sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Neil Young ou Joe Rogan? O Spotify escolhe o dinheiro


O veterano Neil Young anunciou a retirada da sua obra do Spotify em protesto contra a disseminação de teorias de conspiração no mais popular podcast da plataforma. Outros artistas seguiram-no. Mas o gigante tecnológico sueco prefere defender a sua galinha dos ovos de ouro, escolhendo ver-se como mero difusor em vez de se ver como o ‘publisher’ que, neste caso, é. Explicamos o que se está a passar

A conversão do planeta ao streaming elevou plataformas como o Spotify à condição de poderosas máquinas de difundir cultura. Ao prazer da descoberta junta-se a extrema conveniência do algoritmo, sempre capaz de surpreender com sugestões que soam exatamente àquilo que apetece ouvir em cada momento. Seja música ou podcasts da mais variada natureza. É um negócio de milhões, claro, já que, ao contrário do que sempre aconteceu na indústria da música quando o modelo de negócio assentava na distribuição de produto físico, o território deixou de estar limitado por fronteiras ou oceanos e passou a ser verdadeiramente global – o Spotify está hoje presente em mais de 180 países e oferece mais de 82 milhões de canções de praticamente todas as editoras ao cimo da Terra a cerca de 406 milhões de utilizadores ativos, 180 milhões dos quais pagantes. Nunca nenhuma cadeia de lojas de música, por mais poderosa que fosse, teve tamanho alcance territorial, tantos clientes e tão vasto stock.

Contudo, pela primeira vez desde que foi criado em abril de 2006 por Daniel Ek, o serviço de streaming sueco pode estar a ver as suas “prateleiras” lentamente a esvaziarem-se. A 26 de Janeiro, o veterano Neil Young dirigiu uma carta aberta ao Spotify através da qual protestava contra o facto da plataforma albergar o podcast de Joe Rogan, acusando-o de veicular informação falsa e, na sua opinião, muito perigosa sobre as vacinas, dando voz a negacionistas. “Eles podem ter Rogan ou Young, mas não ambos”, rematou o rocker canadiano na missiva em que instruía o seu management sobre como proceder. De repente, o impensável sucedeu: a vasta obra do músico – que compreende mais de 40 álbuns de originais e várias dezenas de registos ao vivo, compilações, bandas sonoras, etc. – desapareceu do Spotify dando início a uma controvérsia que já teve como consequência a exigência de outros artistas de referência para que o serviço retire também as suas obras do seu gigantesco catálogo.

A questão que se levanta é: porque é que uma plataforma que se apresenta como a mais poderosa no universo da música, como primeira responsável por ter devolvido à indústria musical o sentido ascendente dos seus gráficos financeiros, prefere ficar do lado de um podcaster do que do de um artista – que na verdade já nem está sozinho nesta luta – com o exato perfil que se enquadra na sua filosofia? (isto é, um catálogo vasto, uma carreira longa, uma significativa, global e leal base de fãs).

Como resposta a esta crise, o Spotify anunciou que passará a estar atento a “conteúdo perigoso” e que anexará um aviso a qualquer conteúdo que se proponha discutir a pandemia, remetendo os seus utilizadores para um novo agregador de informação sancionada sobre a covid-19, algo que a assessora de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, classificou como “um passo positivo”, dando a entender que a mais alta autoridade americana está atenta ao desenrolar de toda esta questão.

Ao mesmo tempo que não disfarçava que essas eram meras medidas de contenção de uma potencial crise, Daniel Ek fez igualmente saber que, no fundo, se trata apenas de uma questão de liberdade de expressão e que o Spotify não pode nem deve tornar-se censor de conteúdos e que, pelo contrário, o seu dever é “apoiar a expressão dos criadores”. Como se sabe, outros gigantes, como o Facebook, Twitter ou a Google, têm enfrentado problemas semelhantes, tendo nos últimos anos sido obrigados a criar medidas de combate à propagação de notícias falsas, discursos de ódio e teorias de conspiração.

O Spotify não é um “Canal Neutro”, é um ‘Publisher’
O argumento parece igualmente simples: as plataformas defendem-se dizendo que não são o mensageiro, apenas o veículo que o mensageiro escolhe, parecendo esquecer o grande ensinamento do filósofo da comunicação Marshall McLuhan que, muito antes da internet, e das redes sociais já compreendia que “o meio é a mensagem”. Nesse sentido vai a opinião de Joanne Lipman, antiga editora geral do USA Today e escritora, que há alguns dias defendia num artigo publicado na revista “Time” que não se pode encarar o Spotify “como um canal neutro”: “não é apenas uma ferramenta que os podcasters usam para difundir o seu trabalho. Eles são publishers. Fazem escolhas intencionais acerca do conteúdo que disseminam, especialmente no que diz respeito a alguém como (Joe) Rogan. E essa é uma distinção crucial”, explica a autora enquanto chama a atenção para o negócio que pode ter envolvido verbas de cerca de 90 milhões de euros entre o gigante tecnológico sueco e o podcaster americano, o mais ouvido no mundo com cerca de 11 milhões de ‘streams’ por cada episódio. “Rogan é o Spotify”, assegura Lipman, invertendo de certa maneira a ideia de McLuhan: a mensagem, neste caso, é o meio.

