domingo, 14 de novembro de 2004

As vantagens do decrescimento


O crescimento pelo crescimento torna-se o objetivo primordial, senão o único da vida, na sociedade capitalista, o que acarreta uma degradação progressiva do ambiente e dos recursos globais. Vivemos, atualmente, às vésperas de catástrofes previsíveis
Serge Latouche

“Pois será uma satisfação perfeitamente positiva ingerir alimentos sadios, ter menos barulho, estar num meio ambiente equilibrado, não mais sofrer restrições de circulação etc.” Jacques Ellul 1

Em 14 de fevereiro de 2002, em Silver Spring, diante dos responsáveis norte-americanos pela meteorologia, George W. Bush declarava: “Por ser a chave do progresso do meio ambiente, por fornecer os recursos que permitem investir nas tecnologias limpas, o crescimento é a solução, não o problema 2.” No fundo, essa posição “pró-crescimento” também é partilhada pela esquerda, inclusive por muitos contestadores da globalização que consideram que o crescimento também é a solução para os problemas sociais, criando empregos e propiciando uma distribuição mais igualitária.

Fabrice Nicolino, por exemplo, colunista de meio ambiente do semanário parisiense Politis, próximo do movimento que contesta a globalização, demitiu-se recentemente desse jornal após um conflito interno provocado pela reforma das aposentadorias. Seria o debate que se seguiu revelador de um mal-estar na esquerda 3? A razão do conflito, considera um leitor, é provavelmente “ousar ir contra uma espécie de pensamento único, comum a quase toda a classe política francesa, que afirma que nossa felicidade deve obrigatoriamente passar por mais crescimento, mais produtividade, mais poder aquisitivo e, portanto, mais consumo4.

Crescimento, o único objetivo da vida
Depois de algumas décadas de desperdício frenético, parece que entramos na zona das tempestades – no sentido próprio e no figurado. As perturbações climáticas são acompanhadas pelas guerras do petróleo, que serão seguidas pela guerra da água 5, mas também por possíveis pandemias, desaparecimento de espécies vegetais e animais essenciais como consequência de catástrofes biogenéticas previsíveis.

Nessas condições, a sociedade de crescimento não é sustentável, nem desejável. É urgente, portanto, que se pense numa sociedade de “decrescimento”, se possível serena e convivial.

A sociedade de crescimento pode ser definida como uma sociedade dominada por uma economia de crescimento, precisamente, e que tende a se deixar absorver por ela. O crescimento pelo crescimento torna-se assim o objetivo primordial, senão o único da vida. Uma tal sociedade não é sustentável, porque se choca com os limites da biosfera. Se tomarmos, como índice do “peso” para o meio ambiente de nosso modo de vida, “a marca” ecológica deste último em superfície terrestre necessária, obteremos resultados insustentáveis, tanto do ponto de vista da equidade nos direitos de retirada da natureza, quanto do ponto de vista da capacidade de regeneração da biosfera. Um cidadão dos Estados Unidos consome em média 9,6 hectares, um canadiano 7,2, um europeu médio 4,5. Estamos, portanto, muito distantes da igualdade planetária e mais ainda de um modo de civilização sustentável, que precisaria se limitar a 1,4 hectare, admitindo-se que a população atual permaneça estável7.

A fé na ciência dos economistas
Para conciliar os dois imperativos contraditórios do crescimento e do respeito pelo meio ambiente, os especialistas pensam encontrar a poção mágica na ecoeficiência, peça central e, a bem dizer, a única base séria do “desenvolvimento sustentável”. Trata-se de reduzir progressivamente o impacto ecológico e a intensidade da retirada dos recursos naturais até atingir um nível compatível com a capacidade reconhecida de carga do planeta7.

É incontestável que a eficiência ecológica tem aumentado de maneira notável, mas, ao mesmo tempo, a perpetuação do crescimento desenfreado acarreta uma degradação global. As baixas de impactos e de poluição por unidade de mercadoria produzida são sistematicamente invalidadas pela multiplicação do número de unidades vendidas (fenómeno ao qual se deu o nome de “efeito retorno”). A “nova economia” é, na verdade, relativamente imaterial ou menos material, mas ela mais complementa do que substitui a anterior. No final das contas, todos os indicadores demonstram que as retiradas continuam a crescer 8.

Enfim, é preciso a fé inabalável dos economistas ortodoxos para pensar que a ciência do futuro resolverá todos os problemas, e que é concebível a substituição ilimitada da natureza pelo artifício.

Elevação do nível de vida é ilusória
Se acompanharmos o raciocínio de Ivan Illich, o desaparecimento programado da sociedade de crescimento não é necessariamente uma má notícia. “A boa notícia é que não é primeiramente para evitar os efeitos secundários negativos de uma coisa que seria boa em si que precisamos renunciar a nosso modo de vida – como se tivéssemos que optar entre o prazer de um alimento delicioso e os riscos aferentes. Não, é que o alimento é intrinsecamente ruim, e que seríamos bem mais felizes ao evitá-lo. Viver de outra maneira para viver melhor 9.”

