A máxima leopoldiana, “Algo é bom quando preserva o equilíbrio, a integridade e a beleza da comunidade biótica”, constitui, em simultâneo, o corolário normativo da exposição do autor e a sua tese nuclear, guiando a escrita do ensaio, Sand County Almanac, no propósito demonstrativo de que a diversidade e a integridade ecológicas são inseparáveis da beleza natural, e, nesse sentido, afirmam-se como princípios da acção correcta, estruturadores da relação do humano com a terra
Palavras-chave: Leopold, ética da terra, estética da terra, valor estético, valor ecológico
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Num ensaio crítico de 1966, o filósofo escocês Ronald Hepburn [2] apresenta as razões para o desprezo que a estética contemporânea dirige ao belo natural defendendo que tal desprezo é, ipsis verbis, algo muito mau.
Se, de facto, a partir do século XIX, a vulgarização da beleza “pitoresca” do mundo natural o deixou de fora de uma teoria estética inteiramente devotada à reflexão sobre a arte, assinala-se, porém, que, em paralelo a esta tendência blasé e urbana da Estética, o tema do belo natural não deixou de ser declinado em conjunção com o bem numa linha de pensamento cujas raízes mergulham na antiguidade e que, ainda no século XIX, informou o pensamento dos pioneiros ambientalistas abrindo caminho para a compreensão da estética natural no contexto da acção preservacionista. Thoreau, Emerson e Muir exploraram no novo Mundo não só a riqueza incorrupta das suas múltiplas formas geológicas vegetais e faunísticas, como também as modalidades do pensamento que associa o belo natural ao agir, desbravando a via que viria em meados do século XX a impor um novo contexto à reflexão ética e estética - a natureza.
Justamente neste contexto, a Estética Ambiental constitui um emergente campo reflexivo, recrudescente com a crise ecológica, que enfrenta, todavia, claras dificuldades em exprimir-se de forma coerente e eficaz na prática ambientalista. Com efeito, embora o belo natural se imponha em algumas abordagens de ética ambiental, nomeadamente na de Aldo Leopold, a argumentação que sustenta a acção de preservação de ecossistemas ou áreas naturais específicas, convoca, prioritariamente, os valores ecológicos (como o da biodiversidade, ou os da integridade e qualidade ecológicas), sendo, a maior parte das vezes, omissa em relação ao seu valor estético. Uma omissão que parece ignorar a história da acção ambientalista demonstrativa que a adesão, o sucesso e as decisões conservacionistas decorrem mais frequentemente pelo lado da estética natural do que pelo lado da ética, mais em função da beleza da natureza do que da obrigação moral dos agentes, como o filósofo ambiental Baird Callicott [3] testemunha:
“No que toca à conservação e gestão de recursos, a estética natural tem sido historicamente, na verdade, muito mais relevante do que a ética ambiental. grande parte das decisões conservacionistas foram motivadas mais pela estética do que pelos valores éticos, mais pela beleza do que pelo dever.” Callicott, 2008:107.
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Recuperando o traçado geral de uma tradição filosófica que, como constatou Hepburn, foi votada na contemporaneidade a um injustificado obscurecimento, a questão que se coloca é, então, a de averiguar que premissas concorrem para a consideração do belo natural como um argumento efectivo na prática ambientalista, a par com os valores ecológicos.
Com efeito, parece-nos intuitivo que uma floresta devastada e corroída por chuvas ácidas, imediatamente, choca pelo efeito anti-estético. A generalização hipotética deste estado de devastação a uma escala global, devolver-nos-ia, certamente, a imagem de um mundo onde não haveria beleza e de onde a vida se esvaeceria. Lembramos a propósito o título da influente obra de Rachel Carson publicada em 1963, Silent Spring. Para transmitir o dramático grau de destruição nos ecossistemas e na biodiversidade provocados pelo uso abusivo de pesticidas químicos, a autora convoca uma poderosa metáfora estética, porquanto com ela se evoca o silenciar do canto dos pássaros. No imaginário colectivo, as componentes estética e biológica são indistinguíveis e intrínsecas ao conceito de Primavera – a cor, os sons, os cheiros, o movimento, assinalam o renascimento da vida em toda a sua pujança. Uma Primavera silenciosa é, pois, uma Primavera sem vida; e, tal, soa como uma contradição nos termos. Com a autora, também presumimos que o grau desmedido da interferência humana no ritmo próprio da natureza contém uma ameaça que conjuga, em simultâneo, a perda de beleza e a perda de biodiversidade. Psicologica, afectiva e cognitivamente ambas as dimensões estão ligadas e a sua degradação suscita idêntica preocupação e temor. Talvez porque, verdadeiramente, a natureza não se possa reduzir à paisagem que se olha do miradouro como se contempla um quadro numa galeria. Talvez porque, de facto, o belo natural não seja o pitoresco, i. e., um corpo inerte com as cores de uma pintura. Talvez porque, isso sim, a beleza da natureza seja vida, pulsante, dinâmica, rítmica, em incessante processo evolutivo e criativo que, através da desordem, persegue a ordem e a harmonia.
