segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

O fim da Nova Paz — Ensaio de Yuval Noah Harari


Ao longo da era da Nova Paz os políticos procuraram deixar a sua marca lançando reformas dos sistemas de Saúde, e não pilhando cidades estrangeiras. Líderes de todo o mundo — influenciados pelo receio de uma guerra nuclear, pelas mudanças na natureza da economia e pelas novas tendências culturais — juntaram forças para construir uma ordem global que funcionasse. Esta ordem global tem-se baseado nos ideais liberais e humanistas, nomeadamente em que todos os seres humanos merecem as mesmas liberdades fundamentais. 
Apesar de esta ordem global estar longe de ser perfeita, melhorou a vida de muita gente, não apenas em antigos pólos imperiais, como o Reino Unido ou os EUA, mas também em muitas outras partes do mundo, da Índia ao Brasil e da Polónia à China. Não foram apenas a Dinamarca e o Canadá a desviar recursos da compra de tanques para formação de professores — a Nigéria e a Indonésia fizeram a mesma coisa.
Qualquer pessoa que discurse acerca das falhas da ordem liberal global deveria antes responder a uma simples pergunta: consegue indicar uma década na qual a humanidade tenha estado em melhor condições do que nos anos 2010? Que década é a sua época dourada? Os anos 1910, com a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique, as leis de segregação racial nos Estados Unidos, e os impérios europeus a explorar brutalmente a maior parte de África e da Ásia? Talvez os anos 1810, com Napoleão no pico das suas campanhas sangrentas, os camponeses russos e chineses esmagados pelos seus senhores aristocratas, a Companhia das Índias Orientais a assegurar o controlo da Índia, e a escravidão ainda legal nos Estados Unidos, no Brasil e na maior parte do mundo? Talvez sonhe com os anos 1710, com a Guerra da Sucessão de Espanha, a Grande Guerra do Norte, as guerras de sucessão do Império Mongol, e um terço das crianças a morrer de má nutrição e doenças antes de atingirem a idade adulta?
A Nova Paz não foi o resultado de um qualquer milagre divino. Foi alcançada por seres humanos. Infelizmente, demasiadas pessoas tomaram este feito como um dado adquirido. Talvez achassem que a Nova Paz estava garantida e que poderia sobreviver até sem a ordem global. Consequentemente, essa ordem foi primeiro negligenciada, e depois atacada com uma ferocidade crescente.
O ataque iniciou-se através de Estados-pária como o Irão e líderes-pária como Putin, mas sozinhos não seriam suficientemente fortes para acabar com a Nova Paz. O que de facto minou a ordem global foi que tanto os países que mais beneficiaram com ela (incluindo a China, a Índia, o Brasil e a Polónia) como os países que iniciaram a sua construção (nomeadamente o Reino Unido e os EUA) lhe voltaram as costas. O voto pelo “Brexit” e a eleição de Donald Trump em 2016 simbolizaram esta viragem.
Os que desafiaram a ordem global não desejavam a guerra. Apenas queriam avançar naquilo que acreditavam ser os interesses do seu país, e argumentavam que cada Estado-nação devia defender a sua identidade e tradições sagradas. O que nunca chegavam a explicar é como todas essas diferentes nações iriam lidar umas com as outras na ausência de valores universais e instituições globais. Os oponentes da ordem global não ofereciam qualquer alternativa clara. Pareciam pensar que as várias nações iriam dar-se bem e que o mundo iria tornar-se uma rede de fortalezas muradas, mas amistosas . Mas as fortalezas raramente são amistosas. Cada fortaleza nacional quer um pouco mais de prosperidade para si própria, à custa dos seus vizinhos, e sem a ajuda de valores universais não conseguem chegar a acordo em relação a qualquer regra comum. O modelo de rede de fortalezas era um caminho para o desastre. E o desastre não demorou a surgir. A pandemia demonstrou que, na ausência de uma cooperação global eficaz, a humanidade não se consegue proteger de ameaças comuns, como os vírus. Então, talvez por ter observado como a covid-19 diminuiu ainda mais a solidariedade global, Putin concluiu que poderia levar a cabo o golpe de misericórdia, quebrando o maior dos tabus da era da Nova Paz. [Pensou] que se conquistasse a Ucrânia e a absorvesse na Rússia, alguns países poderiam mostrar-se espantados e indignados e condená-lo — mas que ninguém tomaria alguma acção efectiva contra si.
