“Estão ali três!”, ouvi atrás de mim, num sussurro entusiasmado, quando já tinha perdido esperança de avistar qualquer abutre-preto (Aegypius monachus). De binóculos cravados nos olhos, o biólogo Eduardo Santos, da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), apontava algures para o céu azul, onde, à vista desarmada, um trio de pontos indistinguíveis voava placidamente.
Coloquei os binóculos e sorri. Eram dois abutres-pretos e um grifo (Gyps fulvus), que planavam em círculos, aproveitando as correntes de ar quente para se deslocarem sem terem de gastar muita energia. Dois deles provavelmente eram o casal do ninho que momentos antes tínhamos visto vazio.
Naquela manhã fria de janeiro, andávamos pela Herdade da Contenda, em Moura, em busca de abutres-pretos, para observar os comportamentos dessa espécie ameaçada e para avaliar a ocupação dos ninhos e talvez até descobrir novos, numa altura em que os casais se preparavam para a época de reprodução, que estava prestes a começar.
Até 2027, os conservacionistas querem que, pelo menos, metade das posturas resultem num juvenil voador que seja recrutado para a população.
Foi nessa herdade alentejana, com 5.267 hectares, que é propriedade da câmara de Moura desde 1893 e gerida pela Herdade da Contenda, E.M., que entre 17 e 18 dos cerca de 80 casais de abutres-pretos que nidificam em Portugal foram registados em 2023 pelo projeto LIFE Aegypius Return.
Coordenado pela Vulture Conservation Foundation (VCF), os principais objetivos são estabilizar a população da espécie em Portugal, potenciar a conectividade entre as quatro colónias atuais, que se estabeleça uma quinta colónia e, sobretudo, aumentar o sucesso reprodutivo.
Os abutres-pretos põem apenas um ovo por temporada reprodutiva, o que torna a recuperação da espécie ainda mais desafiante. Das 50 crias nascidas no ano passado, quando arrancou o projeto, apenas entre 35 e 37 sobreviveram e foram recrutadas para a população. Até 2027, os conservacionistas querem que, pelo menos, metade das posturas resultem num juvenil voador que seja recrutado para a população.
“Esse é um número que ajudará a garantir a sobrevivência a longo-prazo da espécie”, disse Milene Matos, coordenadora do projeto em representação da VCF.
O abutre-preto e a sua história em Portugal
No início da década de 1970, o abutre-preto foi dado como extinto em Portugal enquanto espécie reprodutora. Contudo, nunca chegou mesmo a desaparecer totalmente do território. Nos anos 1990, terá havido “algumas tentativas falhadas de reprodução”, contou Eduardo Santos.
Após perto de 40 anos sem reprodução em território nacional, em 2010 “os primeiros casais regressaram e reproduziram-se com sucesso no Tejo Internacional”, apontou, momento que marcou o retorno dos abutres-pretos a Portugal como espécie reprodutora.
Cerca de dois ou três anos depois, o primeiro casal fixou-se no Douro Internacional, onde atualmente se registam 3 casais, que em 2023 recrutaram duas crias para a sua colónia.
E em 2015, estabeleceram-se na Herdade da Contenda, especialmente devido aos esforços de conservação no âmbito do projeto LIFE Habitat Lince|Abutre, coordenado pela LPN. Na Serra da Malcata, estima-se que tal só tenha acontecido mais recentemente, em 2021.
O regresso dos abutres-pretos a Portugal deveu-se a uma série de fatores que tornaram isso possível. Desde logo, a implementação de medidas de conservação dos habitats da espécie foram fundamentais, fruto de esforços públicos e de vários projetos dedicados ao A. monachus, mas também devido à consolidação das colónias de Espanha, sobretudo as da região da fronteira com Portugal, que servem como “fonte” para as colónias lusas.
Os especialistas acreditam que a perseguição pelos humanos e o uso ilegal de venenos terão sido as principais ameaças que quase fizeram desaparecer totalmente os abutres-pretos em Portugal.
Os especialistas acreditam que a perseguição pelos humanos e o uso ilegal de venenos terão sido as principais ameaças que quase fizeram desaparecer totalmente os abutres-pretos em Portugal.
“Esses terão sido os fatores-chave que fizeram declinar as populações, que causaram mortalidade generalizada”, recordou Eduardo Santos, acrescentando que também “as profundas alterações no habitat e na paisagem e as mudanças também ao nível da agropecuária” terão tido influência. Contudo, se não fosse o envenenamento, “teriam sobrado, aqui e acolá, alguns casais”, que teriam ajudado a manter a espécie em Portugal.
