Aos 63 anos, Eduardo Gudynas (Montevidéu, Uruguai, 1960) é o mais jovem da lista dos 75 principais pensadores dos últimos 150 anos sobre questões ligadas ao desenvolvimento elaborada pelo geógrafo David Simon, da Universidade de Londres. Há apenas oito latino-americanos na lista. Como pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), disciplina na qual é mestre, acompanha há mais de três décadas os problemas do desenvolvimento, do meio ambiente e dos movimentos sociais na América Latina, tendo escrito vários livros sobre esses temas.
Suas publicações mais recentes são uma avaliação das violações dos direitos humanos e da natureza no extrativismo na Bolívia e uma análise dos impactos da guerra na Ucrânia na ecologia política da América Latina. Além disso, colabora com organizações cidadãs sul-americanas e com instituições universitárias.
Apesar de centrar seus estudos em seu continente natal, Gudynas foi o primeiro latino-americano a receber a Cátedra Arne Naess em Meio Ambiente e Justiça Global da Universidade de Oslo (Noruega); também é pesquisador do Centro de Estudos Avançados da Universidade de Munique (Alemanha) e recentemente passou a integrar a Comissão para a Transformação da Economia Global do Clube de Roma.
Aqui conversamos com ele sobre conflitos socioambientais, direitos da natureza e política.
Eis a entrevista.
Vamos falar sobre os conflitos socioambientais. Como eles ocorrem?
São disputas com componentes sociais onde as demandas ecológicas ou territoriais têm grande relevância. Incluem, por exemplo, protestos de comunidades locais contra projetos de mineração ou petróleo. As manifestações cidadãs que incorporam questões ambientais e territoriais têm uma longa história.
Lembro-me, por exemplo, da primeira grande marcha indígena na Bolívia, cujo slogan era território e dignidade, e isso ocorreu em 1990. Nessa mobilização, estavam presentes ingredientes sociais, ambientais e territoriais. Embora em relatos históricos de conflitos contra a mineração dos inícios do século XX esses componentes já estivessem presentes.
O que diferencia o conceito de território para os povos originários de como é entendido pelo senso comum tradicional? Como tudo isso se expressa na prática?
O território é uma construção social, é definido pelas vivências, histórias ou religiosidades, por exemplo, de comunidades camponesas ou indígenas. O que encontramos ouvindo, acompanhando ou participando de alguns conflitos é a defesa de um espaço geográfico considerado como próprio. Essa condição é chamada de território. Portanto, espaço ou geografia não são sinônimos de território, e em uma mesma região podem coexistir múltiplos territórios, inclusive sobrepostos entre si.
Há uma semelhança nos conflitos socioambientais?
A importância de acompanhar e ouvir as comunidades locais é que fica claro que existem muitos tipos de conflitos. Entre os mais visíveis estão aqueles que são uma reação às ameaças à saúde, à integridade do meio ambiente ou à usurpação de territórios considerados como próprios. Ali estão enraizados os protestos tão comuns que existem contra as mineradoras ou as petroleiras.
Mas também há conflitos onde o que está em disputa é uma indenização em dinheiro ou obras de infraestrutura, como um posto de saúde local ou um equipamento escolar. Não existe uma oposição frontal à chegada, digamos de uma mineradora, mas a luta é para conseguir parte do benefício económico.
Ao mesmo tempo, existem conflitos que operam na direção contrária. São as mobilizações que reivindicam a chegada desse tipo de empreendimento, argumentando que trarão investimentos e empregos. Chega-se, assim, a situações muito complicadas, onde há disputas entre diferentes grupos de uma comunidade, sendo uns a favor e outros contra esses empreendimentos.
Que relação existe, em geral, entre os conflitos socioambientais e a ação política nacional?
Muitos conflitos têm estreita associação com os problemas e, especialmente, com as misérias da política convencional. Boa parte deles explode em consequência de decisões, ações ou omissões em políticas públicas tomadas pelos Estados, como concessões feitas a mineradoras ou petroleiras. Em outros casos, há um Estado ausente e cúmplice, que falha em controlar e monitorar os efeitos da agricultura intensiva.
Muitas dessas disputas estão associadas à corrupção e aos crescentes níveis de violência, onde a política participa de múltiplas formas dessas mazelas. Os casos extremos estão no assassinato de defensores de direitos humanos ou ambientais em diferentes países, com as situações mais graves, por exemplo, no Brasil e na Colômbia.
O que exatamente está acontecendo?
O que acontece em muitos países é que as concessões de mineração ou de petróleo, ou as licenças para expansão agrícola são expedidas nas capitais para áreas que os técnicos acreditam estar vazias, que não são de ninguém, ou que, embora saibam que estão ocupadas, não consideram relevantes para os grupos locais. Dessa forma, o território de uma comunidade indígena de repente se encontra dentro de um polígono de petróleo e, logo depois, chegam militares, trabalhadores e técnicos para invadir suas terras. Isso torna inevitável o surgimento de um conflito.
Como reconhecemos nessas situações a herança colonial?
