Rui Costa, que dirige um grupo de investigação no centro
de neurociências da Fundação Champalimaud, fala em entrevista ao DN do seu
trabalho, de algumas das suas descobertas e desse órgão complexo e maravilhoso
que é o cérebro humano
Na Guarda, onde nasceu e cresceu, e na aldeia dos pais, lá
perto, Rui Costa aprendeu a amar a natureza. Na televisão, David Attenbouroug
falava-lhe doutros mistérios e ele acabou por ir para veterinária, para poder
estudar o comportamento animal. Daí às neurociências foi um passo. Já fez
várias descobertas, algumas das quais poderão conduzir a novas terapias para
doenças como a de Parkinson, ou os distúrbios da compulsão. Dirige um grupo de
investigação na Fundação Champalimaud. É lá, no seu gabinete fronteiro ao Tejo,
que nos encontramos, numa manhã cheia de sol.
Primeiro formou-se em veterinária e depois vieram as
neurociências. Não foi uma grande reviravolta?
Pode parecer, mas a minha inclinação para veterinária
aconteceu porque eu gostava de comportamento animal. No estágio fui para a
Suécia fazer investigação em comportamento animal, sobre a amamentação. Fiz
manipulações com a oxitocina, a hormona que está relacionada com a ligação mãe-filho
e com a ejeção do leite. Pus cateteres nos animais e por controlo remoto
conseguia dar mais oxitocina ou bloqueá-la para ver o que acontecia.
Percebeu coisas novas?
Sim. Há uma teoria chamada optimal foraging, ou valores de
otimização mínima, segundo a qual há uma estratégia ótima para explorar o mundo
para um objetivo. Descobri que isso se aplica à amamentação. A cria mama numa
glândula e quando o leite diminui muda para outra, e isso é governado pela
oxitocina. No estudo, se eu injetava mais hormona na mãe, a cria ficava mais
tempo a mamar numa glândula, se bloqueava, ela mudava. Vimos que o padrão
obedece àquela teoria e descobrimos que aquele comportamento não é inato, é
aprendido, e leva três ou quatro semanas a ficar ótimo. Pensei que devia estar
ali a acontecer qualquer coisa e, então, um professor de etologia disse-me:
"Isso já não é etologia, é neurociência". E eu pensei: então é isso
que quero fazer.
Que idade tinha?
Tinha 23 anos, e regressei a Portugal. Entrei no programa de
doutoramento GABBA[ Biologia Básica e Aplicada] da Universidade do Porto e
dei-me conta de que a neurociência clássica estava à beira de uma grande
revolução, com a biologia molecular e a genética. Percebi que tinha de fazer
neurociência ligada à genética. Fiz o doutoramento nos Estados Unidos com um
português, o Alcino Silva, a primeira pessoa que fez uma mutação genética no
cérebro de um ratinho. Escolhi a área de aprendizagem de memória, com um estudo
sobre a neurofibromatose do tipo 1, uma doença causada por mutações num gene,
que causa deficiências de aprendizagem. Criámos um modelo em ratinho, com as
mesmas mutações, e isso permitiu-nos estudar o que acontece quando há memória e
aprendizagem normal e quando há a mutação.
E o que viram?
No cérebro há neurónios inibitórios e excitatórios e o que
vimos foi que a inibição dos neurónios está aumentada com a mutação, porque há
uma molécula sobreactiva. Conseguimos diminuir a inibição dos neurónios e
baixar a atividade da molécula, e verificámos que isso normalizava os problemas
de aprendizagem. Foi a primeira vez que se falou numa doença ligada a este
equilíbrio de excitação e inibição nos neurónios e também que se conseguiu
reverter problemas de aprendizagem no rato adulto, e depois em adolescentes e
adultos humanos. Esta é uma doença do neurodesenvolvimento e há a ideia de que,
se se perde a janela da aprendizagem, depois já não há nada a fazer. Nós
verificámos nesta doença que não é bem assim. Isso depois levou a ensaios
clínicos, em que participou o Alcino Silva. Eu já não estava envolvido, mas
continuo a seguir esses estudos.