A sociedade de crescimento não é desejável, pelo menos por três razões: produz um aumento das desigualdades e das injustiças, cria um bem-estar amplamente ilusório, e não promove, para os próprios “favorecidos”, uma sociedade convivial, mas uma anti-sociedade doente devido à sua riqueza.

A elevação do nível de vida de que pensa se beneficiar a maioria dos cidadãos do hemisfério Norte é cada vez mais ilusória. É claro que gastam mais, em termos de compra de bens e serviços, mas esquecem de deduzir a elevação superior dos custos. Esta última assume formas diversas, mercantis e não mercantis: degradação da qualidade de vida – não quantificada, mas sofrida (ar, água, meio ambiente) –, despesas de “compensação” e de reparação (medicamentos, transportes, lazer) que se tornaram necessárias na vida moderna, elevação dos preços dos artigos escassos (água engarrafada, energia, espaços verdes...).

Decrescimento não é crescimento negativo
Herman Daly estabeleceu um índice sintético, o Genuine Progress Indicator (Indicador de Progresso Autêntico - IPA) que corrige, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) das perdas causadas pela poluição e pela degradação do meio ambiente. A partir da década de 70, o índice de progresso real estagnou, e até regrediu, para os Estados Unidos, enquanto o do PIB não pára de aumentar10. É lamentável que, na França, ninguém ainda se tenha encarregado de fazer esses cálculos. Temos todos os motivos para pensar que o resultado seria comparável. Seria o mesmo que dizer que, nessas condições, o crescimento é um mito, até no interior do imaginário da economia de bem-estar, muito mais na sociedade de consumo! Pois o que cresce de um lado, decresce muito mais do outro.

Infelizmente tudo isso não basta para nos levar a abandonar o bólido que nos conduz diretamente para o impasse, e a embarcar na direção oposta.

Compreendamos bem. O decrescimento é uma necessidade: não é, de saída, um ideal, nem o único objetivo de uma sociedade de pós-desenvolvimento ou de um outro mundo possível. Mas façamos das tripas coração, e admitamos, para as sociedades do hemisfério Norte, o decrescimento como um objetivo do qual se pode tirar proveito. A palavra de ordem de decrescimento tem sobretudo como finalidade marcar nitidamente o abandono do objetivo insensato do crescimento pelo crescimento. Em particular, o decrescimento não é o crescimento negativo, expressão contraditória e absurda que traduz bem a dominação do imaginário do crescimento. Isso quereria dizer ao pé da letra: “avançar recuando”. A dificuldade em que nos encontramos para traduzir “decrescimento” em inglês é muito reveladora dessa dominação mental do economês, e simétrica, de alguma forma, da impossibilidade de traduzir crescimento ou desenvolvimento (mas também, naturalmente, decrescimento...) nas línguas africanas.

O impacto sobre o meio ambiente
Sabe-se que a simples desaceleração do crescimento mergulha nossas sociedades no desespero devido ao desemprego e ao abandono dos programas sociais, culturais e ambientais que garantem um mínimo de qualidade de vida. Imagine-se que catástrofe seria uma taxa de crescimento negativo! Da mesma forma que não há nada pior do que uma sociedade trabalhista sem trabalho, não há nada pior do que uma sociedade de crescimento sem crescimento. É o que condena a esquerda institucional ao social-liberalismo, por não ousar fazer a descolonização do imaginário. O decrescimento, portanto, só é concebível numa “sociedade de decrescimento”. É conveniente determinar bem seus contornos.

Uma política de decrescimento poderia consistir inicialmente em reduzir, e até suprimir, o peso sobre o meio ambiente das cargas que não trazem benefício algum. O questionamento do volume considerável dos deslocamentos de homens e de mercadorias através do planeta com o impacto negativo correspondente (portanto, uma “relocalização” da economia), o questionamento do volume não menos considerável da publicidade exagerada e frequentemente nefasta e, enfim, o questionamento da obsolescência acelerada dos produtos e dos aparelhos descartáveis, sem outra justificativa a não ser fazer com que gire cada vez mais depressa a megamáquina infernal, são reservas representativas de decrescimento no consumo material.

“Consumo e estilos de vida”
Entendido desta forma, o decrescimento não significa necessariamente uma regressão do bem-estar. Em 1848, para Karl Marx, havia chegado o tempo da revolução social e o sistema estava pronto para a passagem à sociedade comunista de abundância. A inacreditável superprodução material de tecidos de algodão e de bens manufaturados parecia-lhe mais do que suficiente, uma vez abolido o monopólio do capital, para alimentar, alojar e vestir corretamente a população (pelo menos a ocidental). E, no entanto, a “riqueza” material era infinitamente menor do que hoje. Não havia carros, nem aviões, nem plástico, nem máquinas de lavar, nem geladeiras, nem computadores, nem as biotecnologias, nem também os pesticidas, os adubos químicos ou a energia atômica! Apesar das alterações inauditas da industrialização, as necessidades ainda eram modestas e era possível satisfazê-las. A felicidade, quanto à sua base material, parecia ao alcance da mão.