A herança colonial está presente de várias formas. A política convencional, especialmente com aquele repetido viés latino-americano em direção ao caudilhismo, tem uma clara herança colonial. Mas, ao mesmo tempo, as condições econômicas também estão imersas em uma subordinação que tem muito de colonial. Isso é muito evidente nos extrativismos, pois são extrações em grande quantidade de recursos naturais que são exportados para mercados globais, repetindo uma inserção internacional secular baseada em matérias-primas. Atualmente, explica boa parte dos conflitos ambientais mais graves do continente que estão associados à apropriação de recursos naturais para exportação. É como se o vínculo colonial se mantivesse, mas vestido com outra roupagem, que, em vez de ser dirigido por reis e vice-reis, passa a ser decidido nas Bolsas.
E qual é, assim vista, a relação entre globalização e conflitos socioambientais?
A globalização determina uma relação na qual a região latino-americana tem um papel subordinado. Os preços dos bens naturais são determinados nos centros financeiros, como é o caso da cotação dos minerais em Londres ou dos agroalimentos em Chicago. Se o valor do cobre ou da soja aumenta, todos os países começam a procurar cobre ou a plantar soja. As condições globais são tão poderosas que determinam as estratégias nacionais de desenvolvimento.
E qual é o nível ou a intensidade desses fluxos de exportação de recursos naturais?
O volume de extração de recursos naturais é brutal. Penso que o nível que essa depredação da natureza atingiu está passando despercebido. Na década de 1960, foram exportados pouco mais de 200 milhões de toneladas de recursos naturais, como minerais, hidrocarbonetos e produtos agrícolas e florestais, etc. Em meados da década de 2010, eram exportados cerca de 700 milhões de toneladas. Ou seja, mais que triplicou, o que significa que cada recanto do continente está enfrentando problemas com esses extrativismos.
O ritmo, a intensidade e o volume de apropriação da natureza são vertiginosos. Portanto, não é de se estranhar que os conflitos e as resistências diante desse avanço se multipliquem. Dessa forma, as condições globais que determinam o comércio e os preços acabam impactando nesses conflitos.
E como podemos identificar/reconhecer a pressão desses interesses estrangeiros no desenvolvimento dos conflitos socioambientais?
Em alguns setores, os interesses estrangeiros são decisivos, como sabemos, por exemplo, pela atuação das grandes corporações mineradoras, ou pelos fundos de investimento do capitalismo global que investem seu dinheiro em todo tipo de projeto em nosso continente.
Mas deve ficar claro que a situação mudou muito. Na década de 1960, os principais destinos das exportações de matérias-primas latino-americanas eram os Estados Unidos, o Canadá e os países da Europa Ocidental. Nos últimos anos, o destino é principalmente a China e outros países asiáticos. Além disso, esses fluxos para a América do Norte foram drasticamente reduzidos e a China absorve mais de três vezes os recursos que são exportados para a União Europeia. Em muitos casos, a pressão sobre os nossos territórios e recursos depende cada vez mais das decisões do Partido Comunista Chinês em Pequim.
Que papel desempenham ali os atores económicos nacionais?
O que a experiência latino-americana mostra, e que está ficando bastante claro no continente, mas não tanto em outras regiões, é que a propriedade dos recursos naturais ou das empresas que os extraem e comercializam não condicionam ou garantem que sejam cumpridos os mandatos de justiça social e ecológica.
Os atores nacionais operam da mesma forma que os interesses estrangeiros. Temos os casos de conhecidas mineradoras de capital nacional, das cooperativas de mineradoras bolivianas que se apresentam inclusive como revolucionárias, e dezenas de milhares de agricultores lançados na agricultura intensiva baseada nos agroquímicos. Todos eles estão por trás de muitos conflitos socioambientais. E não podemos esconder o caso das petrolíferas estatais, que também provocam impactos sociais e ambientais de toda ordem.
Podemos relacionar os recentes conflitos sociais e as mobilizações populares no Chile, Colômbia, Peru e outros países latino-americanos com os conflitos socioambientais?
Estamos enfrentando disputas que têm alguns aspectos comuns, mas são muito diferentes entre si. Cada caso permite observar que as situações nacionais são diferentes e, embora existam fatores recorrentes, também existem particularidades próprias de cada país.
No caso do Chile, observou-se uma explosão popular generalizada, que se multiplicou em várias cidades, expressando cansaço com a política e o regime institucional nesse país.
Por outro lado, no Equador ocorreram levantes liderados por organizações indígenas, alimentados por mobilizações de comunidades rurais e o apoio de alguns setores populares urbanos. As reivindicações contra a mineração, por exemplo, estiveram presentes, mas esse tema não liderou essas mobilizações.
Os conflitos socioambientais não eram perceptíveis?
Sim, claro, eles estão presentes. Continuam a multiplicar-se as reações em defesa dos territórios e na exigência de garantir a qualidade de vida e a conservação da natureza em todos os lugares. O número de conflitos continua a aumentar, e em vários casos conseguem travar alguns empreendimentos muito prejudiciais, e que, por sua vez, se tornam um exemplo para outra comunidade, em outra região ou outro país, que também decide se mobilizar.
