segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Na base do sucesso das vacinas da covid-19 está uma cientista que não desistiu do ARNm

Ouvimos falar da BioNtech, Moderna, Pfizer, dos líderes das empresas que produziram as vacinas contra o coronavírus. Mas a tenacidade de uma investigadora foi fundamental para se ter chegado aqui.

Foto: Katalin Karikó trabalha há 30 anos na tecnologia do ARNm

A história do casal de cientistas alemães de origem turca que dirigem a BioNtech, a empresa que desenvolveu a vacina contra a covid-19 a que a Agência Europeia do Medicamento deve dar luz verde nesta segunda-feira, ficou-nos marcada na memória como um exemplo feliz do sucesso de uma tecnologia nova, a do ARN mensageiro (ARNm), e uma história pessoal positiva. Mas por trás de Özlem Türeci e Ugur Sahin está outra história marcante, a de uma cientista húngara que acreditou sempre no potencial do ARNm, mesmo que isso significasse a sua humilhação profissional durante anos.

Hoje, Katalin Karikó, de 65 anos, faz parte da direcção da BioNtech (que tem um acordo de produção e distribuição da sua vacina contra a covid-29 com a multinacional farmacêutica Pfizer) e tem a satisfação de ver a tecnologia na qual começou a trabalhar ainda na Universidade de Szeged, na Hungria, usada numa vacina capaz de ajudar a humanidade – que era o que ela sempre quis.

A vacina da Moderna, que teve aprovação para uso de emergência durante a pandemia nos Estados Unidos na madrugada de sábado, e que deverá ter uma autorização semelhante na União Europeia, após uma reunião da comissão que a está a avaliar na EMA, a 6 de Janeiro, baseia-se também no trabalho dela e de Drew Weissman, na Universidade da Pensilvânia, nos EUA.

O ARNm é uma molécula que copia as instruções do código de ADN, que estão no interior do núcleo das células, para outras estruturas celulares, os ribossomas, onde são produzidas proteínas. Quando foram criadas formas sintéticas de ARNm, em 1961, os cientistas logo pensaram usá-las para pôr as células a fabricar substâncias terapêuticas. No caso das vacinas para a covid-19, as células produzem uma proteína que o novo coronavírus tem à superfície. Assim, treinam o sistema imunitário para reconhecer o vírus, em caso de infecção.

Digno do Nobel

O avanço de Karikó e Weissman, de que hoje se fala como merecedor de um Prémio Nobel, foi concretizado num artigo científico de 2005, numa altura em que esta área de investigação estava praticamente morta. Katalin Karikó tinha sido despromovida pela Universidade da Pensilvânia por insistir em trabalhar no ARNm, quando nem conseguia bolsas de investigação. Ganhava nessa altura menos do que um técnico de laboratório, contou à Wired.

No artigo, os cientistas relatavam uma solução para ultrapassar o problema que, desde que foi descoberto o ARN mensageiro, em 1961, tinha travado a sua aplicação terapêutica: quando era injectado no organismo, o sistema imunitário considerava-o uma invasão e destruía-o. A resposta inflamatória podia até pôr em risco a vida do doente.

A novidade apresentada por Karikó e Weissman foi a criação de uma molécula de ARNm artificial que pode ser administrada de forma segura. Se se pensar nela como um colar, em que cada conta é uma letra ou base química, o que os cientistas fizeram foi alterar uma das contas da molécula – a uridina. Parece igual, mas já não desencadeia rejeição.

“Percebemos na altura que isto era muito importante e que podia ser usado para vacinas e terapias. Portanto, escrevemos um artigo, pedimos uma patente, criámos uma empresa e descobrimos que não havia interesse nenhum nisto. Ninguém nos convidou para ir falar disto a lado nenhum, nada”, recordou Katalin Karikó, em declarações à revista Wired.

