Aos 85 anos, a “Joana D’Arc dos oceanos” — como a apelidou o explorador e cineasta James Cameron — continua incansável na sua defesa dos oceanos. Sylvia Earle esteve em Portugal para participar na Glex Summit, que decorreu entre Lisboa e os Açores ao longo dos últimos seis dias. O Expresso falou com a oceanógrafa, este sábado, num dos seus espaços favoritos de Lisboa — o Oceanário. No dia anterior tinha estado a mergulhar ao largo do Faial. Há mais de cinco décadas que a aclamada bióloga e oceanógrafa se dedica à defesa dos mares e das suas criaturas, lembrando sempre que “sem oceanos não há vida”. Conta com mais de sete mil horas passadas debaixo de água a explorar as profundezas marinhas e a interagir com as seres que nelas vivem. O jornal “New York Times”, deu-lhe o " petit nom" de “Sua Profundeza”.
Quando foi a última vez que mergulhou no oceano?
Ontem, nos Açores. Foi excitante observar aquelas pequenas criaturas debaixo de água. É tão pacífico. À superfície pudemos ver sete cachalotes magníficos. Terá havido um tempo em que sabiam que deviam temer os humanos. Agora, isso já não acontece, pelo menos nos Açores e noutras partes do mundo onde já não são caçadas. É um milagre quando mostramos empatia e nos colocamos no lugar do outro. A regra de ouro é tratar o outro como gostaríamos de ser tratados.
Como foi esta viagem aos Açores?
Foi uma grande alegria poder estar novamente nos Açores, no meio do Atlântico, por onde cruzam baleias, atuns e outras criaturas dos mares. è um lugar de grande riqueza marinha e que só agora, no início do século XXI, começamos a conhecer verdadeiramente. Mas ainda temos muito por descobrir.
"Desde que eu era criança, já desapareceram 90% dos grandes peixes."
Conhecemos mais sobre Marte ou a Lua do que sobre as profundezas dos oceanos?
Um amigo cientista disse-me que só se conhece uma em cada dez espécies das florestas tropicais. No oceano esse número sobe para um em 100 ou um em mil. Temos muito a descobrir sobre as pequenas e grandes criaturas do mar profundo. E isso é excitante. Ao longo da minha vida, apercebi-me da magnitude da nossa ignorância. Essa ignorância deve levar-nos a ter muito cuidado em relação ao que destruímos. Somos exímios a destruir o mundo natural. Mas ao fazê-lo pomo-nos a nós em risco. Temos o poder de eliminar ecossistemas inteiros. No último meio século, exterminámos florestas e biodiversidade em terra e no mar. Desde que eu era criança, já desapareceram 90% dos grandes peixes.
Começou a explorar os mares nos anos 50 do século XX. Quando olha para os últimos 70 anos de ação humana, o que sente?
Sinto-me muito triste. Não só pelo que afeta o oceano, mas também em relação à minha espécie. Pela primeira vez podemos olhar para todo o mundo e para o nosso lugar nele de uma forma que mais nenhuma criatura pode fazer. As baleias são muito espertas, os golfinhos são incrivelmente inteligentes, as aves têm um grande conhecimento e também conheço uns quantos peixes e polvos bem espertos. Mas não conseguem saber o que as crianças humanas hoje já sabem.
Se esses seres marinhos pudessem votar, as coisas seriam diferentes?
Já estaríamos fora daqui (risos). Nós somos destruidores e temos uma longa história de tirar, tirar, tirar. Podíamos pensar que estamos na era mais próspera da nossa história, e não nos apercebemos que nos colocamos em risco. Precisamos das árvores, da natureza, das baleias, dos atuns. E eles precisam de nós para cuidarmos do mundo natural e restaurar o que destruímos. Adorava testemunhar o mundo de há mil anos, antes de termos começado a exterminar a vida na terra.
James Cameron vê-a como a Joana d'Arc dos oceanos. Vê-se neste papel?
(risos) Não me vejo neste ou naquele papel. Apenas tive o privilégio de ver coisas que outros não viram e de testemunhar e partilhar o que vi. Imagine se os astronautas não partilhassem o que veem? Falei com a Cathy Sullivan, depois dela ter dado os seus passos no espaço, há muitos anos, e perguntei-lhe como foi. E ela apenas disse: “Foi mesmo fantástico!” E partilhou imagens do que viu. O James Cameron também foi às profundezas do oceano e mostrou-nos imagens maravilhosas do que lá viu.
O secretário geral da ONU, António Guterres, tem alertado para pararmos com a guerra contra a natureza, mas parece que os líderes mundiais continuam a não ouvir.
Não é porque não saibam. Há o conhecimento e há provas científicas de que estamos em guerra com a natureza, como diz o secretário-geral da ONU. E esta guerra contra a natureza vai contra o nosso sistema de suporte de vida. Os astronautas fazem tudo o que podem para se manter vivos no espaço, cuidam do sistema de oxigénio que os suporta, mantêm a temperatura adequado. E também há muito que nos enviaram a mensagem de que o imenso Universo que nos rodeia não é amistoso. Não é uma alternativa para os quase oito mil milhões de pessoas que vivem neste planeta. A Terra é a nossa casa. E temos de cuidar dela e não o temos feito.
