domingo, 24 de julho de 2022

Uma questão de grão


Não sei que mal lhe fizeram, mas terá sido grave por certo, já que outra razão não se encontra - a não ser o preconceito - para nos ter tratado tão mal. Chamou-nos "mentirosos", "aldrabões" e "fósseis", disse que éramos "desesperadamente ignorantes", pouco melhores do que os burros com quem dormíamos e comíamos, coisas do piorio. Nas suas palavras, a comunidade do Faial era "eminentemente portuguesa", ou seja, "lenta, pobre, dorminhoca e preguiçosa", sendo esta, além da beleza da natureza, a impressão que os Açores deixaram em Mark Twain, o qual, em 1867, e a bordo do Quaker City, fez escala na Horta, no decurso de uma viagem transatlântica com destino à Terra Santa e ao Médio Oriente, experiência que condensaria dois anos mais tarde num livro intitulado A Viagem dos Inocentes, por cá publicado em 2010 na excelente colecção de livros de viagens da Tinta-da-China.

O criador de Tom Sawyer fustigou sem piedade o atraso dos Açores naquela época, a completa ausência de métodos e de alfaias no trabalho da lavoura, a atávica aversão ao progresso que, segundo ele, se devia ao peso esmagador e sufocante da fé católica: "Não há qualquer arado moderno naquelas ilhas, e nem uma só ceifeira. Todas as tentativas de introduzir essas ferramentas agrícolas falharam. Os bons católicos dos portugueses benzeram-se e pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais antes deles. O clima é ameno; nunca têm neve ou gelo, e não há uma única chaminé em toda a povoação. Os burros e os homens, as mulheres e as crianças da família comem e dormem todos na mesma casa, e apresentam-se sujos, cheios de bichos e extremamente felizes. As pessoas mentem e enganam os estrangeiros, e são terrivelmente ignorantes e não têm quase nenhum respeito pelos mortos. Por esta última característica bem se vê que são pouco melhores do que os burros com que dormem e comem."

Curiosamente, sentiu-se em casa mais longe e mais a Leste, não poupando elogios a Odessa, que lhe pareceu em tudo idêntica à sua terra natal, Hannibal, no Missouri. Ambas tinham, de facto, um traço que as irmanava, uma característica comum, pois foram erguidas, praticamente de raiz, como portos de exportação de grão, mais precisamente de trigo. Um livro saído há pouco, Oceans of Grain: How American Wheat Remade the World, de Scott Reynolds Nelson (Basic Books, 2022), descreve a importância absolutamente fulcral que o trigo teve - e tem - para a compreensão da nossa História recente, para não falarmos da mais antiga, desde os "impérios hidráulicos" do Egipto e da Mesopotâmia, estudados por Karl Witfogel, o panem et circenses romano, as crises cerealíferas que assolaram a Idade Média ou até as "campanhas do trigo" do doutor Salazar, que no seu concurso para assistente em Coimbra, em 1916, apresentou tese com o título A Questão Cerealífera - O Trigo.

Como se refere na crítica feita àquele livro nas páginas do último número da New York Review of Books ("Wielding Wheat", de Daniel Immerwahr), talvez a obra valorize em excesso a relevância do trigo no curso da contemporaneidade, mas é indiscutível que, sem grão e sem pão, não seríamos como somos. Há dias, aliás, houve reunião em Teerão, entre Putin e Erdogan, justamente para tratar do grão - e da sua questão. Tema, portanto, mais actual do que nunca.

No centro, como sempre, está Odessa, ou melhor Odesa, cujas origens remontam à Odessos dos tempos gregos, fundada seiscentos anos antes de Cristo. Na década de 1780, um oligarca de Kiev, mais tarde banqueiro em Varsóvia, percebeu que aquela aldeiazinha piscatória, sita às margens do Mar Negro, daria um excelente hub para comércio e, com a derrota dos otomanos na guerra russo-turca de 1787-1792, o Tratado de Jassy reconheceu a anexação do Canato da Crimeia por Moscovo. Influenciada pelos economistas franceses do Iluminismo, Catarina, A Grande, intuiu certeiramente que o crescimento da Rússia não passava por entesourar avidamente o grão que produzia, mas em exportá-lo para o estrangeiro em escalas monumentais. Daí Odessa, daí a importância da Ucrânia, sempre ela, e das suas fertilíssimas terras negras, para onde a imperatriz enviou os seus compatriotas, hordas de menonitas germânicos, muito austeros e trabalhadeiros, a quem foi garantida liberdade religiosa e isenção de serviço militar.

