Uma etimologia comum não significa uma política coerente. Entre as liberdades e o liberalismo, pode haver abismos, especialmente quando os liberais assumem o programa de um neoliberalismo cujas políticas, amplamente rejeitadas, precisam ser impostas por meios violentos.
O filósofo Grégoire Chamayou, autor de um livro importante sobre a genealogia do “liberalismo autoritário” (A sociedade ingovernável, Grégoire Chamayou, Ubu Editora, 2020), amplia seu trabalho de documentação e análise de uma ideologia cuja génese é necessário examinar sem o cacoete preguiço do “retorno aos anos 1930”, para compreender como ela poderia estruturar o mundo contemporâneo.
Para escrever Sobre o Liberalismo Autoritário, publicado pelas edições Zones, que ele por sinal dirige, o pesquisador comentou e traduziu dois textos conflitantes, ambos redigidos em 1932 por juristas e filósofos alemães. Um, de Carl Schmitt (1888-1985), conservador que aderiria ao nazismo em 1933; o outro, de Hermann Heller (1891-1933), militante de esquerda na república de Weimar e morto no exílio em Madri, onde, como judeu, buscava refúgio.
No discurso “Estato forte e economia sã”, pronunciado em 23/11/1932, diante de uma assembleia de empresários em Dusseldorf, Carl Schmitt diz que o Estado alemão, que ele vê como um Estado-Providência, curvou-se sob o suposto peso das exigências sociais e se transformou num Estado fraco e pesado, ainda que presente em cada vez mais terrenos. Ele opõe a este Estado “total” – num sentido “puramente quantitativo, relativo a seu tamanho, não à sua intensidade ou energia política” – um “Estado total qualitativo”, que diz explicitamente preferir. Chamayou descreve este último como um “Estado forte, que concentrará em suas mãos toda a potência da técnica moderna e os instrumentos de comunicação de massa; um Estado militar-mediático, guerreiro e propagandista, dotado da tecnologia de ponta em matéria de repressão dos corpos e de manipulação dos espíritos.
O que Schmitt diz aos empresários alemães, decifra o pesquisador, “é no fundo o seguinte: vocês querem ‘libertar’ a economia, querem acabar com o intervencionismo do Estado social, com os gastos públicos excessivos, com a carga fiscal relacionada a eles, com o Direito do Trabalho que os bloqueia etc. Já compreendemos. Mas precisam se dar conta de que, para obter tudo isso, ou seja, uma retirada do Estado da economia, será preciso algo muito distinto de um Estado mínimo e neutro”. Bem ao contrário, será preciso um Estado forte, capaz de silenciar as oposições sociais e políticas. Schmitt assegura a seu auditório que esta potência não penetrará pela porta das empresas e mercados.
Hermann Heller, opositor de longa data de Carl Schmitt, respondeu a este discurso constatando – explica Chamayou – “a emergência de uma nova categoria política, uma síntese estranha”, que ele nomeou de “liberalismo autoritário”. Uma fórmula que caracterizava, segundo ele, uma nova “vontade política”, da qual Schmitt tornou-se teórico e porta-voz, mas que já animava na prática a ação dos últimos governos da república de Weimar.
Qualificar a posição de Schmitt de “liberal”, mesmo agregando o adjetivo “autoritário” pode surpreender, já que ele atacava com frequência o liberalismo. Mas Heller queria sublinhar deste modo que Schmitt não repudiava de fato o liberalismo económico clássico, adepto de um estrito laisser-faire, ao constatar sua obsolescência.
Seu pensamento procurava dar uma nova forma e um novo impulso ao liberalismo: os aportados pelo “novo liberalismo” alemão, renomeado mais tarde como “ordoliberalismo”. 1932 é também o ano de nascimento do neoliberalismo alemão, sob a égide em especial de Alexander Rüstow e Walter Eucken. Ambos citam Schmittee que partilha o seu diagnóstico e sua crítica a um Estado-Providência, que teria se tornado expansionista porém impotente.