Já existe uma terapia?
Há vários compostos em estudo. Ainda não há resultados dos
últimos ensaios clínicos, mas há algumas indicações positivas anteriores. Há
muitos fármacos que já foram testados em pessoas e que são seguros, mas que
foram testados para outras coisas. E para este tipo de doença, há um ou dois
desses que, se funcionarem, já estão aprovados. A minha filosofia é a de que
para muitas doenças pode-se encontrar soluções.
É o caso dessa doença?
É. No meu trabalho estudo coisas interessantes, mas ligadas
a um problema, ou uma doença, porque sei que isso é relevante. Depois do
doutoramento sobre as memórias, decidi estudar a aprendizagem das ações. É
incrível o que nós, humanos, fazemos com a informação. Construímos edifícios,
criamos carros e máquinas. É a nossa capacidade de mudar o mundo. Isso
interessava-me muito. Por exemplo, como é que iniciamos uma ação de forma
espontânea? O que governa essas coisas em nós? E depois, se gostamos de qualquer
coisa, como voltamos a fazê-la? Como é que o cérebro sabe, e como ganhamos uma
capacidade que parece inata, mas que foi aprendida?
Como é que essas coisas se estudam no laboratório?
Há uns anos, tudo isto era do domínio da filosofia. Mas há
pessoas que não conseguem iniciar ações espontâneas, que são os pacientes de
Parkinson. No cérebro destes doentes os neurónios da dopamina na zona lateral
morrem. Nós vimos que estes neurónios são fundamentais na atividade neuronal
para a iniciação do movimento, e que há duas vias para isso: uma direta e uma
indirecta. Pensava-se que estes circuitos neuronais eram como um acelerador e
um travão. Nós descobrimos que estão os dois ativos e que são ambos importantes
para a ação, e agora pensamos que uma, a via direta, é mais importante para
iniciar e sustentar a ação, e a outra para mudar de ação. Há doenças, por
exemplo, em que o problema é fazer esta mudança da ação, como nas compulsões,
ou no autismo. A nossa hipótese é que na compulsividade a via indireta está menos
ativa, ou a direta está mais, e no défice de atenção seria o oposto. O que se
vê em termos de sintomas são coisas muito diferentes, dependendo de onde está a
desregulação, mas há circuitos em comum que aprendem e controlam ações. As
doenças oferecem-nos janelas para percebermos o que está a acontecer, e isso
depois ajuda-nos a encontrar soluções para as doenças.
E quando poderá haver novas terapias para as doenças
ligadas a esses circuitos da ação?
Talvez dentro de 10 anos. Sou um otimista.
O seu grupo participou no projeto Brain Flight para fazer
voar um drone só com o pensamento. Como se põe um drone a voar assim?
Neste momento já fazemos voar um avião. A Daimler modificou
um avião e há duas semanas e meia [no princípio de dezembro], em Munique,
fizemos isso. O piloto, a certa altura, no ar, largou os comandos e fez o voo
só com comando cerebral. Há várias formas de fazer isso. Uma é perceber o que
acontece no cérebro quando se mexe um braço, por exemplo, e depois usar isso
para um comando. Outra é pedir à pessoa que pense, por exemplo, em nuvem, e a
essa atividade cerebral atribuir o comando de viragem à direita. Depois, pensar
em Sol para virar à esquerda, e assim fazer um classificador. A terceira, que é
o nosso trabalho, é através da aprendizagem de ações.
Como é que isso funciona?
