Foi a grande surpresa do discurso do Estado da União Europeia, pela presidente da Comissão Europeia: um inquérito sobre os subsídios aos veículos elétricos chineses. O que é que acontece agora?
"A concorrência só é verdadeira se for leal", afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, quarta-feira, durante o discurso no Parlamento Europeu. "Temos de ser claros quanto aos riscos que enfrentamos", acrescentou.
O anúncio inesperado de uma investigação formal às subvenções aos automóveis elétricos fabricados na China, que entram no mercado europeu, suscitou aplausos dos eurodeputados.
"Os mercados mundiais estão agora inundados de automóveis elétricos chineses mais baratos. E o seu preço é mantido artificialmente baixo através de enormes subsídios estatais. Isto está a distorcer o nosso mercado e, como não aceitamos esta distorção interna no nosso mercado, também não a aceitamos vinda de fora", explicou Ursula von der Leyen.
Mas o que é que isto significa exatamente?
Injeção de subsídios
Enquanto órgão executivo, a Comissão Europeia tem a competência exclusiva para definir a política comercial comum da UE e lança regularmente inquéritos sobre importações estrangeiras suscetíveis de prejudicar o mercado único.
Uma investigação anti-subvenções é desencadeada quando um país estrangeiro é suspeito de subvencionar uma empresa ou um grupo de empresas para produzir um determinado produto e esta subvenção causa "prejuízo" à indústria europeia.
Graças a este generoso auxílio estatal, os custos de montagem são significativamente compensados e a empresa pode, por conseguinte, vender o seu produto a um preço inferior.
Este desconto coloca as empresas europeias que vendem um produto semelhante em grande desvantagem, porque não recebem o mesmo nível de apoio dos seus governos nacionais e ficam com duas opções: ou vendem os seus produtos a um preço mais baixo, mas arriscam-se a perder dinheiro, ou vendem os seus produtos a um preço mais elevado, mas arriscam-se a perder clientes.
É o que parece estar a acontecer com os automóveis elétricos chineses.
Há muito que o governo de Pequim é acusado pelos países ocidentais de injetar uma quantidade excessiva de dinheiro público na sua indústria nacional. A ajuda é difícil de localizar e pode assumir várias formas, incluindo empréstimos preferenciais, tributação favorável e transferências diretas de fundos.
Ao injetar subsídios, a China garante que as suas empresas nacionais cumprem os objetivos fixados nos seus planos económicos quinquenais. O plano atual (2021-2025) menciona explicitamente os "veículos de energia nova" como um dos pilares do sistema industrial.
20% de diferença no preço
De acordo com a Comissão Europeia, os subsídios resultaram numa diferença de preço média de 20% entre os automóveis elétricos fabricados na China e os seus equivalentes fabricados na UE.
A China tem a vantagem adicional de deter uma posição dominante nas matérias-primas necessárias para o fabrico de baterias, tais como o lítio, o cobalto, o níquel e o manganês, criando um ambiente abrangente em que a China controla praticamente todos os aspetos da cadeia de abastecimento.
O resultado inevitável foi um aumento dramático da montagem de automóveis elétricos fabricados na China e uma vaga de exportações para todo o mundo.
O mercado da UE é considerado particularmente atrativo devido à sua legislação que visa a futura proibição do motor de combustão e ao seu direito de cobrar apenas 10% sobre todos os automóveis importados. Em comparação, os Estados Unidos aplicam uma taxa de 27,5% e a Índia uma tarifa de 70%.
A Comissão Europeia estima que as marcas chinesas, como a BYD, a Nio e a Xpeng, já conquistaram 8% do mercado europeu de automóveis elétricos, contra 4% em 2021, e poderão chegar aos 15% em 2025, se a tendência se mantiver ininterrupta.
Esta projeção pode ser conservadora. Ainda na semana passada, os fabricantes de automóveis chineses roubaram as atenções com os seus modelos de baixo custo num grande salão automóvel, em Munique (Alemanha).