A crença de Catarina nas virtudes da abertura ao mundo e do comércio não andava longe, aliás, do que diziam liberais económicos como Adam Smith, que em A Riqueza das Nações enalteceu as vantagens das trocas internacionais de cereais, e de liberais políticos como Thomas Paine, que advogou que a América deveria apostar em força nos negócios com a Europa, ao invés de guerreá-la. Crença que, de resto, também não anda longe daquela com que julgámos, ainda recentemente, e porventura erroneamente, que a "globalização" era o novo nome da paz e que a liberalização do comércio mundial iria impedir para sempre os conflitos bélicos entre parceiros de negócios. Houve até a teoria dos "arcos dourados", nos termos da qual dois países com restaurantes McDonald's nunca se iriam guerrear. Viu-se...

De facto, mesmo não se repetindo, a História tem padrões uniformes, que ciclicamente ocorrem, pois assim o impõe a natureza dos homens, a configuração das geografias, as tradições feitas de ódio. Se o actual conflito na Ucrânia aniquilou, de súbito, as rotas do trigo e do milho, também as guerras napoleónicas, ao colocarem milhares de soldados esfaimados a circular pela Europa, provocaram uma ruptura gravíssima nos stocks e nos abastecimentos de grão, agravados já então por um factor climático: chuvas torrenciais que arrasaram as colheitas em anos sucessivos. Ontem, como hoje, houve inflação galopante, os preços dos cereais subiram em flecha e, à conta deles, Odessa fez-se rica e poderosa, com edifícios belíssimos em estilo francês, teatros italianos. Quando Pushkin lá esteve exilado, entre 1823 e 1824, descreveu-a como "uma cidade onde se pode cheirar Europa", acrescentando que se falava francês por toda a parte e que havia vasta abundância de revistas e livros europeus.

Putin jamais poderia ter-se aventurado nesta guerra da Ucrânia se, ao longo de 20 anos, não tivesse reconquistado a soberania do trigo, abandonando a dependência face aos EUA e se não se tivesse tornado um líder mundial nas exportações do divino cereal. O trigo converteu-se numa das armas mais poderosas do seu arsenal, como o gás ou o petróleo, igual aos canhões e aos soldados.

Mas, como sempre sucede, não há bela sem senão, e Odessa e a Rússia tinham uma debilidade imensa, que ainda hoje explica muito desta guerra da Ucrânia: para fazer comércio com a Europa, exportando o trigo e outros produtos, Moscovo estava dependente de dois estreitos - o Bósforo e os Dardanelos -, controlados pelos otomanos, sendo essa a razão decisiva para Nicolau I ter iniciado a Guerra da Crimeia, em 1853, na qual cometeu o erro tremendo de revogar a estratégia cosmopolita da sua avó Catarina, fazendo cessar as exportações de trigo para a Europa, por forma a abastecer antes os seus Exércitos, o que provocou distúrbios de esfaimados nas ruas de Paris e Londres, parecidos com os que agora ocorrem na ilha do Sri Lanka.

Se hoje percebemos finalmente os malefícios da nossa dependência energética face a Moscovo, na altura o Reino Unido e a França também compreenderam que não poderiam continuar à mercê do trigo vindo da Rússia e, por isso, precipitaram-se na guerra, alinhando ao lado da Turquia e aumentaram as importações da América. Os EUA, que agora lucram com os fornecimentos de energia, fizeram-se então uma enorme nação cerealífera, exportadora para a Europa, graças a uma circunstância assaz favorável: o triunfo nortista na Guerra Civil destruíra as aspirações dos confederados do Sul, que sempre se tinham oposto ao trigo por recearem que ele afectasse as suas plantações algodoeiras e, pior ainda, por temerem que a expansão de pequenos e médios agricultores livres ameaçasse o senhorio fundado na escravatura. À semelhança dos actuais Republicanos, que negam o aquecimento global em nome dos vis interesses do carvão e do petróleo, os terratenentes sulistas opunham-se a tudo quanto apoiasse o trigo: a ferrovia, a terra acessível e barata, o trabalho livre, as ciências agronómicas.

As necessidades de pão na Europa, a derrota na Guerra Civil, o surgimento da dinamite, patenteada em 1867, que permitiu rasgar montanhas, abrir estradas e portos para a circulação do trigo, ditaram a derrocada dos grandes senhores do Sul e, com a ajuda de outros progressos e de outros produtos (ex., melhorias na Saúde Pública, difusão da batata), os cereais trouxeram níveis de bem-estar nunca vistos. Em 1870, numa só década, as exportações de alimentos para a Europa aumentaram 611%, cidades como Paris, Londres, Roma ou Berlim mais do que duplicaram de tamanho na segunda metade do século XIX, a esperança média de vida cresceu de 36 anos, em 1850, para 43, em 1900. De 1869 a 1911, a produção agrícola dos Estados Unidos cresceu duas vezes e meia e é aí que radica a hegemonia americana no século XX. Depois veio a indústria, a finança, o comércio, o poderio militar, a ciência e a tecnologia, as universidades de excelência, mas foi na agricultura e na terra que tudo começou, como sempre.