O abutre-preto estava classificado como espécie ‘Criticamente em Perigo’ no país, estimando-se, em 2022, antes de este projeto LIFE começar, que existiriam perto de 40 casais reprodutores.
No entanto, os trabalhos aturados de monitorização, e a articulação e partilha de informação e recursos entre as nove entidades parceiras, incluindo a Herdade da Contenda, E.M., e a LPN, e outras, como a Quercus, a Rewilding Portugal e o próprio ICNF, aumentaram para 80 o número de casais registados, permitindo à espécie passar, recentemente, a ser classificada como ‘Em Perigo’, algo que só se esperava alcançar no final do projeto.
Uma das maiores aves de rapina do mundo
O abutre-preto é a maior ave de rapina de Portugal e da Europa, e uma das maiores e mais pesadas do mundo, com uma envergadura que pode chegar aos três metros, da ponta de uma asa à outra.
Não há traços marcantes que permitam distinguir entre machos e fêmeas, pelo que os cientistas o deduzem através da observação dos comportamentos de cópula dos casais.
Em cada época reprodutiva, põem apenas um ovo, um fator que dificulta, mas não impossibilita, a recuperação da espécie em locais onde tenha sofrido sérias perdas populacionais. As posturas habitualmente ocorrem entre meados de fevereiro e finais de abril.
Após um período de incubação de cerca de 55 dias, nascem os pequenos abutres, que recebem cuidados de ambos os progenitores, que participam igualmente nessa tarefa para dar à sua prole a melhor hipótese de sobrevivência até atingir a independência.
Cria de abutre-preto, anilhada, a testar as asas. Crédito: Pinto Moreira – Herdade da Contenda
Com quatro meses, as crias começam a aventurar-se nos seus primeiros voos de aprendizagem, acompanhadas de perto pelos progenitores. Só se tornam verdadeiramente independentes entre outubro e janeiro ou fevereiro do ano seguinte, sobretudo quando o casal tem um novo ovo no qual tem de verter toda a sua atenção e esforços.
“Tal como outras espécies, incluindo nós, alguns juvenis tornam-se independentes mais tarde do que outros”, afirmou Eduardo Santos. Mesmo depois de deixarem o ninho dos pais, alguns, por vezes, ainda regressam a casa para tentarem receber alimento.
O abutre-preto é a maior ave de rapina de Portugal e da Europa, e uma das maiores e mais pesadas do mundo, com uma envergadura que pode chegar aos três metros, da ponta de uma asa à outra.
Considerada uma espécie gregária, o abutre-preto tende a formar colónias, mas os ninhos são instalados a vários metros uns dos outros. Disse-nos o biólogo que estas aves gostam de viver em comunidade, mas não demasiado perto dos seus conspecíficos. “Perto, mas não muito perto”, gracejou, indicando que “normalmente fazem os ninhos onde não possam ser vistos pelos outros abutres”.
Após se lançarem na vida adulta e de realizarem os chamados ‘voos de emancipação’, é frequente os juvenis regressarem ao local onde nasceram para aí se fixarem e se reproduzirem, um comportamento designado por filopatria.
Enquanto aves de grande porte, os abutres-pretos constroem os seus ninhos no topo de árvores altas, e são obras da mais extraordinária engenharia. Com a forma semelhante à de um grande sino virado de cabeça para baixo, os ninhos podem chegar a pesar 300 quilogramas.
Isso acontece, porque os abutres-pretos, que tendem a usar os mesmos ninhos de ano para ano, vão juntando cada vez mais ramos e folhas para melhorar as condições da estrutura, que pode ter dois metros de diâmetro e três de altura. Contudo, a altura não corresponde necessariamente à profundidade, uma vez que muitos materiais acumulados tornam a área interior mais pequena do que pode parecer à primeira vista.
Em algumas colónias, é possível observar uma preferência por determinadas espécies de árvores para nidificar. Por exemplo, na Herdade da Contenda, os abutres-pretos tendem a preferir fazer os ninhos em pinheiros-bravos antigos, geralmente com várias dezenas de anos de idade.
Embora não se saiba ao certo se se trata realmente de uma escolha feita pelos casais ou se é simplesmente devido à maior abundância de um tipo de árvore, é possível, ainda sem respaldo científico, sugerir que possa existir uma cultura, com os ensinamentos sobre como e onde construir os ninhos em segurança a serem transmitidos de uma geração para a seguinte.
Ninhos artificiais para promover a reprodução
Uma das ações do projeto LIFE Aegypius Return incide especificamente sobre os ninhos, cujo bom estado de conservação é essencial para promover o sucesso reprodutivo da espécie.
