O Compromisso para o Crescimento Verde (CVV) é um plano estratégico para o desenvolvimento de um futuro sustentável para Portugal, onde o crescimento económico dá as mãos a comportamentos ambientais responsáveis, contribuindo assim para a justiça social e a qualidade de vida das populações de hoje e das gerações futuras.
A mitologia do crescimento verde instalou-se nas narrativas sobre as economias do norte global. Supostamente construindo mais a partir de menos, as economias pós-industriais conseguiriam dissociar-se dos bens materiais e dos consumos de energia utilizados para a produção destes.
Serviços cada vez mais eficientes, tecnologias de informação e algoritmos passariam a ser o fator decisivo das economias, com práticas de reciclagem e reutilização a aliviar o fardo sobre os gastos materiais. Ficam assim bem longe os velhos tempos em que o progresso se media pela produção de aço e mineração de carvão.
A Comissão Europeia congratula-se com um crescimento económico de 61% nas últimas décadas, enquanto as emissões de gases com efeito de estufa diminuíram 23%. Já nos Estados Unidos, vários se deslumbram com o crescimento da economia americana ao longo das últimas décadas – apesar do uso de materiais ter-se mantido supostamente ao mesmo nível, ou até tendo mesmo decrescido.
Assim reza a lenda, e por isso não haverá razões para reconsiderar o modelo económico capitalista assente no extrativismo, se é que de facto esse extrativismo ainda existe, sequer.
As metas para a redução das emissões de gases com efeito de estufa estão seguras com o atual modelo, com a eficiência a conduzir-nos à superação da dependência da extração de recursos. Os planos de redução de emissões serão cumpridos, sendo o verdadeiro obstáculo ao cumprimento destas a nível global os países como a China que ainda não conseguiram atingir o virtuoso modelo ocidental.
Esta é uma narrativa conveniente, porque alivia do ónus de ter de ser mudado drasticamente o modo de produção e consumo. Ao apontar nesta direção, as economias do norte global continuariam o seu caminho iluminado, virtualmente não causando danos ambientais à medida que as novas conquistas digitais abririam o caminho para o crescimento dos Produtos Internos Brutos até ao infinito.
Tristemente, não passa de um álibi para a inação e para prosseguir o business as usual da acumulação de lucros sem fim. Os argumentos da narrativa caem por terra quando se considera a existência do trivial fenómeno económico conhecido por comércio internacional.
Quer os “progressos” sejam apontados nas emissões de gases com efeito de estufa, quer na utilização de materiais, os adeptos da mitologia do crescimento verde convenientemente ignoram o facto de que as décadas da suposta dissociação das economias em relação aos recursos naturais foram as décadas da deslocalização das indústrias de extração e dos antigos centros industriais para países do sul global como a China e o Bangladesh, protagonizada por empresas do norte global.
Colocando as indústrias mais destruidoras nos territórios do sul global, as emissões associadas à energia consumida e utilização de materiais para realizar a produção são contabilizadas nestes, com o fator extra de se gastar ainda mais energia para transportar os produtos finais para serem consumidos no norte global.
O crescimento via exportações de serviços a partir do norte global – quer sejam turismo, marketing ou serviços de aprendizagem automática – é o que permite pagar pelos bens agora importados. Rapidamente cai a fachada do crescimento verde, restando uma faceta da globalização no seu lugar.
O problema em contabilizar os consumos de energia e de materiais onde estes são produzidos ou extraídos é reconhecido e tomado em conta em análises sérias. O paper “Consumption-Based Accounting of CO2 Emissions” por Steven Joseph Davis e Ken Caldeira de 2010 dava conta de que 23% das emissões globais eram exportadas, em especial da China e de outros países industriais para os países desenvolvidos. Em países como o Reino Unido e a França, 30% das emissões eram exportadas em termos líquidos.
Já sobre o uso de materiais, no paper de Thomas Wiedmann e vários outros autores do ano 2015, “The Material Footprint of Nations”, foi mostrado que o uso de materiais nos países mais ricos na verdade aumentou, com a estimativa de que um aumento de 10% no Produto Interno Bruto traduz-se num aumento de 6% no uso de materiais. Medidas convencionais de contabilização de materiais que ignoram o uso de matérias-primas antes dos produtos serem exportados para países do norte global traçam um cenário de estabilidade ou mesmo decrescimento do consumo material ao longos dos anos.
No entanto, quando toda a cadeia de produção é considerada, a estreita ligação que existe entre o crescimento do PIB e a utilização de materiais é evidente. Esta tendência de crescimento aplica-se a quase todas as economias desenvolvidas importadoras de materiais manufaturados noutros países, como a dos Estados Unidos da América, a da União Europeia e a do Japão.
Qualquer que seja a métrica escolhida, o modelo de desenvolvimento é tudo menos verde e não se vislumbra qualquer mudança de sentido. Aumentos na eficiência no uso dos combustíveis fósseis têm dificuldade em transformar-se numa redução do uso destes, mas numa oportunidade para alimentar ainda mais o imperativo do lucro. Como o economista do século XIX Jevons notou paradoxalmente em relação aos ganhos de eficiência no uso do carvão: quando melhoramentos na tecnologia permitiam usos mais eficientes da matéria-prima, o resultado era aumentar os consumos carbónicos, não o contrário.
A soberania da lógica do lucro anula qualquer possibilidade de racionalização da forma como os recursos naturais são extraídos, transformados e consumidos. Quer através da obsolescência programada, da cultura do consumo em massa ou de outros mecanismos, as potencialidades tecnológicas e sociais degeneram sempre em apenas mais uma oportunidade de negócio.
Em Portugal, o discurso segue naturalmente a mesma dinâmica. A desindustrialização e a redução de emissões das últimas décadas é exposta como se de um progresso verde se tratasse. As divisas que foram obtidas por setores como o turismo serviriam na prática para manter um equilíbrio externo face às crescentes importações de produtos industriais de países do sul global – nunca quebrando a ligação umbilical à exploração desenfreada. Já as práticas no uso de materiais extraídos sem qualquer critério são complementadas com uma política de reciclagem e reutilização que pouco mais serve do que para enfeitar.
Agora, o discurso expande-se para o hidrogénio, que é posicionado para ilibar o velho negócio da energia fóssil com fachada verde. Mais uma oportunidade para Portugal estar na vanguarda do clichê mais atual da Comissão Europeia, superando a acima explicada pintura do resultado colateral do comércio internacional como “crescimento verde”, para agora mascarar de “ação climática” um novo negócio patrocinado pelo Estado.
Enquanto isso, os planos do Governo para esburacar o solo e o fundo dos mares em busca de minerais ganham força. Certamente um pequeno pecado a que o país se pode dar ao luxo, dado o excesso de virtude que será trazida pela “estratégia muito ambiciosa” da qual o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, se gabou na carta enviada a Greta Thunberg no ano passado.
A vontade de colocar o lucro acima dos limites naturais do planeta – mesmo quando isso implica o colapso da civilização como a conhecemos – está presente entre poderosos por todo o globo. A mitologia do crescimento verde surge como a desculpa perfeita para deixar tudo na mesma, ou até mesmo para intensificar o percurso suicida.
Não bastam afirmações e discursos sobre a vontade de fazer uma transição energética, esta tem que ser materializada em atos concretos de reconfiguração do sistema económico. Essa reconfiguração não para na simples intenção de repensar como usamos energia ou recursos minerais, passa também por tirar a promoção do lucro como motor da agenda pública.
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