Esta nossa convicção vem firmemente escorada no enquadramento teórico definido por Aldo Leopold que, em traços gerais, afirma a ética da terra como sendo também uma estética da terra.
Na linha de Thoreau e Muir, Aldo Leopold, um professor de recursos cinegéticos da Universidade de Wisconsin, escreve o livro Sand County Almanac[4], publicado em 1949, um ano após a sua morte, onde defende a conexão da estética e da ética no comum propósito de salvação da terra e do humano.
Quando Leopold declara que, “Algo é bom quando tende a preservar o equilíbrio, a integridade e a beleza da comunidade biótica” (Leopold, 2008:226), condensa diferentes planos axiológicos num mesmo horizonte significativo – se a beleza se impõe como presença no mundo, ela deve constituir-se, por isso, como fundamento de moralidade, um imperativo do agir. Trata-se de um imperativo com carácter de urgência, dado o grau de ameaça crescente introduzido por opções técnicas e politico-económicas irresponsáveis, que encaram a terra como um recurso e não como um bem em si mesmo:
“Quando vemos a terra como uma comunidade à qual pertencemos, podemos começar a usá-la com amor e respeito. Não há outro caminho para que a terra sobreviva ao impacto do homem mecanizado, e para que nós dela possamos retirar a colheita estética com que pode contribuir para a cultura ao abrigo da ciência (...) Estes ensaios procuram fundir esses três conceitos.” Leopold, 2008:22.
A apreciação estética da natureza é uma constante no Sand County Almanac, através de descrições de indisfarçável admiração perante aspectos naturais, nem sempre considerados belos pelo público que procura neles aguarelas ou pinturas a óleo e que encara a natureza como uma galeria de arte, mas que, na prosa de Leopold, ganham uma vividez e uma específica tonalidade estética sob a iluminação do conhecimento ecológico que lhes desvenda a narrativa e o significado.
Genericamente, a escrita dos ensaios é ritmada a dois tempos - num primeiro momento, a exaltação da beleza natural intocada é reveladora da presença tangível da estética natural, como fonte de gratificação e liberdade, para de imediato se lhe opor o agir irresponsável que, por insensibilidade e ignorância, se apresenta como um factor de desfiguração da harmonia emergente da inter-relação comunitária entre humanos, não humanos e elementos naturais. Sublinhamos ainda que as impressivas e cambiantes descrições da fauna e da flora ou de formações vegetais e geológicas que percorrem o livro do princípio ao fim, transmitem claramente a convicção do autor de que a literacia ecológica amplia significativamente a sensibilidade às realidades naturais e à beleza que nelas reside.
Leopold não se cansa em repetir que o agir insensato é fruto da ignorância ecológica, a causa primeira da insensibilidade que o homem “mecanizado” alardeia na sua relação “não amável” (unlovely) com a riqueza múltipla das configurações naturais e com o sentido profundo que cada uma delas carrega. Por isso, há que mudar o paradigma - de um estado de egocentrismo especista para um outro, superior e ecologicamente esclarecido, patamar de moralidade.