Os conservacionistas pretendem construir, no mínimo, 120 ninhos artificiais, ou plataformas, em áreas onde se estima haver um alto potencial para reprodução. Além disso, reparar e manter cerca de 105 ninhos existentes, naturais ou não, faz também parte do rol de ações previstas.
Para a construção dos ninhos artificiais, os cientistas têm de se pôr no lugar dos abutres e tentar ver o mundo como eles o veem. Para isso, escolhem locais com características semelhantes às de outros onde os abutres fizeram ninhos, e usam os mesmos materiais.
De olhar atento e experiente, Eduardo Santos esquadrinhava a cobertura florestal da Contenda em busca de sinais de abutres e de ninhos. Aos olhos destreinados, os ninhos, tanto os naturais como os artificiais, mal se veem por entre os ramos das árvores.
O que poderá distinguir os ninhos naturais dos artificiais é o facto de estes últimos serem suportados por uma forte malha metálica, que ajuda a tornar a estrutura mais resistente a intempéries que podem destruí-la e literalmente deitar por terra a possibilidade de esse casal gerar descendência num qualquer ano.
Pedro Rocha, administrador da Herdade da Contenda e que nos acompanhou durante a visita, recordou que, há menos de quatro anos, a tempestade Bárbara abateu-se fortemente sobre a propriedade, destruindo vários ninhos de abutres. A empresa municipal teve de contratar serviços externos para reparar as estruturas danificadas.
Já no âmbito deste projeto LIFE, em 2023 foram construídas 14 novas plataformas-ninhos e intervencionados 20 ninhos, para melhorar as suas condições e tentar assegurar o sucesso reprodutivo da espécie.
Combater o chumbo e os crimes ambientais
A contaminação continua a ser uma das grandes ameaças aos abutres-pretos, e a tantas outras espécies, e uma das maiores barreiras à sua recuperação em Portugal. Sendo animais necrófagos, que se alimentam dos cadáveres de animais e, assim, prestam um serviço vital para a saúde dos ecossistemas ao evitarem a propagação de doenças, os abutres estão particularmente expostos ao envenenamento por chumbo.
Embora a caça com munições de chumbo tenha sido proibida nas zonas húmidas de especial importância para a conservação da biodiversidade, podem ainda ser usadas nos restantes contextos. Como tal, as entidades envolvidas no LIFE Aegypius Return, em particular a Associação Nacional de Proprietários Rurais – Gestão Cinegética e Biodiversidade (ANPC), estão a trabalhar para que 14 zonas de caça e 300 caçadores abandonem as munições de chumbo e passem a usar munições não-contaminantes.
Milene Matos explicou-nos que o objetivo é que esses caçadores passem a ser “embaixadores de munições sem chumbo”. Para isso, o projeto vai adquirir munições alternativas e distribuí-las por essas pessoas, e realizar sessões de informação, algumas delas já este ano, e também de treino prático com essas munições alternativas, em campos de tiro, para mostrar que é possível fazer essa transição sem que o desempenho da caça seja negativamente afetado.
Para a construção dos ninhos artificiais, os cientistas têm de se pôr no lugar dos abutres e tentar ver o mundo como eles o veem.
“A intenção é que o chumbo não contamine os abutres nem outros necrófagos, nem a saúde dos humanos que consomem carne de caça”, salientou a bióloga, explicando que a contaminação por chumbo, embora possa não ser imediatamente fatal, pode causar, aos abutres especificamente, graves problemas hormonais e ao nível do desenvolvimento, bem como comprometer a sua capacidade de navegação e até o sucesso reprodutivo.
Além das munições, quer-se também capacitar as brigadas antiveneno da Guarda Nacional Republicana (GNR), que é também parceira do projeto, para melhorar a deteção, resposta e reporte de crimes ambientais, como a colocação de iscos envenenados, que, embora possam não ter os abutres-pretos como principal alvo, acabam por afetá-los, direta ou indiretamente, ameaçando a recuperação geral da espécie.
Instalar campos de alimentação
A recuperação ou reintrodução de qualquer espécie ameaçada depende também da disponibilidade de alimento. Sem comida, todas as ações de melhoria das condições dos habitats podem redundar em fracasso.
Atualmente, em Portugal, fruto de legislação comunitária, os animais de gado que morrem no campo, bem como os que são abatidos em atividades cinegéticas, não podem ser deixados no terreno, tendo de ser recolhidos e incinerados ou enterrados. Antigamente, essa era uma das principais fontes de alimento dos necrófagos, e essa mudança terá afetado fortemente as populações dessas aves.
