terça-feira, 30 de dezembro de 2025

A máquina da atenção: análise da cobertura do Chega e do seu líder


Há uma pergunta que não podemos evitar sempre que começa uma campanha eleitoral: quem define, de facto, os temas que ocupam o espaço público: os partidos ou as redacções dos Meios de Comunicação Social? Nas Autárquicas de 2025, a resposta ganhou contornos mensuráveis. Um levantamento exploratório do MDP: Movimento pela Democracia Participativa em que participei, baseado em pesquisas diárias realizadas no Google nos principais órgãos de comunicação portugueses entre 22 de setembro e 11 de outubro, mostra como a presença do Chega e, em particular, de André Ventura, foi não apenas dominante, mas também organizada em “ondas” temáticas com alto potencial de amplificação.

Com efeito, a curva de menções a “André Ventura” seguiu o padrão clássico dos ciclos mediáticos eleitorais: um pré-arranque relativamente discreto (André Ventura esteve três dias em parte incerta), uma explosão mediática no início oficial da campanha, um pico pronunciado e, por fim, uma retracção que permanece, ainda assim, acima do ponto de partida. Os números são eloquentes: de 1 700 referências no início da série para 9 080 na recta final, com um pico absoluto de 14 900 a 9 de outubro. Não é só volume; é o “timing”. O auge ocorre precisamente quando a disputa de mensagens é mais valiosa, ou seja, na fase em que os indecisos ainda escutam e os alinhados reforçam convicções.

Esta dinâmica não acontece no vazio: É construída. Entre 30 de setembro e 9 de outubro, a visibilidade de Ventura cresce de forma quase contínua, sinal de uma estratégia de “campanha de choque”: gerar acontecimentos (declarações, polémicas, episódios viralizáveis) capazes de puxar a cobertura para si, antes de a agenda estabilizar ou saturar.

Não basta contar menções: é preciso saber ao que remetem. O estudo isolou cinco enquadramentos discursivos recorrentes no discurso do Chega: justiça, corrupção, segurança, imigração e “comunidades ciganas” e seguiu a tração mediática de cada uma destas “frames”:

  1. A Justiça destacou-se como o eixo mais persistente e volumoso, liderando durante todo o período e batendo o recorde absoluto no dia 10 de outubro. Não é um acaso: “justiça” funciona como ponto de convergência para indignação, moralidade e punição: uma gramática que oferece ao Chega o papel autoatribuído de “voz do povo contra o sistema”.
  2. A Segurança mostrou-se o tema mais estável. Sem fogos-de-artifício, mas sempre alto. Se “justiça” dá a moral, “segurança” dá a ordem e sustenta a narrativa dia após dia.
  3. Imigração e “ciganos” operaram como boosters episódicos. Picos abruptos e quedas rápidas: sinais de ativação deliberada de polémicas com forte valor-notícia. Servem para reconfigurar a conversa nos momentos-chave, mas não se mantém como eixo estrutural da campanha.
  4. No agregado, o retrato é claro: o Chega agarrou a agenda com um tema estruturante (“justiça”), alimentou-a com um tema perene (“segurança”) e potenciou a sua visibilidade com detonadores de curto prazo (“imigração” e “ciganos”).

Comparando com PS e PSD, o Chega liderou o volume total de menções ao longo da série. O PS acompanhou a tendência na segunda metade da campanha, crescendo com intensidade na aproximação ao fecho. O PSD teve um pico precoce e perdeu tração logo depois. Três estilos distintos de presença mediática: exposição contínua e controversa (Chega), mobilização institucional concentrada (PS) e arranque forte com menor capacidade de retenção (PSD).

A consequência é um efeito de sobrerrepresentação temática: quando uma força política consegue impor, com regularidade, os seus temas preferidos, o risco não é apenas assimétrico, é cumulativo. A atenção puxa atenção; a polémica puxa cliques; e os cliques, por sua vez, reforçam o alinhamento editorial com aquilo que “rende”.

Este não é um apelo para “calar” ou silenciar ninguém ou nenhum partido (por muito extremista e radical que seja o Chega). É, sobretudo, um convite à existência de filtros editoriais mais conscientes: diversificar as fontes e os temas; distinguir o facto novo da provocação repetida; exigir contexto antes do título; medir o impacto de cobertura em narrativas que estigmatizam grupos sociais; e, sobretudo, não confundir barulho com relevância pública.

Do lado dos cidadãos, o antídoto chama-se literacia mediática: reconhecer quando um tema reaparece como trigger emocional; perguntar o que ficou de fora enquanto seguimos a polémica da semana; exigir contraditório e escrutínio simétrico para todas as forças políticas.

O estudo do MDP é exploratório, limitado na quantidade de media analisados e na duração dos dias medidos. O estudo assenta em contagens manuais de resultados do motores de busca da Google, restringidas a domínios jornalísticos de referência e recolhidas diariamente, sempre no mesmo intervalo horário. Como qualquer contabilização automatizada, pode incorporar duplicações, variações editoriais e ruído algorítmico. Por isso, o mais prudente é encarar estes números como indicadores de tendência, não como um estudo exaustivo e muito profundo.

Se quisermos um debate mais informado e plural, precisamos de monitorização periódica e transparente da agenda mediática. O MDP propõe-se fazê-la em ciclos regulares, incluindo as presidenciais que se avizinham. Não para limitar a pluralidade mas para iluminar as assimetrias que, invisíveis, decidem o que vemos, quando vemos e com que emoção vemos.

Democracia participativa também é isto: olhar para o espelho dos media, medir o reflexo e perguntar, sem receio, quem está a segurar a câmara ou o teclado que escreve as notícias.

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