Conversámos com o geógrafo Álvaro Domingues sobre o que vai mudar nas cidades e os desafios a enfrentar no pós-pandemia.
A forma como olhamos para as cidades e para a habitação mudou com a pandemia de Covid-19. Com o confinamento e o teletrabalho, as ruas, as autoestradas e as cidades ficaram mais silenciosas e vazias. Os espaços das casas tiveram de ser reestruturados para se tornarem, muitas vezes, escritórios, salas de aula e espaços de lazer e descanso. Também o ambiente, a natureza e as áreas públicas parecem ter ganho uma nova importância.
Para perceber melhor os novos desafios que vamos ter pela frente para reorganizar as cidades no futuro, estivemos à conversa com o geógrafo Álvaro Domingues, professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e investigador no Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo.
Saldo Positivo (SP): A forma como as pessoas organizam as cidades está em transformação?
Álvaro Domingues (AD): Sempre esteve. Nós não podemos pensar que o território é uma espécie de palco que está montado e que, no dia-a-dia da sociedade, os atores vão para o palco. Aquilo que nós chamamos de território, incluindo o espaço urbano, está a ser constantemente produzido e modificado pela forma como a sociedade se organiza.
Imagine-se, por exemplo, o que vai significar a produção de energia a partir do hidrogénio, ou a partir de outra fonte renovável, que retire os problemas todos que neste momento existem em relação ao CO2, ao aquecimento da atmosfera e às mudanças climáticas.
Quando nós tivermos energia limpa e, sobretudo, se o custo dessa energia for muito barato, nós poderemos assistir a profundas mudanças, que não estamos longe de imaginar, em relação à forma como nos vamos movimentar e organizar.
“Aquilo que chamamos de território, incluindo o espaço urbano, está a ser constantemente produzido e modificado pela forma como a sociedade se organiza”.
SP: E a pandemia por Covid-19 vai determinar comportamentos diferentes em matéria de mobilidade?
AD: Não estou muito seguro acerca disso. A pandemia acelerou muito o uso intensivo de determinadas ferramentas, como a videoconferência e o trabalho à distância, mas, simultaneamente, evidenciou as limitações dessas mesmas ferramentas.
Não creio que no futuro o teletrabalho seja maioritário, até porque, após este longo período de confinamento, uma coisa que ficou clara foi a necessidade de estarmos uns com os outros. E isso é extremamente importante nas mais diversas profissões.
Nos últimos tempos, lembrei-me várias vezes de uma letra de uma música dos Diabo na Cruz que fala no mundo todo numa vidraça. E a vidraça é o computador ou é o iPad. Tudo convergiu para a vidraça: os gestos do quotidiano, a vida pessoal, profissional e até a cultura, por exemplo, com concertos online. Tudo era a vidraça. E, de repente, há um enjoo de vidraça, já não se suporta a vidraça. Creio que essa familiaridade forçada, muito rápida e extensiva a várias atividades do dia-a-dia acabou por cansar.
Ouvi isto de uma psicóloga: nós temos a ideia de que vivemos um pesadelo, porque tudo se complicou. Houve dramas pessoais. Houve gente que perdeu familiares, que perdeu amigos. Houve gente que ficou deprimida, que não se conseguiu adaptar a esta nova forma de trabalhar. Houve, sobretudo, gente que perdeu o emprego, que perdeu dinheiro. Portanto, estão aí os indicadores sociais, estão aí os indicadores económicos para ver o estrago imenso que isto produziu. Então, eu diria que não se aprende muito com os pesadelos. Os pesadelos, queremos é sair deles.
Não é a questão de voltar ao que era, nunca se volta ao que era. Aquilo que nós chamamos de “a evolução dos tempos” nunca é um retorno àquilo que era. O Covid não é a gripe espanhola, não é a peste negra. Não podemos pensar que a conjuntura de séculos ou décadas atrás é a mesma de hoje. Não é. As coisas são dinâmicas.
Estou com uma grande curiosidade, como todos nós acho, para ver o que vai acontecer. Não agora, a quente, enquanto estamos a inventar respostas, enquanto estamos a lamber feridas e a tentar perceber a dimensão dos estragos causados. Diria que agora não é a melhor altura para fazermos futurologia.
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SP: Vamos ter de esperar para ver como as cidades se vão reestruturar e reequilibrar?
AD: Vamos ter de esperar e não há um antes e um depois. Há processos, mais ou menos acelerados, uns que são disruptivos, outros que são evolutivos. Há, como sempre houve, uma evolução, mais ou menos tumultuosa, mais ou menos complexa, mais ou menos contraditória.
