sábado, 12 de março de 2022

Existe “uma incompreensão na Europa sobre o nacionalismo ucraniano”

Oleksandr Kuchik, professor de História,s da Universidade Nacional Ivan Franko, de Lviv

Como olham um historiador e uma professora de Relações Internacionais para a invasão russa da Ucrânia? Uma discussão em torno do nacionalismo, da História da Ucrânia e da Rússia e do futuro entre ambos.

A História está a dar saltos a cada dia que passa na guerra da Ucrânia. Ao mesmo tempo, o mundo das últimas três décadas que todos julgavam conhecer sofre mudanças espectaculares. Uma grande nação europeia, com o maior arsenal nuclear do planeta, invadiu o vizinho para o submeter à sua vontade de criar uma esfera de influência. A NATO, embora sem se comprometer com uma intervenção directa, empenhou-se no apoio à Ucrânia. As maiores economias mundiais, bancos e grandes empresas fecharam-se à Rússia, num bloqueio impensável há apenas um mês.

É com este pano de fundo que nos sentamos a uma mesa com dois académicos da Universidade Nacional Ivan Franko de Lviv: o professor de História Oleksandr Kuchik e a professora de Relações Internacionais Marianna Gladish. Estamos em Lviv, bastião da identidade nacional ucraniana e do nacionalismo, motor de muitos dos acontecimentos que levaram à invasão russa em curso. E é pelo nacionalismo que começamos.

“Podem acusar-nos de nacionalismo, mas isso significa que estamos aqui em Lviv a preservar, e temo-lo feito há muitos, muitos anos, o espírito da Ucrânia”, começa por dizer Kuchik, naquela que é uma espécie de primeira tentativa de explicar aos europeus o que é ser ucraniano em Lviv. No extremo ocidental da Ucrânia, o sentimento de apego à ideia de uma Ucrânia independente, a todos os níveis, das potências que a oprimiram ao longo de séculos, com destaque para a Rússia, é enorme. Religião, percurso histórico, preferências políticas e cultura costumavam separar a Ucrânia em duas regiões distintas: uma de orientação mais ocidental, influenciada pela Europa Central; outra virada a Leste, com laços com a identidade eslava.

Kuchik considera estas divisões artificiais e acredita que “a Ucrânia é igual em Lviv, em Donetsk, em Sinferopol ou Sebastopol [duas cidades na Crimeia]”. “Depois da independência, os políticos tentaram separar-nos através do rio Dnipro, também pelo Dniester, tentaram dividir-nos através das crenças religiosas. Espalharam-se conceitos de círculos culturais que nos diziam que éramos muito diferentes, com histórias diferentes”, afirma.

A emergência de movimentos de inspiração fascista, sobretudo ancorados na memória histórica do Exército Insurgente Ucraniano de Stepan Bandera, e o seu papel, tanto nos protestos de 2014 como na participação da guerra através de batalhões de voluntários, alimentam os receios de que a Ucrânia se possa transformar em terreno fértil de organizações extremistas armadas. Essa percepção também tem funcionado como elemento central na narrativa criada pelo Presidente russo, Vladimir Putin, para justificar a invasão da Ucrânia, país que estaria tomado por neonazis.

Marianna Gladish, a professora de Relações Internacionais, considera que existe “uma incompreensão na Europa sobre o nacionalismo ucraniano”. Um dos argumentos principais entre os ucranianos é o reduzido apoio que partidos de extrema-direita recolhem nas eleições. Nas eleições legislativas de 2019, o Svoboda, o partido mais representativo desta franja, alcançou pouco mais de 2% dos votos, elegendo apenas um deputado. A académica não acredita que haja qualquer ameaça ao Estado a partir destes partidos. “Os nossos partidos de extrema-direita não podem ser acusados de terem feito ataques terroristas para ganhar projecção. Não se pode comparar com o IRA, por exemplo”, explica.