Para conceber a sociedade de decrescimento sereno e chegar a ela, é preciso literalmente sair da economia. Isto significa questionar a dominação da economia sobre o resto da vida na teoria e na prática, mas sobretudo em nossas cabeças. A redução feroz do tempo de trabalho imposto para garantir a todos um emprego satisfatório é uma condição prévia. Em 1981, Jacques Ellul, um dos primeiros pensadores de uma sociedade de decrescimento, já fixava como objetivo para o trabalho, não mais do que duas horas por dia11. Inspirando-se na carta de princípios “Consumo e estilos de vida”, proposta ao Fórum das Organização Não Governamentais (ONG) durante a reunião de 1992 no Rio, é possível sintetizar tudo isso num programa em seis “R”: Reavaliar, Reestruturar, Redistribuir, Reduzir, Reutilizar, Reciclar. Estes seis objetivos interdependentes formam um círculo virtuoso de decrescimento sereno, convivial e sustentável. Poder-se-ia até aumentar a lista dos “R” com reeducar, reconverter, redefinir, remodelar, repensar etc., e, é claro, relocalizar, mas todos esses “R” estão mais ou menos incluídos nos seis primeiros.

A descolonização do imaginário
Vê-se imediatamente quais são os valores que devem ser privilegiados e que deveriam ser prioritários em relação aos valores dominantes atuais. O altruísmo deveria preceder o egoísmo, a cooperação, preceder a competição desenfreada, o prazer do lazer, preceder a obsessão pelo trabalho, a importância da vida social, preceder o consumo ilimitado, o gosto pela bela obra, preceder a eficiência produtivista, o razoável, preceder o racional etc. O problema é que os valores atuais são sistêmicos. Isso significa que são suscitados e estimulados pelo sistema e que, em contrapartida, contribuem para reforçá-lo. É claro que a escolha de uma ética pessoal diferente, como a simplicidade voluntária, pode mudar a direção da tendência e solapar as bases imaginárias do sistema, mas sem um questionamento radical deste último, a mudança corre o risco de ser limitada.

Dirão que é um programa amplo e utópico? Será que a transição é possível sem uma revolução violenta – ou, mais precisamente, poderá a necessária revolução mental ser feita sem violência social? A limitação drástica dos ataques ao meio ambiente e, portanto, da produção de valores de troca incorporados em suportes materiais físicos não implica, necessariamente, numa limitação da produção de valores de uso através de produtos imateriais. Estes, pelo menos em parte, podem conservar uma forma mercantil.

No entanto, se o mercado e o lucro persistirem como incentivos, não podem mais ser os fundamentos do sistema. Podem ser concebidas medidas progressivas constituindo etapas, mas é impossível dizer se serão passivamente aceitas pelos “privilegiados”, que seriam suas vítimas, nem pelas atuais vítimas do sistema, que são mental e fisicamente “drogados” por ele. Entretanto, a preocupante onda de calor de 2003 no Sudoeste da Europa agiu muito mais do que todos os nossos argumentos no sentido de convencer sobre a necessidade de se orientar para uma sociedade de decrescimento. Dessa forma, para realizar a necessária descolonização do imaginário, pode-se, no futuro, contar muito amplamente com a pedagogia das catástrofes.

1 - Entrevista com Jacques Ellul, Patrick Chastenet, La table ronde, Paris, 1994, p. 342.
2 - Le Monde, 16 de fevereiro de 2002.
3 - Fabrice Nicolino, "Retraite ou déroute?", Politis, 8 de maio de 2003. 
4 - Politis, 12 de junho de 2003.
5 - Vandana Shiva, La guerre de l’eau. Parangon, 2003.
6 - Gianfranco Bologna (org.), Italia capace di futuro. WWF-EMI, Bologne, 2001, pp. 86-88.
7 - The Business case for sustanable developpement. Documento do World Business Counsil for Sustanable Developpement para Johannesburgo.
8 - Mauro Bonaiuti, "Nicholas Georgescu-Roegen. Bioeconomia. Verso un’altra economia ecologicamente e socialmente sostenible". Bollati Boringhieri, Torino, 2003. Especialmente, pp. 38-40.
9 - Jean-Pierre Dupuy, “ Ivan Illich ou la bonne nouvelle ”, Le Monde, 27 de dezembro de 2002.
10 - C. Cobb, T. Halstead, J. Rowe, “ The Genuine Progress Indicator: Summary of Data and methodology, Redefining Progress ”, 1995 e dos mesmos, “ If the GDP is Up, Why is America Down ? ”, in Athlantic Monthly, n° 276, San Francisco, outubro de 1995.
11 - Ler “Changer de révolution”, citado por Jean-Luc Porquet in Ellul L’homme qui avait (presque) tout prévu, Le cherche midi, 2003, pp. 212-213.

Tradução do artigo original no Le Monde Diplomatique, por Serge Latouche

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