E porquê?
Porque olhamos para a natureza como uma fonte de recursos, de produtos. Mas acho que estamos a começar a ver as coisas de forma diferente. Sem oceanos não temos vida em terra.
A sua organização Mission Blue tem-se dedicado, em parceria com outras organizações, nomeadamente com a Fundação Oceano Azul, à criação de áreas marinhas protegidas — a que chama “Hope Spots”. Fale-nos desse projeto.
A ideia surgiu em 2009, quando ganhei um prémio TED que permitiu juntar meios para abraçar o oceano e criar espaços de esperança com tamanho suficiente para salvar e restaurar o coração azul do planeta. Nessa altura, apenas 1% da área dos oceanos era protegida. É uma ilusão pensar que os peixes e outras espécies marinhas nunca vão acabar. Já desapareceram 90% dos peixes! As alterações climáticas estão aí e assistimos à acidificação e desoxigenação dos oceanos. Temos de reforçar a proteção dos oceanos! Com o projeto “Hope Spots”, a ideia é trabalhar com os Governos, com organizações não governamentais, empresas e fundações para criar áreas marinhas protegidas, que sirvam de locais de descanso e de esperança para os animais marinhos, a salvo da predação humana. Mas é preciso trabalharmos em conjunto. Nenhuma organização isolada consegue fazer a diferença necessária. Daí projetos como os do Pristine Seas, da National Geographic [que também participou no programa Blue Azores, organizado pela Waitt Foundation e pela Fundação Oceano Azul] .
Há anos que passa a mensagem de que “sem os oceanos não temos vida em terra”. Mas a humanidade não mudou muito o seu comportamento no último meio século.
Está a começar a mudar. E, pela primeira vez, vejo verdadeiras razões para ter esperança. Temos de transformar o nosso coração e criar empatia pelas outras formas de vida, seja a dos animais que temos andado a destruir, seja a de outros seres humanos.
Acha possível atingir o objetivo de proteger 30% dos nossos mares até 2030, como defende a ONU e a Estratégia Europeia para a Biodiversidade?
Acredito que é possível proteger 30% dos oceanos, porque temos o conhecimento para tal. Sabemos que temos de dar outro valor à natureza, que temos de cuidar do nosso sistema de suporte de vida. É aos oceanos que vamos buscar o oxigénio de que precisamos para respirar. São os oceanos que nos permitem controlar as temperaturas e a química planetária. É a diversidade de vida em terra e no mar que torna o planeta habitável. E quanto mais a destruirmos, mais pomos em risco a nossa própria vida. Sabemos de tudo isto e não há desculpas. Estamos no século XXI, precisamos de outras políticas, de outras atitudes e de leis que impeçam que se continue a matar grandes quantidades de vida selvagem. Se continuarmos a agir como temos agido, isso vai-nos assombrar.
Uma baleia vale mais viva do que morta. Isso é claro nos Açores, em que a observação turística ou científica de baleias há anos revela ser mais rentável do que a sua pesca, mas também para as alterações climáticas.
Na cimeira de Davos, antes da pandemia varrer o mundo, fizeram um cálculo sobre o valor das baleias vivas, pela capacidade de armazenarem carbono a pensar nas alterações climáticas e estimam que possa representar um trilião de dólares em sequestro de carbono que permite manter o clima mais estável. E se funciona com as baleias também funciona com os atuns, as lulas ou outros seres marinhos. São todos capazes de sequestrar carbono no oceano e quando os matamos estamos a libertar carbono para a atmosfera.
Que expectativas tem face ao futuro?
Espero que as crianças cresçam e mudem as coisas. O ano de 2020 revelou-nos que quando a nossa vida está em risco, mudamos comportamentos. Se nos dissessem em 2019 que não poderíamos viajar durante um ano, que teríamos de usar sempre máscara e de nos afastarmos dos nossos amigos, as pessoas diriam que era uma loucura. Mas fizemo-lo e vimos que está a funcionar. Por vezes, basta parar de fazer o que andamos a fazer e portar-mo-nos bem durante algum tempo. A natureza celebra quando entramos em confinamento. E precisamos de criar empatia com o mundo vivo.
É a voz da campanha “Rise Up”, subscrita por centenas de organizações, que pretende reforçar a necessidade de medidas como a suspensão de novas explorações de hidrocarbonetos, a proibição da pesca de arrasto ou da utilização de plásticos de uso único até 2025. O que pensa da mineração em mar profundo?
É mesmo uma má ideia. Temos de impedir que se consumam recursos que estão ainda intactos. Temos de nos afastar dos combustíveis fósseis e deixar onde estão todos os depósitos de minerais no fundo do mar. Estamos na era dos smartphones, dos tablets e dos computadores que precisam de materiais para as suas baterias e ecrãs. Mas podemos reutilizar mais e reciclar o lítio, o cobalto, o níquel e outros materiais que já capturamos em terra, em vez de continuarmos a explorar recursos que estão intactos. A terra é a nossa casa e temos de nos erguer para defendê-la. Não há tempo a perder.
Sem comentários:
Enviar um comentário