Face ao desinteresse na altura, a Universidade da Pensilvânia vendeu a patente pedida por Karikó e Weissman, que deixaram de ter controlo sobre ela.
O início das duas empresas

Apesar desse desinteresse por algo que parecia então ficção científica, alguém estava, no entanto, a prestar atenção – verdadeiros nerds, como os cientistas que viriam a fundar a Moderna, nos EUA, e Ugur Sahin, o médico alemão que é o administrador da BioNtech e é viciado em manter-se a par de tudo o que sai nas revistas de investigação de medicina, diz o Financial Times, que esta semana escolheu o casal alemão de origem turca à frente da BioNtech como pessoas do ano.

Derrick Rossi, então bolseiro pós-doutoramento na Universidade de Stanford, nos EUA, foi quem começou a sonhar alto ao ler o artigo de Karikó e Weissman – embora na altura estivesse mais a pensar em criar células estaminais com características determinadas à partida usando a tecnologia de ARNm. Rossi foi um dos fundadores da Moderna, em 2010, criada especificamente para desenvolver terapias com base na tecnologia do RNA mensageiro.

Sem um único medicamento no mercado até agora – a vacina contra a covid-19 é o primeiro produto para o qual a Moderna tem autorização de comercialização, embora seja ainda provisória, tal como acontece com a da BioNtech-Pfizer, com carácter de urgência por causa da pandemia –, a Moderna distinguiu-se por uma política de comunicação comercial agressiva, seguida pelo seu administrador, Stéphane Bancel. Esta tem-lhe permitido convencer multinacionais farmacêuticas e investidores a canalizar grandes somas para a empresa, confiando que têm uma plataforma tecnológica que pode ser adaptada para vários tratamentos, segundo o site especializado STAT news. A área da oncologia é aquela em que foi feita a aposta inicial, tanto na Moderna como na BioNtech. 

Este ano, a Moderna chegou a valer 35 mil milhões de dólares – antes mesmo de ter um único produto no mercado, recorde-se. Recebeu também cerca de 2,5 mil milhões de dólares do Governo norte-americano para desenvolver a vacina contra a covid-19, que agora teve autorização de emergência.

A BioNtech, de Özlem Türeci e Ugur Sahin, seguiu um caminho diferente. O casal de cientistas apaixonado pela imunologia criou esta empresa em 2008 com o objectivo de desenvolver tratamentos individualizados para o cancro com base na tecnologia do ARNm. Tem centenas de artigos científicos publicados, centenas de patentes pedidas, investiu na formação e captação de jovens investigadores, com apoios do Estado alemão para isso.

Mas para a sua solidez financeira foi fundamental o apoio de dois irmãos gémeos milionários da Baviera, Andreas e Thomas Strüngmann, que fizeram fortuna ao venderem a sua empresa de medicamentos genéricos ao grupo farmacêutico suíço Novartis. Os irmãos Strüngmann dedicam-se desde então a financiar empresas de biotecnologia, algo pouco comum na Europa.

O apoio da Pfizer permitiu-lhes trabalhar sem os apoios dos EUA para desenvolver a vacina da covid-19 – a Pfizer, que é uma gigante farmacêutica com outros meios que não estão ao alcance da Moderna, também se manteve de fora dos apoios estatais.

Mas a realidade do clima de investimento é bem diferente nos dois lados do Atlântico, e isso pode ser apreciado pela diferença na dotação dos orçamentos para a investigação e desenvolvimento da Moderna e da BioNtech nos últimos três anos, faz notar o Le Monde: 1400 milhões de dólares na empresa norte-americana e 490 milhões na BioNtech.

A verdade é que tanto a BioNtech como a Moderna operam num sector de nicho, em que o sucesso com a vacina da covid-19 abre tantos horizontes que há quem fale numa revolução para a medicina. Vão longe os tempos em que Katalin Karikó era desconsiderada por insistir numa tecnologia de que ninguém tinha resultados. Em 2013, quando aceitou o convite da BioNtech e deixou a Universidade da Pensilvânia, gozaram com ela. “Riram-se de mim e disseram: ‘A BioNtech nem sequer tem um site’”, contou à Business Insider. Quem está a rir-se agora?

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