terça-feira, 11 de junho de 2024

Os lameiros - uma grande invenção tecnológica agrícola


Começou a época dos fenos cá na terra. Começa em junho nas cotas mais baixas e termina, no início de agosto, na Serra de Montesinho, se ainda se fenassem os lameiros da Lama Grande. Em Montalegre, Vila Pouca de Aguiar, nas Serras Beira Durienses, e na Cova da Beira–Serra da Estrela as datas (vale-montanha) são similares.
Os lameiros são um tema particularmente interessante de ciência da vegetação e da história da agricultura. As questões em aberto são muitas. Quando foram inventados os lameiros? De onde vem a flora dos lameiros? Como compatibilizar a produção de erva e feno com elevados níveis diversidade biológica? 
Começo pela primeira pergunta.
1. Os relatórios de escavações realizadas na Beira interior pela arqueóloga Catarina Tente (IEM – NOVA FCSH) mostram que nos séc. X-XI as habitações rurais eram ainda construídas em materiais perecíveis (sem corte e palheiro no rés-do-chão) e que os gados eram  guardados ao ar livre. Generalizando a Trás-os-Montes as descobertas beirãs, as aldeias atuais “parecem ter sido formadas a partir da segunda metade do século XI e sobretudo no século XII”.
2. Para produzir feno é preciso proibir o acesso dos herbívoros aos lameiros durante cerca de 90 dias.
Não sou especialista no assunto mas a reserva dos lameiros implica a imposição de direitos privados de propriedade nas pastagens e, suponho, alterações ideológicas profundas apenas possíveis em períodos de grande estress social (veja-se o que escreve Ester Boserup).
Tendo em consideração estas premissas, não é um salto lógico improvável admitir que a propriedade privada perfeita (?) dos lameiros e, implicitamente, a produção de feno dos lameiros seja uma invenção tardimedieval.


Para compreender a origem da flora dos lameiros é primeiro preciso perceber que existem dois tipos funcionais fundamentais de gramíneas perenes pratenses – gramíneas altas e gramíneas baixas–, que por sua vez dão origem a outros tantos grandes tipos de pastagens – pastagens altas e pastagens baixas –, sejam elas húmidas, mésicas ou secas. É curioso que as “tall grasslands” e as “short grasslands” são praticamente universais nos territórios pastados por grandes herbívoros, desde África às Américas.
As gramíneas altas têm uma estratégia de tolerância à herbivoria sendo, por isso, mais palatáveis e produtivas, com respostas rápidas à desfoliação, em contrapartida muito sensíveis a eventos reiterados de pastoreio intenso, em particular durante o período reprodutivo. São exemplos Dactylis glomerata, Festuca arundinacea, Festuca rothmaleri, as várias Avenula (agora no género Helictochloa), Celtica  gigantea, Holcus lanatus, Poa trivialis e P. pratensis, os Anthoxanthum perenes, Melica ciliata e, muito importante, o Arrhenatherum bulbosum. As gramíneas baixas optam pela resistência aos herbívoros: são menos palatáveis e produtivas, muitas delas rizomatosas ou bulbosas (as altas são sobretudo cespitosas), como é o caso do Agrostis castellana e do A. capillaris, do Nardus stricta, da Poa bulbosa, da Festuca indigesta e da  F. nigrescens. Nesta altura do ano, as gramíneas altas protegidas nos arbustos são a melhor prova de que um monte está pastado.
Então de onde vêm as plantas dos lameiros?
As gramíneas perenes altas são a chave da estrutura e da produtividade dos lameiros. A persistência destas plantas depende de três fatores: 1) serem poupadas ao pastoreio a partir de Março-Abril, durante pelo menos 90 dias; 2) a fenação tem que as apanhar, se não todos anos, quase todos, maduras, de modo que as sementes caiam no solo durante a fenação e renovem o pasto; 3) as extrações de nutrientes pelo feno têm que ser adequadamente repostas. O resto da flora de lameiro tem várias proveniências, a maioria, obviamente, é característica das comunidades de gramíneas altas; outras plantas, por exemplo, vêm das orlas de bosque.
Portanto, quem inventou os lameiros, além de dispor de muito mais erva (e de feno para o inverno) criou, inadvertidamente, um habitat secundário – tão dependente do maneio humano como a seara de trigo –, perfeito para as plantas das comunidades de gramíneas altas, curiosamente, muito mais diverso e estável do que o original.

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