O trigo traria o progresso, mas não paz. Pelo contrário, a possibilidade de alimentar Exércitos a longa distância aumentou o expansionismo belicista: a vitória germânica na Guerra Franco-prussiana de 1870-1871, carburada à conta do trigo importado da América, motivou as nações europeias a digladiarem-se por possessões mais longínquas, nos ultramares da África e da Ásia. Enquanto isso - e o ponto é decisivo -, a Rússia ia ficando para trás, sem maquinaria e indústria para fazer medrar as colheitas, sem ferrovia de jeito, nem redes de distribuição: a primeira estação de comboios de Odessa só foi inaugurada em 1865 e, por volta de 1880, custava seis vezes mais transportar trigo através do sul da Ucrânia do que ao longo de toda a América.

Se hoje, com o Ocidente cerrado, Putin se vira para a China, falando-se esta semana da construção do oleoduto Siberia 2, através da Mongólia, nos alvores do século XX Moscovo buscou também alternativas a Leste, apostando no Transiberiano, que fazia a ligação da Rússia ao Pacífico. A reacção nipónica e a derrota das tropas czaristas na Guerra Russo-japonesa de 1904-1905 deitariam por terra as ambições de Moscovo a Oriente, na Manchúria e na Coreia. A destruição da frota do Pacífico e a desestruturação da economia russa geraram uma nova crise cerealífera, com motins, greves e protestos que redundaram na Revolução de 1905 e, em Odessa, em sangrentos pogroms contra os judeus.

Não muito depois, a falta de trigo estaria na base da Revolução de Outubro de 1917 ("Pão para o povo!", era o grito dos bolcheviques), crise motivada, em larga medida, pelo facto de, no decurso da Grande Guerra, os otomanos, aliados da Alemanha, terem fechado o Bósforo e os Dardanelos às exportações cerealíferas do Ocidente. Desde aí, e até tempos recentes, a Rússia nunca mais regressou à hegemonia que outrora tivera na produção e comércio do grão.

Há pouco, foi finalmente publicado em Portugal o livro Fome Vermelha, de Anne Applebaum (Bertrand, 2022), de que que já falámos nestas crónicas, e que descreve à minúcia o que foi a tragédia agrícola em terras ucranianas: na Rússia dos sovietes, a desestruturação fundiária e a guerra civil, entre outros factores, tinham levado a que as colheitas de cereais caíssem para menos de metade dos níveis registados antes da guerra, gerando mais de três milhões de mortos; mais tarde, nos tempos de Estaline, a chacina dos kulaks e os impiedosos confiscos de trigo, de milho, de alfaias agrícolas, de animais, de tudo quanto se visse provocou o Holodomor (em ucraniano, "morrer pela fome"), responsável por outros cinco milhões de mortos, uma barbárie que, entre nós, alguns ainda se atrevem a negar ou relativizar, portando-se tal e qual, sem tirar nem pôr, como os revisionistas e negacionistas neonazis que teimam em branquear o Holocausto.

A Rússia nunca recuperou do atraso da sua agricultura e, durante décadas, teve de lidar com aquilo que eufemisticamente designava por "problema do grão": nos anos 70 e 80, a URSS ainda dependia vergonhosamente das importações de cereais dos Estados Unidos, uma ironia tanto maior quanto muito do trigo produzido na América, especialmente no Kansas, era da variedade "turkey red" (não confundir com o nosso "trigo vermelho", o outro nome da espelta, Triticum espelta) que foi levado para lá, imagine-se, por menonitas vindos da Rússia, descendentes dos colonos de Catarina.

Vladimir Putin poderá ter muitos defeitos, e até o seu feitiozinho agreste, mas é um dirigente que conhece e que estuda a História, como os seus discursos demonstram, que lê muito sobre o passado dos czares, suas glórias e erros. Ao longo dos anos, percebeu o óbvio: nenhum país é potência sem uma grande agricultura. E, mais ainda, a dependência alimentar é a pior de todas elas, a que mais coloca um povo à mercê de outro povo.

Por isso, nas últimas duas décadas investiu colossalmente na lavoura, com quotas e subsídios, incentivos fiscais, agro-indústria, aumentos da produção exportadora. Graças a esse esforço, inverteu o atraso face à América: em 2020, a produção mundial de trigo, da ordem dos 761 milhões de toneladas, foi liderada por China, Índia e Rússia, a tríade responsável por 38% da produção mundial. Em termos de milhões de toneladas, a China destaca-se à légua, com 134 milhões, seguida da Índia, com 107 milhões, da Rússia, com 85,9 milhões e, à distância, dos EUA, com 49,7 milhões, quase metade da produção russa. A Ucrânia ocupava a oitava posição, com 24,9 milhões de toneladas, atrás do Canadá, da França e do Paquistão, pouco acima da Alemanha e da Turquia.