Para estes liberais, a crise, que na Alemanha remontava (e se agravava) ao início dos anos 1930, não tinha explicação no campo teórico mas bebia na fonte do “intervencionismo e subvencionismo da mão pública”, para usar as palavras de Rüstow. O título de uma de suas conferências expõe a orientação que ele buscava dar a seu país: “A ditadura nos limites da democracia”. E o contrário, seria possível acrescentar…
Os “males que outras teorias económicas atribuíam ao capitalismo”, comenta Chamayou, “eram associados por Rüstow e seus colegas ao Estado; mas em especial à democracia e às classes trabalhadoras, os sindicatos e suas lutas”. Este “neoliberalismo”, que herdamos, “não rejeita todo tipo de intervenção do Estado. Ele frequentemente exige, ao contrário, “um exercício mais autoritário do poder de Estado”.
Rüstow reivindica, portanto, um “intervencionismo liberal”. Ao contrário dos projetos de criação de empregos diretos formulados pelos sindicatos, ele privilegia um plano de subvenção ao capital, não de investimento público sem intermediários. Em consequência, escreve Chamayou, “o neoliberalismo, na forma em que emerge na Alemanha em 1932, define-se como sendo, ao mesmo tempo, intervencionista no plano económico e autoritário no plano político”.
Importa, pois, insistir sobre estes dois aspectos conjuntamente, já que a historiografia do ordoliberalismo tendeu à negligenciar o segundo. Na verdade, para os neoliberais, escreve o pesquisador, “pode-se reabrir as comportas de despesa pública e do crédito – desde que se esmague a luta de classes com um calcanhar de ferro”.
Para conduzir esta proposta, Schmitt, que no outono de 1932 ainda não apoiava o Führer, mas defendia um poder presidencial verticalizado, que colocasse seu “aparelho propagandístico e repressivo a serviço de um programa econômica liberal”, procura reinterpretar a noção de estado de emergência, acrescentando ao estado de emergência securitária um estado de emergência econômica.
Este ponto é crucial, julga Chamayou, quando escreve que “o gesto conceitual decisivo de Schmitt não consistiu apenas em colocar a exceção no centro da soberania – o que era há muito tempo visto e comentado – mas também, e sobretudo, a estender o campo desta exceção à decisão económica”.
“Decretinismo”
Na prática, o programa econômico deflacionista então decidido pelo chanceler Brüning, nota o pesquisador, “atingiu com um golpe duro as classes populares, sem no entanto controlar a crise econômica, contribuindo a uma polarização e ao derretimento do bloco burguês sobre o qual ele se apoiava.
O poder foi então tomado por aquilo que poderíamos chamar de uma engrenagem austeritária-autoritária: os efeitos socialmente desastrosos do programa econômico rejeitado do chanceler corroeram o pouco de apoio político que de que ele ainda dispunha, de maneira que logo teve de manter seu autoritarismo para impor medidas do mesmo tipo, que produziram os mesmos efeitos, e assim sucessivamente”.
Ao contrário de seus adversários políticos, à sua esquerda ou à sua direita, este liberalismo autoritário não podia apoiar-se num bloco eleitoral robusto, e “não tendo nem partido, nem movimento, nem apoio popular, só lhe restava o Estado na condição de mero aparato”
Hermann Heller perguntava-se, no texto em que respondeu a Schmitt, sobre a viabilidade do liberalismo autoritário como estratégia política. Ele constatava: ainda que este poder se proclame e se creia forte, ele se revelará politicamente frágil.
Primeiro porque, como sua política choca-se diretamente com 90% da população, este poder tende a perder toda sua base de massas. E é o estreitamento de seu apoio político que explica seu endurecimento autoritário: ninguém pode ser forte politicamente se não desperta um apoio vasto, difícil de obter quando se busca uma política econômica liberal em contexto de crise.
Além disso, porque coloca sua crença em ordens e decretos de emergência com soluções milagrosas à crise política. É o que Heller denomina “decretinismo” (Dekretinismus). Palavra formada de “decreto” e “cretino”, ela se aplica, segundo Chamayou “à estupidez de crer que um poder contestado pode impor duradouramente sua vontade por meio de decretos presidenciais”. Para Heller, o liberalismo autoritário não pode, portanto, ser nada mais que um momento transitório que desemboca numa situação revolucionária ou no que ele designa por uma “comunhão racial autoritária”.
Sabemos hoje o fim da história. Karl Polanyi, em A Grande Transformação, resume-a nestes termos: “A obstinação com a qual, durante dez anos críticos, os partidários do liberalismo económico sustentaram o intervencionismo autoritário, a serviço de políticas deflacionistas, teve por consequência pura e simples um enfraquecimento decisivo das forças democráticas”.