A transição anunciada por Leopold, pela qual o humano deve passar de conquistador a membro e cidadão da terra, surge na sua land ethic como condição primeira de um novo modelo de realidade e do homem, um novo desenho axiológico, ético e estético, implicando uma reconfiguração do universo mental antropocêntrico. A metáfora da comunidade, que o autor subtrai à Ecologia, representa de modo exemplar a ética da terra, pois a sua fertilidade semântica traduz, em essência, a nova visão do humano e do agir que capta o ser do mundo como diferenciação, afinidade, parentesco, entendendo a dinâmica própria desse ser no mundo como interdependência, forjada e entretecida nos vínculos que ligam todos a todos, e todos ao Todo. O reconhecimento dos elos que encadeiam os seres e os radicam num destino comum - a odisseia evolutiva terrestre – deve, segundo Leopold, potenciar o amor, o cuidado e a bio-empatia, sentimentos cuja expressão consciente mandata o dever de preservar o equilíbrio, a integridade e a beleza da comunidade biótica. A beleza do mundo e no mundo impõe-se, assim, ao homem e ao agir - o belo está aí diante de nós, surge no horizonte natural, irradiante, multiforme, omnipresente, propiciando a intensificação da afectividade e convidando ao bem. Daí que possamos afirmar que a ética da terra de Leopold emerge de uma estética da terra, porquanto, neste autor, a experiência da beleza da natureza é uma experiência duplamente significativa. Não só porque ela encerra uma narrativa ecológica que constitui o “chão” da nossa humanidade e, portanto, situa-nos no tempo e no espaço; mas também porque ela vem sempre em íntima articulação com o interesse moral. Leopold demonstra-o em múltiplas passagens do seu livro - a beleza natural conta sempre uma história evolutiva e apresenta-se sob a constante ameaça da cupidez humana, ecologicamente ignorante.
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Na actualidade, o grau alarmante de perda da biodiversidade e de alterações ambientais antropogénicas com óbvias implicações no equilíbrio e beleza dos ecossistemas, constituem razões justificadas para considerar a mensagem de Leopold. Atente-se a estas duas imagens:
A beleza deste recife de coral, um ecossistema fulgurante em biodiversidade, exprime inequivocamente a vida que o habita. As alterações climáticas de origem antropogénica estão, como sabemos, a provocar a sua morte. O efeito visível desse facto dá razão a Leopold quando encara a estética natural como história, como vida:
Este é um exemplo, entre muitos outros possíveis, que ilustra as relações abordadas neste artigo entre a estética natural e a biodiversidade; entre a estética e a ética ambientais; entre a beleza da natureza e a acção ambientalista.
Em suma, com Aldo Leopold, defendemos que é urgente compreender a beleza natural muito para além do seu significado paisagístico e pitoresco, como se se tratasse de um objecto artístico. E que é forçoso entendê-la como expressão criativa da Vida, como vida. Neste sentido, a experiência estética da natureza é uma experiência que convoca, necessariamente, a determinante ética. Evocando o bem - o equilíbrio e a integridade bio-ecológicas - , a beleza da natureza incita ao agir responsável e esclarecido.
Maria José Varandas
Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
FLUL
Lisbon, Portugal
Doutoramento e Mestrado em Filosofia, no ramo de especialização de Filosofia da Natureza e do Ambiente, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro do Centro de Filosofia da FLUL. Presidente da Sociedade de Ética Ambiental. Autora de várias publicações na área da ética ambiental (artigos e livros). Coordenadora da antologia Éticas e Políticas Ambientais com Cristina Beckert. Organizadora e co-organizadora de seminários sobre a temática ambiental. Conferencista em diversas instituições sobre ética e ambiente.
[1] Excerto adaptado do capítulo com o mesmo título in 2013, Para Uma Etica do Território, ed. J. Gorjão Jorge, FAUL, pp 45-51.
[2] Hepburn, Ronald. Versão portuguesa: 2011, “A estética contemporânea e o desprezo pela beleza natural”, trad. Tiago Carvalho, in Serrão, A. V. (coord.), Filosofia da Paisagem, uma Antologia, Lisboa: CFUL, pp 230-255.
[3] Callicott, Baird, 2008, “Leopold’s Land Aesthetic” in Carlson&Lintott (ed), Nature Aesthetics and Environmentalism, From Beauty to Duty, New York: Columbia Press University, pp.105-118.
[4] Versão portuguesa: Leopold, Aldo, 2008, Pensar Como Uma Montanha, trad. Edições Sempre-em-Pé, Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé.
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