Há outra nuance importante: se a China e a Índia são grandes produtoras, o seu trigo destina-se primacialmente aos respectivos mercados internos, colossais e famintos, enquanto a Rússia, números de 2019, é o maior exportador de trigo do mundo, com 32 milhões de toneladas, seguida dos EUA, do Canadá e de França (os maiores importadores são a Indonésia, o Egipto e a Turquia). Quer dizer, mesmo tendo uma produção menor do que a da China ou a da Índia, a Rússia tem uma pujança exportadora que lhe permite usar o trigo como arma geopolítica, sobretudo na interacção com os países mais pobres e carentes, facto que por certo não agradará a Pequim no delicado jogo da geopolítica.

Mais, se a Rússia absorvesse a produção ucraniana, passaria a ter uma quota de 30% do mercado mundial, desequilibrando por completo as contas a seu favor. Seria a dona e senhora do trigo do planeta, não só porque produziria mais, mas também, ou sobretudo, porque conseguiria exportar muito mais (foi essa, aliás, a lição maior da imperatriz Catarina: o grão para exportação). Por isso, até por isso, não podemos deixá-la ganhar a guerra da Ucrânia. Se tal acontecesse, não seria apenas o Báltico a ficar ameaçado, seria o mundo inteiro a ficar na dependência de Putin, o qual passaria a ter, literalmente, o pão na sua mão.

Nem só de pão vive o homem, é certo, mas sem pão não há homem que viva. Putin jamais poderia ter-se aventurado nesta guerra da Ucrânia se, ao longo de 20 anos, não tivesse reconquistado a soberania do trigo, abandonando a dependência face aos EUA e se não se tivesse tornado um líder mundial nas exportações do divino cereal. O trigo converteu-se, assim, numa das armas mais poderosas do seu arsenal, como o gás ou o petróleo, igual aos canhões e aos soldados, pois muitas nações do mundo dependem do trigo russo e, por isso, têm de tolerar, e até apoiar, a tropelia imperialista de Moscovo.

Temos andado, durante meses, em busca de uma explicação racional para um gesto aparentemente estúpido, tentando saber qual foi o motivo para Putin ter invadido a Ucrânia, indispondo contra si o Ocidente inteiro, sendo alvo de sanções e ódio, convertendo-se num pária e num criminoso de guerra. É possível, muito possível, que tudo não passe de uma questão de grão. E a quatro níveis:

− primeiro, a autossuficiência cerealífera garantiu-lhe o pão em casa, protegendo-o de sanções alimentares que, essas sim, poderiam dar azo a convulsões domésticas, mesmo revolucionárias (como em 1905 ou 1917);

− segundo, a hegemonia exportadora assegura-lhe a benevolência de muitas nações do mundo, que Boaventura Sousa Santos e outros encaram como expressão ideológica de "ódio ao Ocidente" ou das "epistemologias do Sul" (!), quando tudo não passa de algo bem mais comezinho e palpável, a necessidade de pão para a boca;

− terceiro, quando dizíamos que era impossível a Rússia ocupar um país tão extenso como a Ucrânia, Putin veio mostrar que não é necessário controlar todo o território ucraniano, basta asfixiar-lhe as vias de escoamento de cereais;

− quarto e mais decisivo, é possível, até provável, que Putin tenha pensado que, com uma Rússia sem indústria, nem tecnologia, a ficar para trás há décadas, a captura dos cereais da Ucrânia, ou pelo menos de uma parte do seu fértil território, permitir-lhe-ia inverter o declínio russo, ou pelo menos atrasar o seu ritmo, para um momento em que ele já não seja governo e tenha morrido - pois, não duvidemos, é para a História, não para o povo, que Putin pensa e age.

Há quem ainda vá na conversa do "nazismo" de Zelensky e da necessidade de "desnazificar" o Donbass. Na realidade, as coisas parecem mais simples e mais prosaicas, e talvez tudo não passe, afinal, de uma questão de grão. De trigo, sem dúvida, mas também ou sobretudo de milho, em que a Ucrânia supera de longe a Rússia - a primeira com 30 milhões de toneladas ao ano, a segunda com uns meros 13 milhões de toneladas (muito abaixo dos 360 milhões de toneladas dos EUA e dos 260 milhões da China, líderes absolutos). Para Putin, tendo à mão tanto grão, é enorme a tentação. À custa dela, vamos todos sofrer muito.

Sem comentários: