelecer um plano de reestruturação, vendendo dois aviões Boeing 787 da sua frota. A Sky News reportava em Novembro que a venda dos aviões serviria para pagar parte da dívida de 170 milhões que a Virgin tinha ao fundo de investimento norte-americano Davidson Kempner Capital Management. A Virgin Australia também foi reestruturada. E no Reino Unido, o Supremo Tribunal permitiu um bail-out de 1.2 mil milhões de libras (de fundos privados, vá lá) para salvar o império de Richard Branson, que pediu ajuda ao governo logo no início da pandemia.
«Aquilo que nos foi vendido como um passo na “investigação científica” não foi mais do que um devaneio exótico pago (no meu caso, que vivo no Reino Unido) com os nossos impostos. Dizer que uma viagem onde nem sequer iam cientistas foi um passo para a “inovação aeroespacial” é atirar areia para os olhos dos que ficámos cá em baixo a ser explorados na terra»
Que isto não se leia, de todo, como uma defesa de Vieira; pelo contrário, apenas a análise da proporção entre a cobertura glamourosa das «excentricidades» de multimilionários estrangeiros, comparada ao sensacionalismo bacoco do «sultão dos pneus». Ao contrário de Vieira, nem casa para palheiro Branson ofereceu como hipoteca. Nem as suas inúmeras propriedades. Nem os balões. Nem os jets privados. Nem a sua companhia de telefone-internet-televisão por cabo. Nem a produtora de cinema e audiovisual. Nem a empresa de comboios. Nem a sua ilha no Caribe. Esta «burguesia do teletrabalho» na ilha privada das Caraíbas é que o(s) governo(s) não foram taxar.
Aquilo que nos foi vendido como um passo na «investigação científica» não foi mais do que um devaneio exótico pago (no meu caso, que vivo no Reino Unido) com os nossos impostos. Dizer que uma viagem onde nem sequer iam cientistas foi um passo para a «inovação aeroespacial» é atirar areia para os olhos dos que ficámos cá em baixo a ser explorados na terra. Aliás, tudo pode ser resumido na frase do próprio Branson: «Estamos aqui para tornar o espaço mais acessível a todos». Todos quem? Centenas de passageiros já compraram os bilhetes para o(s) próximo(s) voo(s) (não se lhes pode propriamente chamar «expedições»). E quem são? Ler jornais que não sejam do arco noticioso, ajuda. Por exemplo, a revista Semana, da Colômbia, revelava que o primeiro colombiano a ir ao espaço será provavelmente David Mendal, empresário bogotano em Miami, chairman de uma empresa de aviões privados e férias de luxo para executivos. Aqueles que conseguiram acumular riqueza e para quem 250 mil dólares por um bilhete «ao espaço», num ano de contracção económica em plena pandemia, é um valor insignificante.
A Jacobin Brasil trazia um interessante artigo sobre a colonização e privatização do espaço por Bezos, Musk e Branson, entre outros, dizendo «sim à exploração espacial e não ao capitalismo espacial». E na Salon, a escritora de ficção científica Sim Kern, que conhece por experiência própria o trabalho na NASA, explicava que a «corrida ao espaço» dos milionários é apenas um concurso de egos. «Branson e Bezos não estão a investir dinheiro para inovar na ciência ou expandir os limites da possibilidade humana. Estão a fazê-lo para serem o primeiro homem rico a brincar no espaço, por oposição aos astronautas da NASA que fazem ciência. E depois de brincarem por ali inutilmente, esperam convidar os seus amigos obscenamente milionários para fazerem o mesmo.» O turismo espacial é pago pelos milhões de trabalhadores que têm dificuldade em sobreviver aqui na terra. Se Bezos, Branson e Musk têm dinheiro para ir ao espaço é, talvez, porque não os estamos a taxar convenientemente.
Nada disto é discutido na cobertura mediática, bastante medíocre, até, deslumbrada por carros eléctricos (Tesla) ou comboios/aviões/telecomunicações (Virgin) que, como sabemos, serão sempre mais glamourosos do que o saloio rei dos pneus.
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