A bola de neve começou a rolar quando cerca de 250 profissionais de saúde e investigadores dirigiram uma carta aberta ao Spotify alertando para o facto de o programa estar a servir de trampolim para a propagação de “teorias de conspiração sem fundamento”. O coletivo referia-se a uma emissão de dezembro do popular podcast de Joe Rogan em que foi dado espaço ao Dr. Robert Malone – que já tinha sido expulso do Twitter por difundir informação falsa acerca da covid-19 – que aí afirmou que as pessoas que tomaram vacinas eram vítimas “de psicose de massas”. Foi esse o sinal de alerta que levou Neil Young a agir. E depois Joni Mitchell. E ainda a popular autora de podcasts Brené Brown. E Nils Lofgren. E India Arie. E David Crosby, com os companheiros Stephen Stills e Graham Nash. E a podcaster Roxanne Gay ou a banda de Los Angeles Failure. O êxodo poderá estar apenas a começar.

No “Washington Post” fazem-se contas para tentar perceber a opção do Spotify que favorece a manutenção do controverso podcast à dos catálogos de artistas que, em teoria, a plataforma deveria apoiar em primeiro lugar: Joe Rogan publica quatro a cinco novos episódios do seu programa todas as semanas com durações que podem chegar às 3 horas, o que pode somar cerca de 220 milhões de ouvintes mensais a escutarem entre 50 a 60 horas de conteúdos que são exclusivos da plataforma; por outro lado, Neil Young, que via o Spotify ser responsável por cerca de 60 por cento dos ‘streams’ de toda a sua obra (que também pode ser escutada noutros serviços como o Tidal, Apple Music ou Amazon), acumulava “apenas” cerca de 6 milhões de ouvintes mensais, sendo que para esse número, como explica o jornal de referência americano, poderia contribuir “uma única pessoa que se limitasse a escutar ‘Heart of Gold’ ou ‘Cortez, The Killer’ só uma vez”.

A Revolta dos Músicos
Com os protestos contra o modelo de pagamento que o Spotify impõe aos artistas a subirem de tom, esta “guerra cultural”, como já foi descrita, que simbolicamente opõe Neil Young a Rogan e em termos mais gerais a comunidade musical aos gigantes tecnológicos, poderá ser o início de um mais organizado movimento de reinvindicação por parte dos artistas. A repartição percentual dos valores cobrados em assinaturas e publicidade é complexa e precisa de acomodar proprietários de masters (normalmente as editoras), autores e artistas executantes (que, dependendo dos casos, poderão ser ou não as mesmas pessoas) e o próprio Spotify. Isso significa que, em termos gerais, um artista precisa que uma canção seja escutada pelo menos 315 vezes para poder ganhar um simples dólar, algo que a maior parte dos artistas – ou seja, todos os que não acumulam muitos milhões de plays em cada nova obra lançada – consideram profundamente injusto. Curiosamente, de acordo ainda com o Post, uma canção no Napster precisa apenas de ser ouvida 53 vezes até gerar um dólar para o respectivo artista. Ou seja, a companhia criada por Sean Parker e Shawn Fanning que, no início deste milénio, era demonizada por toda a indústria musical e apontada como principal responsável pelo seu possível colapso absoluto é hoje mais justa para os artistas do que o Spotify, que chegou a ser encarado, graças aos milhões que injetou nos cofres das grandes companhias, como grande salvador da indústria.

O Spotify, que em 2019 alocou 500 milhões de dólares para investir no universo dos podcasts, não se vê necessariamente como um serviço de música, mas como uma plataforma de conteúdos, para já de áudio, mas potencialmente de qualquer outra natureza que lhe possa garantir os desejados dividendos. A ginástica financeira necessária para repartir proveitos no universo da música – entre os já referidos autores, artistas, detentores de masters, publishers, sociedades de coleta de diferentes direitos, etc – é muito mais exigente do que a equivalente no universo dos podcasts, que geram taxas de ‘engagement’ dos utilizadores muito consideráveis e que se traduzem em repartições de dividendos bem mais atraentes para o Spotify. No fim de contas, é disso que se trata. Neil Young ou Rogan? O Spotify escolhe o dinheiro, pois claro.

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