"A China tem os olhos postos no mercado europeu, com potencial para mudar fundamentalmente a face das indústrias europeias tal como as conhecemos", afirmou Sigrid de Vries, diretora-geral da Associação dos Construtores Europeus de Automóveis (ACEA), num blogue, no mês passado. "Parece que a decisão estratégica da China de investir cedo e ao longo de toda a cadeia de valor está a dar dividendos".
Subsídios versus tarifas aduaneiras
Confrontada com uma avalanche ainda maior de carros chineses baratos que poderiam dizimar as empresas europeias, que estão a lutar para lidar com a infinidade de problemas económicos desencadeados pela guerra da Rússia contra a Ucrânia, Bruxelas está a tomar medidas preventivas.
"A Europa está aberta à concorrência, mas não a um nivelamento por baixo. Temos de nos defender contra práticas desleais", disse von der Leyen.
Como sinal da gravidade da ameaça, a Comissão lançou o inquérito por sua própria iniciativa (ex-officio), em vez de esperar que um Estado-membro apresente uma queixa formal, como acontece normalmente neste tipo de casos comerciais.
A partir do momento em que o inquérito é notificado no Jornal Oficial da UE, o relógio começa a contar: a Comissão Europeia terá um prazo máximo de 13 meses para decidir se impõe os chamados "direitos de compensação" (por outras palavras, tarifas aduaneiras) aos automóveis elétricos chineses ou se encerra o inquérito sem tomar outras medidas.
Os direitos aduaneiros viriam juntar-se ao atual direito de importação de 10%, a fim de compensar a vantagem injusta conferida pelas subvenções. O seu âmbito dependerá dos elementos de prova recolhidos pelo executivo e das reações das empresas europeias.
Se eventualmente aprovadas, as tarifas aplicar-se-ão a todos os veículos elétricos a bateria (VEB) fabricados na China. Isto significa que os fabricantes de automóveis europeus e norte-americanos que operam fábricas na China, como a Volkswagen, a BMW, a Mercedes-Benz e a Tesla, poderão ser potencialmente sujeitos a direitos aduaneiros, se beneficiarem de auxílios estatais chineses.
Os Estados-membros terão a possibilidade de bloquear a imposição de direitos aduaneiros, mas apenas se obtiverem uma maioria qualificada (15 países que representem, pelo menos, 65% da população da UE).
Maior tensão com a China
Independentemente do resultado final, o lançamento da investigação marca uma escalada significativa nas relações entre a UE e a China, que começaram a ficar mais tensas desde a pandemia de Covid-19 e o início da guerra na Ucrânia.
Tal representa, também, uma das primeiras consequências tangíveis da estratégia de redução de riscos de von der Leyen para gerir o comportamento cada vez mais assertivo do governo de Pequim, sem romper relações.
Para Simone Tagliapietra, analista no centro de estudos Bruegel, a decisão da Comissão indica a vontade de utilizar o seu arsenal de instrumentos comerciais "de forma mais proativa" para defender a indústria da UE e evitar os erros do passado, numa referência à forma como a indústria solar europeia foi ultrapassada pela concorrência chinesa.
"Este é o início de uma longa jornada", disse Tagliapietra em comunicado, "que pode acabar por funcionar, mas que deve ser acompanhada de uma política industrial ativa para que a indústria da UE desenvolva rapidamente a sua competitividade".
A Associação Alemã da Indústria Automóvel fez uma avaliação mais cuidadosa e apelou a um quadro mais amplo para estimular os investimentos e ajudar as empresas a fazer face aos elevados custos da energia, impostos, taxas e burocracia excessiva.
"Os danos devem ser medidos em termos de causa e o interesse comum deve ser tido em conta. As possíveis reacções da China também devem ser consideradas", afirmou um porta-voz.
Entretanto, a Câmara de Comércio da China para a UE (CCCEU) expressou a sua forte condenação, afirmando que a "vantagem industrial substancial" dos veículos chineses não era o resultado de subsídios, mas sim de "inovação" e "parcerias de cooperação".
"Encorajamos vivamente a UE a abordar o progresso da indústria de veículos elétricos da China com objetividade, em vez de recorrer a medidas económicas e comerciais unilaterais", afirmou a CCCEU, alertando para o facto de as tarifas poderem ir contra as regras da Organização Mundial do Comércio.
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