Quando nós ouvimos conversas sobre o antes e o depois do Covid e se fala sobre a mobilidade, as cidades e a sociedade, eu pergunto: ninguém se lembra que há ricos e pobres? Ninguém se lembra que a sociedade não é uma massa.
A sociedade não se organiza como se organiza um formigueiro ou uma colmeia de abelhas. A sociedade é extremamente dinâmica, extremamente estratificada, é contraditória, é desigual e é injusta.
SP: Considera que essas assimetrias ficaram mais visíveis com esta pandemia?
AD: Quem tem um rendimento seguro, quem tem meios de sobrevivência que não dependem, pontualmente, do salário de todos os meses, tem outra capacidade de se mexer, de recorrer a serviços médicos, de organizar a sua vida, ou até de se mudar. E quem não pode, que infelizmente é a maioria, sujeita-se.
A propósito da discussão da manutenção do número dos infetados, na grande Lisboa, por exemplo, as imagens que vemos das pessoas, às 5 e 30 horas da madrugada, à espera de um comboio, são pessoas que têm empregos precários, que têm empregos mal pagos, que têm jornadas de trabalho muito extensas e que não têm dinheiro para viver em Lisboa. Portanto, vivem algures onde conseguem uma renda suportável. E, por isso, passam uma boa parte do dia, às vezes quatro horas, em viagens.
SP: Aumentar e melhorar a rede de transportes públicos, à escala metropolitana, é um ponto-chave na mobilidade da cidade?
AD: Sempre foi. Em Lisboa, por exemplo, se tivéssemos uma imagem da área metropolitana, esta seria um ovo estrelado. A gema é uma área relativamente pequena e está toda no município de Lisboa, onde se concentra o emprego e não estamos a falar de algum emprego em especial, não, estamos a falar de todo o emprego.
Nós estamos num país macrocéfalo, desde o Afonso Henriques, e, portanto, tudo aquilo que é ministérios, direções gerais, institutos do Estado, etc. está em Lisboa - centenas de milhares de empregos. A isso somam-se os grandes serviços e equipamentos, o gigantismo dos hospitais, das universidades, o setor da economia financeira e não financeira, ou seja, sedes de empresas e bancos. É a tempestade perfeita.
Temos uma sobre-aglomeração de atividades e, portanto, a geografia do emprego está muito desequilibrada. Este hipercentro cria um campo de gravitação enorme, atrai trabalho, desde o mais qualificado até quem se ocupa da logística das limpezas, da manutenção de edifícios, da alimentação. Mas essa aglomeração valoriza o custo do solo e expulsa quem não pode pagar. Por isso, as pessoas vivem cada vez mais longe, porque só aí encontram preços compatíveis com aquilo que ganham. E, portanto, a procura de transportes aumenta. E de que maneira.
Há um efeito geométrico no ovo estrelado, à medida que nós nos afastamos do centro, o arco da circunferência é cada vez maior, ou seja, a área a servir por transportes em termos de quilómetros quadrados é cada vez maior, porque o raio do círculo é cada vez maior. É uma questão básica de geometria.
A situação de Lisboa, na minha opinião, é incomportável, não se pode manter. Mais do que melhorar o sistema de transportes coletivos, o que nós temos de pensar verdadeiramente é como descompactar o emprego de Lisboa. Não é apenas alimentar o modelo tal como ele está, é tentar invertê-lo.
“Temos uma sobre aglomeração de atividades e, portanto, a geografia do emprego está muito desequilibrada”.
SP: A importância da relação das pessoas com a natureza tornou-se bastante evidente com esta pandemia. Poderemos assistir, nos próximos tempos, a uma fuga para o campo, onde as pessoas podem vir a ter uma maior qualidade de vida?
AD: No campo tem melhor qualidade de vida quem já tem qualidade de vida. Portugal foi o último país rural da Europa. E o seu passado recente, de país rural e agrícola, era miserável. Por isso, emigramos todos. Isto aconteceu com uma velocidade incrível nos anos 60.
Nós temos uma visão romântica do campo. É fácil ver isso na publicidade do turismo rural, nos filmes, nas novelas. A própria agricultura, que durante séculos era o sustento económico do campo, não tem nada a ver com essa imagem idílica. Para mim o campo é um estado de espírito, um resort. Não vivo bem com essa palavra.
SP: Muita gente esteve confinada entre quatro paredes, muitas vezes sem varanda…
AD: São as limitações de um modo de urbanização híper denso e, ao mesmo tempo, com edifícios que são caixotes e apartamentos que são caixas. E, na área metropolitana de Lisboa, a maioria, infelizmente sem varanda.