Você se refere à forma como os Estados assumem esses conflitos com o termo necropolítica.
A meu ver, estamos entrando em tempos de necropolítica. Tomo emprestado esse termo do filósofo camaronês Achille Mbembe, para estruturar uma reflexão que mostra que há uma aceitação da morte. Tolera-se que pessoas morram, ou definhem numa condição eterna de mortos-vivos mergulhados na pobreza e na exclusão, toleram-se as quadrilhas e os pistoleiros, e tolera-se que as florestas sejam derrubadas e as águas poluídas.
Essa aceitação explica por que personagens repulsivos como Jair Bolsonaro puderam conquistar um governo. A mesma coisa está acontecendo agora no Peru, onde a presidência e o congresso se mantêm graças a uma sucessão de mortes e repressões. Esse deixar morrer consolidou-se durante a longa crise provocada pela pandemia. A necropolítica é deixar morrer, mas para manter vivo um tipo de economia predatória.
Os conflitos que eclodem na resistência aos extrativismos são uma das frentes de oposição a essa indiferença à morte e, ao mesmo tempo, são elas que alimentam as chamas de alternativas voltadas para a vida.
Num sentido mais político, como devemos propor alternativas locais, regionais e, finalmente, globais, às ameaças contra a natureza?
Surgiram inovações incríveis, especialmente na América do Sul. O reconhecimento dos direitos da natureza é um avanço substancial, especialmente sob a formulação alcançada no Equador. Essa estrutura permite acolher as tradições dos povos indígenas, bem como as posições críticas do conhecimento ocidental, e articulá-las para reconhecer os não humanos com seus valores intrínsecos.
O mesmo aconteceu com a plataforma do Bem Viver em suas acepções originais, pois é uma construção crítica ao desenvolvimento convencional, mas que lança alternativas ao mesmo tempo pós-capitalistas e pós-socialistas.
Essas e outras posições alcançaram um vigor extraordinário, e por isso foram inclusive formalizadas na Constituição equatoriana. Essa demanda é muito forte na América Latina.
Como isso se traduziu em políticas públicas?
Muitas dessas ideias foram utilizadas para propor novas políticas públicas. Quando se entende que os direitos da natureza impossibilitam a aprovação de novas explorações de petróleo na Amazónia por seus impactos sobre a biodiversidade, os solos e a água, imediatamente surgem desafios para as políticas públicas. A pergunta imediata é como projetar uma transição pós-petróleo que nos permita abandonar os hidrocarbonetos.
Com base nesse tipo de preocupação, foram desenhadas as chamadas transições pós-extrativistas. Elas podem ser descritas como planos de ação, com medidas que vão desde novas regulamentações até mudanças nos impostos, que seriam aplicadas se estivéssemos no comando de um governo que pretende caminhar para o Bem Viver. A experiência sul-americana, com todas as suas conquistas, mas também com suas derrotas, possibilita a construção de verdadeiros planos de governo e de ação muito sofisticados em várias frentes.
Que balanço faz? Qual é o horizonte dessas alternativas?
O atual ritmo e intensidade na apropriação dos recursos naturais só pode ser mantido com o aumento dos níveis de violência e sob condições de pobreza. Se houvessem avaliações socioambientais adequadas, se as comunidades locais fossem informadas e consultadas, a maioria dos projetos extrativistas atuais não seria aprovada.
Mas os conflitos locais se multiplicam e, enquanto isso, as maiorias, que estão nas cidades, parecem ter naturalizado a destruição da natureza, permitem que os povos indígenas sejam encurralados e os camponeses marginalizados. O que quero dizer é que há muitas reações e protestos, mas ainda são insuficientes, porque os governos e a política persistem nas mesmas estratégias, e o fazem porque têm importantes bases de apoio dos cidadãos.
Nesse contexto, o que entendemos por direitos da natureza?
Os seres humanos assumem-se como sujeitos, e nessa condição seus direitos são reconhecidos. Nisso consiste a condição determinante dos direitos das pessoas em seus usos contemporâneos.
Devido a determinadas sensibilidades e posturas entende-se que na vida não humana também há sujeitos. Uma vez que essa condição é compreendida, os direitos devem ser automaticamente reconhecidos.
Foi o que se discutiu no processo constituinte do Equador, que culminou com o reconhecimento dos direitos da natureza. A nova Constituição assim os reconhece, e coloca como sujeito os grupos onde a vida se baseia, como uma espécie. Isso também é importante porque serve para nos lembrar que os direitos da natureza não são iguais aos chamados direitos dos animais, nem que impõem um ambiente intocado onde nada pode ser cultivado ou extraído. Esses direitos permitem o uso da natureza desde que seja assegurada a sua sobrevivência.
Paralelamente aos direitos da natureza, mantêm-se os direitos humanos, inclusive os que envolvem a garantia da saúde e da qualidade do ambiente.
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