No fundo é muito simples. Quando nascemos não sabemos
controlar os braços ou as pernas, mas aprendemos e ao fim de muita prática isso
automatiza-se de forma natural. Quando aprendemos a mexer um cursor num
computador, com um rato, é a mesma coisa. Ao fim de uns dias a experimentar, a
pessoa fica muito boa naquilo. Então pensámos: vamos fazer a mesma coisa. Temos
o jogo do avião, ligamos a atividade do cérebro ao jogo com elétrodos externos
que medem essa atividade, e o avião anda para a esquerda e para a direita, como
o cursor do computador, baseado só na atividade do cérebro. No início não se
consegue, até que se começa a ter algum controlo, e ao fim de duas semanas, em
média, as pessoas estão acima dos 80% no número de vezes que querem ir para um
lado, ou para outro, e vão.
Mas as pessoas pensam em quê?
No início podem pensar em relaxar, ou em concentrar-se. Mas
ao fim de duas semanas pensam: quero ir para a esquerda. E vão para esquerda.
Depois de 15 dias deste treino paramos três semanas. A seguir as pessoas voltam
e fazem aquilo na mesma, sem problemas.
É como andar de bicicleta?
É, e era isso que queríamos. Ou seja, conseguimos aprender
uma coisa nova, o cérebro sabe fazê-lo. E nós sabemos como é que ele aprende.
Portanto, em vez de tentarmos imitá-lo, fazemos com que ele aprenda outro
instrumento, porque ele tem capacidade para usar mais instrumentação, para além
do próprio corpo.
Como lhe surgiu essa ideia?
Não sei. Fiz teatro amador, e pensei muito sobre a ação do
ponto de vista do ator. Sempre me interessou muito isto da ação e do movimento.
O que é que os estudos das neurociências lhe ensinaram
sobre a natureza humana?
Ensinaram-me muito. Por exemplo que a memória é uma coisa
relativa e que as pessoas têm naturalmente perceções diferentes. Isto ajudou-me
muito porque me fez olhar para a diversidade das pessoas e de comportamentos,
com menos julgamento sobre os outros. Nesse sentido, mudou muito a minha visão
dos outros.
E a nossa mente? Ela está no cérebro?
Acho que sim. A minha opinião é que está nos cérebros: no
nosso cérebro e no cérebro dos outros, e a comunicação entre cérebros cria
coisas maiores do que no cérebro de cada um. Por exemplo, aquilo que chamamos
inteligência coletiva.
Como se houvesse uma mente coletiva?
Sim, mas não é uma coisa etérea. É o cérebro construído,
mapeado no mundo. Hoje, por exemplo, guardamos muito da nossa memória em
computadores. Isso é parte da mente? Se estiver ali só guardado, não. Mas
aquilo em utilização é parte da minha mente. É o cérebro mapeado ao mundo.
O que é que isso quer dizer?
Há uma mente muito básica, mas o resto é o mapeamento que se
faz ao longo do desenvolvimento de cada um, na relação com o mundo e com os
outros, e que cria complexidades. O nosso cérebro não é biologicamente
diferente do cérebro do homem das cavernas. No entanto, cada um de nós aprende
a história da humanidade em capacidades e cultura. Cada geração aprende os
skills todos. Biologicamente a mente é a mesma, mas o conteúdo de cada
desenvolvimento individual é um sumário da história humana. O cérebro seria o
hardware onde se constrói a mente, e não se pode explicar a mente só com o
hardware. É preciso estudar a dinâmica de como o hardware se constrói
culturalmente e evolutivamente.
Haverá coisas nunca chegaremos a perceber sobre o
cérebro?
Se falarmos do hardware, acho que é possível conhecer tudo.
Mas se falarmos de tudo o que o cérebro faz, e nós não conhecemos os limites do
que ele pode fazer, é diferente. O cérebro que percebe muda e passa a haver o
cérebro que sabe que sabe. A partir do momento em que percebemos, há um novo
nível de mente. Será que conseguimos perceber o cérebro que sabe que sabe?
Essa seria a última fronteira do estudo do cérebro?
[Risos] Espero que sim, para termos que fazer, porque eu
gosto muito de estudar.
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