Os ingredientes estavam reunidos para a formação do que Polanyi chama de uma “situação fascista”, na qual os “bastiões da democracia e das liberdades constitucionais”, estando já vastamente abalados, ficam suscetíveis de serem rapidamente sacudidos por uma extrema direita que até muito pouco tempo antes era minoritária.
No início dos anos 1930, na Alemanha, “longe de ter constituído uma defesa diante do nazismo, o liberalismo no poder abriu-lhe o caminho”, escreve Chamayou, sem julgar que o destino estivesse “predeterminado”, nem esquecer de mencionar um outro elemento-chave: “a linha política suicida do Partido Comunista Alemão, ditada por Stálin”. Ao se afastar igualmente dos nazistas e dos social-democratas, o partido bloqueou, na prática, qualquer frente comum contra a ameaça fascista. “A partir daí, a sorte do mundo havia mudado”, escreve o pesquisador.
Enquanto isso, ao contrário das análises de Polanyi, formulava-se um contra-discurso para “livrar o liberalismo autoritário de sua responsabilidade”. Construído em especial pela pluma de Friedrich Hayek, que popularizou a tese em 1944, em O caminho da servidão, este discurso fazia do nazismo acima de tudo um “socialismo”, que estendia a “democracia sem limites” supostamente característica da República de Weimar.
É difícil traçar qualquer linha contínua, ou mesmo pontilhada, entre ontem e hoje, sem levar em conta as evoluções do capitalismo ou as transformações dos Estados-Nações e da democracias liberais. E qualquer paralelo entre nossa contemporaneidade e o período singular do início dos anos 1930 é ainda mais delicado que o estabelecido entre a grande crise de 1929 e o nazismo. É uma associação que pode abrir espaço para generalizações abusivas sobre as relações entre as crises econômicas e a ascensão do fascismo.
Mas sem chegar a afirmar que estaríamos agora numa situação de “recidiva”, para usar o termo do filósofo Michaël Fœssel, em relação ao que se produziu nos anos 1930 na Alemanha, Grégoire Chamayou julga necessário associar “toda a ambiguidade do neoliberalismo em sus relações diante do poder de Estado”, a que assistimos hoje, “à emergência ou reemergência de formas de exercício do poder de Estado que são ao mesmo tempo liberais em termos de programa econômico e, em diversos graus, autoritárias no plano político”.
Para o pesquisador, “após décadas de contrarreformas socialmente devastadoras, o neoliberalismo tardio encontra-se afetado por uma “crise de governabilidade de grande amplitude”. E responde a elas por meio de um “neoliberalismo autoritário de múltiplas facetas”.
Para o filósofo, ao lado dos exemplos contemporâneos de Bolsonaro, Trump ou Salvini, “existe uma versão de extremo centro, que partilha com seu predecessor dos anos 1930 a pretensão de poder barrar, munido deste tipo de programa, o caminho da extrema direita”.
Para Chamayou é também chocante constatar o ressurgimento, “na boca dos representantes atuais desta corrente, de fórmulas que, sem que tenham consciência, os vinculam, palavra por palavra, ao discurso de seus ancestrais políticos”.
Entre estas fórmulas encontra-se a denúncia do “iliberalismo”, que o presidente francês Emmanuel Macron transformou em pau para toda obra. Ora, este vocabulário encontra-se de maneira notável na escrita de um dos fundadores do ordoliberalismo: Wilhelm Rôpke, para quem o “ascenso das massas é a causa principal do iliberalismo”. E, em consequência, “ainda que o liberalismo exija a democracia, é preciso impor limites e garantias para assegurar que o liberalismo não seja engolido pela democracia”.
Em sua obra anterior, Grégoire Chamayou lembrava “que a transformação de Estado liberal em Estado total autoritário é possível e não é acidental, ainda que isso não permita concluir que o liberalismo é por essência um cripto-fascismo, nem que o fascismo seja a simples continuação da economia liberal por outros meios ideológicos”.
Mas, adiante, ele constata que, diante da vontade do Estado neoliberal, de fazer aprovar a qualquer custo um programa econômica maciçamente rejeitado, é “uma limitação aguda da democracia que esta agenda seja mais uma vez preconizada”
Sem comentários:
Enviar um comentário