Putin e a “História”
A História, as suas interpretações e a sua instrumentalização têm sido factores determinantes no conflito actual. Poucos dias antes de lançar a ofensiva, Putin proferiu um discurso que correu mundo, ao longo do qual expôs alguns dos princípios que acabariam por orientar a sua acção face à Ucrânia. Referiu-se ao país vizinho como uma construção artificial, argumentando que a sua criação como entidade política se deveu a Lenine, e acorrentou a própria identidade russa à ucraniana.

É irresistível não confrontar um historiador, em Lviv, sublinhe-se, com esta lição de História “alternativa” dada por Putin. “Como historiador e professor de História, posso dizer que este estudante não estudou nada”, afirma Kuchik, notando que “a História é um instrumento muito poderoso”.

A visão idílica apresentada por Putin, de dois povos “irmãos”, cujas histórias individuais não podem ser separadas, é frontalmente rebatida pelos académicos ucranianos. “A Ucrânia tem uma história dura e difícil de relações com a Rússia, e não apenas nos últimos oito anos. É assim há séculos”, afirma o historiador, enumerando várias etapas, desde os tempos dos cossacos, passando pelo período da II Guerra Mundial, e pela Grande Fome, o Holodomor, da época estalinista.

Kuchik encara a História e a identidade russas como estando alicerçadas “a partir do conceito de unir as terras russas”, o que tem justificado as sucessivas guerras lançadas no Cáucaso, na Ucrânia e, no passado, na Polónia. “Esta identidade é criada a partir da invasão não apenas dos territórios, mas da extracção dos seus recursos, das suas civilizações”, afirma.

O passado ocupa grande parte da conversa, mas o futuro é também fruto de discussão. Enquanto há combates, bombardeamentos e mortes de civis, pode ser difícil olhar para um cenário de paz, mas é isso que os dois académicos tentam imaginar. O que serão as relações entre a Ucrânia e a Rússia depois de tudo isto? “Falar hoje de uma renovação de relações com um país que nos está a destruir é muito difícil”, começa por admitir Kuchik.

Uma pré-condição para que exista um qualquer reatar de relações reúne consensos. “As nossas relações futuras só podem ser reestabelecidas com uma Rússia democrática”, afirma Gladish, explicando que não se trata apenas do afastamento de Putin do poder. Seguem-se pedidos de indemnização, pagamento de reparações de guerra e condenação dos responsáveis por crimes contra a humanidade nos tribunais internacionais.

Ainda assim, observa a professora de Relações Internacionais, as novas relações que se vierem a estabelecer “não serão tão próximas como dantes”. Gladish considera que as acções da Rússia na Ucrânia, concentradas até ao momento no Leste, Norte e Sul do país – onde os laços com a Rússia são tradicionalmente mais fortes – estão a criar um ódio que irá durar gerações. “Tenho a certeza que quando a guerra terminar e houver novas sondagens acerca da proximidade à Rússia, não acredito que haja um número significativo” [de respostas positivas], diz a académica.

Ao lado desse ódio que deverá conviver durante gerações entre a maioria dos ucranianos, os dois professores não negam que possa subsistir quem continue a advogar uma ligação mais intensa. “Mesmo quando estão debaixo dos bombardeamentos há gente que continua a amar a Rússia e a amar Putin e temos de lidar com isso”, diz Gladish.

Um ponto que ambos entendem ser crucial é impedir que a minoria que permanecer na Ucrânia afecta a Moscovo não deverá ter capacidade de influenciar os desígnios políticos do país. “Não devem ser representados no Parlamento, não devem influenciar a direcção da política externa nem as negociações futuras com a Rússia”, defende a professora de Relações Internacionais.

Se as proibições parecerem muito duras, Oleksandr Kuchik tem uma boa solução: “Acredito que os ucranianos estão preparados para recolher donativos para um bilhete de ida para quem quer construir uma grande Rússia”.

Fontes:Público e Jornal de Negócios

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