Por isso, o projeto prevê a criação de um total de 66 áreas de alimentação não vedadas (56 em Portugal e 10 em Espanha), nas quais possam ser depositados os cadáveres de animais mortos e onde os abutres e outros necrófagos possam alimentar-se livremente.
Hoje, não existem campos de alimentação abertos em Portugal, mas há alguns vedados. Um deles está na Herdade da Contenda, para o qual são encaminhados os animais mortos da pecuária e da cinegética que são feitas na propriedade.
Isto, porque o transporte dos cadáveres dos animais e a sua posterior incineração são duas fontes de gases com efeito de estufa, e que esse sistema ora vigente é financiado pelas taxas cobradas aos produtores por cada animal que abatem e sobre os supermercados que comercializam essa carne. Assim, com o aumento de locais de alimentação, todos ganham: humanos, abutres e o planeta.
As primeiras áreas não vedadas em Portugal começarão a ser implementadas este ano. “Isso será já um grande sucesso”, declarou Milene Matos.
Futuro dos abutres-pretos em Portugal: Mais conhecimento e esperança
Em 2023, o projeto registou um total de entre 78 e 81 casais reprodutores, tendo nascido 50 crias, das quais pelos menos 35 terão sido recrutadas para a população nacional de abutre-preto.
“Estes resultados são ótimos e animadores, mas ainda não espelham esforços de conservação, mas sim uma coordenação na monitorização”, disse-nos Milene Matos, coordenadora do LIFE Aegypius Return.
“Só daqui para a frente, a melhoria dos resultados de reprodução é que vai, eventualmente, refletir já cuidados na gestão das áreas e dos esforços que vamos empreender”, destacou.
Além das outras ações, Milene Matos contou que, este ano, será criado uma espécie de ‘mapa genético’ dos abutres-pretos em Portugal, para aprofundar o conhecimento sobre as dinâmicas populacionais da espécie. Vários estudos, sobre as necessidades de alimentação e sobre os habitats onde os esforços de conservação devem incidir mais fortemente, estão também a ser preparados e serão divulgados em breve.
Este ano deverá ser também inaugurada uma jaula de aclimatização, no Douro Internacional, que permitirá ao projeto receber abutres-pretos recuperados e devolvê-los, tranquilamente à natureza.
“A ideia é que todos os juvenis e adultos reabilitados em centros de recuperação da fauna e sem território definido sejam encaminhados para esta jaula do Douro, onde ficarão entre seis e nove meses”, explicou. Durante esse tempo, o animal poderá ir vendo e interagindo com os abutres do outro lado da jaula, onde está um campo de alimentação, para que, quando for libertado, possa já ter uma noção do território e dos indivíduos que encontrará e no grupo dos quais poderá vir a integrar-se.
“Se conseguirmos fazer isto tudo, já é muito trabalho, e em 2025 já vai refletir-se nos números da espécie e no sucesso da reprodução”, apontou, recordando que é um esforço massivo que envolve muitas entidades parceiras, vários atores-chave e cooperação luso-espanhola. Estão também a ser feitos estudos para avaliar as perceções sociais sobre os abutres, para tentar perceber como agentes com influência na gestão do território veem esses animais e, até, detetar potenciais focos de conflito que devam ser abordados.
Questionado sobre se a floresta portuguesa reúne realmente as condições para permitir a recuperação do abutre-preto, Eduardo Santos respondeu que “a questão não é se temos uma floresta ou paisagem capaz de suportar abutres unicamente pelas condições para a nidificação, é porque uma colónia só se estabelece se tiver um bom local de nidificação, com as árvores adequadas, com tranquilidade”. Mas é também preciso que “a zona em redor tenha alimento em quantidade e qualidade necessárias, que a aceitação das comunidades locais seja compatível com isso”.
Para os especialistas, florestas com condições biofísicas para suportar abutres existem em Portugal, mas que conjuguem todos esses fatores é outra questão. “Falta tudo o resto”, disse Milene Matos, ao que o colega acrescentou “não é por acaso que eles estão só em quatro sítios”.
“A verdade é que hoje não há muitos mais sítios com as condições adequadas”, lamentou a coordenadora do projeto. Mas, sem qualquer hesitação, disse estar otimista que a espécie recuperará no país, suportada pelo reforço das colónias que atualmente existem. Os abutres-pretos têm ainda um longo caminho pela frente, mas a luz da esperança brilha fortemente.
Nota: As fotos aqui apresentadas foram tiradas a uma distância segura para fins de monitorização e conservação. É crucial não se aproximar de ninhos para fotografar, fazer birdwatching ou outra atividade durante a época de reprodução, uma vez que corresponde a um período muito sensível e qualquer perturbação aos casais nidificantes pode resultar em insucesso reprodutor.
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