Nessa área metropolitana, houve um crescimento urbano explosivo, que já vem desde os anos 70. É curioso porque há uma viragem incrível no mapa da demografia em Portugal nos anos 70. E faz-se, sobretudo, em função de dois destinos: a emigração e o aparecimento do emprego nos serviços, na grande Lisboa, que estava a industrializar.
A literatura dos anos 60 e 70 mostra que os problemas da grande Lisboa eram produzir habitação para as pessoas que não tinham acesso a rendas no mercado normal, portanto produziram-se coisas gigantescas, como o plano integrado de Almada. Depois de atravessar a ponte, vê-se um magote impressionante de prédios e o mesmo observa-se na margem norte, em todo o lado.
Estes espaços híper construídos, com uma falta muito grande de jardins, de locais arborizados e de locais para passear são aquilo que nós denominamos de urbanidade dura. E depois, ao mesmo tempo, há uma rigidez total da casa que não se pode aumentar. Muitas vezes, o máximo que se consegue fazer é aumentar o espaço interior utilizando a marquise, mesmo que isso signifique ficar com alguns problemas de luz e de arejamento. Depois, há a questão da qualidade da construção – ouvem-se os barulhos dos vizinhos de cima e de baixo.
SP: Devido à conjuntura que vivemos, tudo isto se tornou mais evidente agora…
AD: Tornou-se mais evidente, mas nós vivemos apenas uma fase moderada disso. Se formos para áreas mundo, onde está a maior parte da urbanização, como o Brasil, a Índia, etc, vemos o que é a urbanização da pobreza. As favelas, os bairros de lata e todos esses nomes que, por esse mundo fora, exprimem aquilo que estatisticamente é a maior parte da urbanidade do mundo.
São os pobres, são as barracas, é a construção precária, é a falta de infraestruturas, é a insalubridade, é um mundo que, muitas vezes, é folclorizado. A favela, por exemplo, é muitas vezes apresentada como se fosse um local de intensa sociabilidade, alegre, etc. Ou então, não se fala disso.
Basta ver os relatórios da ONU Habitat, quando saiu aquela frase que dizia que mais de 50% das pessoas viviam em cidades. Afinal isso queria dizer que a maior parte da urbanização no planeta é a urbanização da pobreza. Não são os arranha-céus, no Dubai, ou aquela urbanização híper compacta da urbanidade chinesa que apareceu nos últimos vinte anos. São os pobres de toda a América Latina, de África, de uma boa parte do sudoeste asiático. É um processo rapidíssimo de urbanização, sem políticas públicas à medida da procura do alojamento.
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SP: Poderemos olhar para estes tempos conturbados que vivemos como uma oportunidade para repensar as nossas cidades?
AD: Não sei. Isto que estamos a falar depende de decisões políticas. Não é de um dia para o outro que se mobilizam dinheiros e que se desenvolvem políticas. Isto não é uma coisa que muda, porque mudam os atos de cada um. Desengane-se quem pensa isso.
Nós estamos em plena globalização, o que se passa num país já não depende da sua vontade, depende de um processo sistémico ao nível do globo.
No Brasil, por exemplo, aquela forma de governo e o modo como a economia brasileira está inserida na economia global, exportando, sobretudo, matérias-primas e produtos alimentares, como soja e gado, não deixam muito de renda no país. A isto soma-se uma urbanidade super problemática, onde os indicadores de pobreza são enormes. Como mudar uma coisa destas? Não faço a mínima ideia. Na Índia, passa-se a mesma coisa. Não estou a falar da Europa mais ou menos rica.
As soluções têm de ser pensadas para espaços específicos. Aquilo que pode ser uma solução para uma determinada situação em Vila Nova de Gaia, Loures, Lisboa ou Faro pode não ter qualquer sentido na cidade do México, ou em São Paulo.
O facto de nós constatarmos questões que parecem bastante semelhantes a nível global não quer dizer que as soluções sejam as mesmas. Nós, às vezes, embarcamos com muita facilidade em visões mais ou menos utópicas que habitualmente vêm do lado da tecnologia. Mas o espaço urbano é uma construção política também, implica decisões, implica investimentos, implica hierarquias.
Não podemos equacionar as cidades, as energias limpas, como se fossem objetos independentes. Estamos a falar, no caso da urbanização, daquilo que é a forma mais complexa de organização dos humanos. E, sendo uma coisa coletiva, depende de decisões coletivas e isso é o lugar da política. Seja da política bem organizada, ou da política desastrosa e corrupta. Mas é o lugar da política, não há outra forma de implementarmos essas decisões.
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