O argumento de que Putin foi empurrado para invadir a Ucrânia e assim antecipar-se a um ataque por parte do Ocidente é propaganda sem qualquer sentido. Alguma vaga ameaça ocidental não é uma razão legítima para destruir um país, pilhar as suas cidades, violar e torturar os seus cidadãos. Quem acredita que Putin não tinha alternativa deve dizer que país se estava a preparar para invadir a Rússia. O exército alemão estava a reunir forças para passar a fronteira? Napoleão levantou-se do túmulo para mais uma vez liderar a Grande Armée até Moscovo, e que Putin não tinha outra alternativa a não ser antecipar-se ao massacre iminente por parte dos franceses? Putin preparou a sua invasão ao longo de muito tempo. Nunca aceitou o desmantelamento do Império Russo, e nunca viu a Ucrânia, a Geórgia ou qualquer das repúblicas pós-soviéticas como nações independentes e legítimas. Enquanto — como referi antes — os gastos com as Forças Armadas eram, em média, de 6,5% dos orçamentos dos governos pelo mundo fora, e de 11% nos Estados Unidos, na Rússia têm sido muito mais elevados. Não sabemos exactamente quanto mais elevados, porque são um segredo de Estado. Mas algumas estimativas põem o número algures pelos 20% por cento, e poderá até chegar a mais de 30%.
Se a aposta de Putin for bem sucedida, o resultado poderá ser o colapso final da ordem global e da Nova Paz. Autocratas um pouco por todo o mundo irão perceber que guerras de conquista são de novo uma possibilidade, e as democracias também serão forçadas a militarizarem-se para se protegerem. Já vimos que a agressão da Rússia levou a um aumento imediato das verbas para a Defesa em países como a Alemanha, e a que países como a Suécia voltassem a impor o serviço militar obrigatório. O dinheiro que devia ser destinado a professores, enfermeiros e assistentes sociais irá para a compra de tanques, mísseis e ciberarmas. Aos 18 anos, jovens de todo o mundo irão cumprir o serviço militar obrigatório. O mundo inteiro irá ficar parecido com a Rússia — um país com um Exército desmesuradamente grande e hospitais com falta de pessoal. O resultado será uma nova era de guerra, pobreza e doença. Mas há uma alternativa: se Putin for parado e punido, a ordem global não será destruída por aquilo que ele fez, mas reforçada. Quem quer que tivesse ideias perceberia que simplesmente não pode fazer coisas destas.
Qual destes dois cenários irá concretizar-se? Felizmente para todos nós, e apesar de todos os seus preparativos militares, Putin estava imensamente mal preparado para uma coisa crucial: a coragem do povo ucraniano. Os ucranianos repeliram os russos numa série de espantosas vitórias perto de Kiev, Kharkiv (Carcóvia) e Kherson. Mas até agora Putin tem-se recusado a reconhecer o seu erro, e reage à derrota com crescente brutalidade. Ao ver que o seu Exército não consegue vencer os soldados ucranianos na frente de batalha, Putin está a tentar matar de frio os civis ucranianos nas suas casas. É impossível prever como vai acabar esta guerra, tal como o destino da Nova Paz.
A História nunca é determinista. Após o final da Segunda Guerra Mundial, muita gente acreditou que a paz era inevitável, e que iria manter-se, mesmo que negligenciássemos a ordem global. Após a Rússia ter invadido a Ucrânia, alguns viraram-se para o extremo oposto. Agora afirmam que a paz sempre foi uma ilusão, que a guerra é uma incontrolável força da Natureza, e que a única escolha que os seres humanos têm é ser a caça ou o caçador. Ambas as posições estão erradas. A guerra e a paz são decisões, não são inevitabilidades. As guerras são feitas por pessoas, não por uma lei da Natureza. E tal como os seres humanos fazem a guerra, também podem fazer a paz. Mas fazer a paz não é uma decisão isolada. É um esforço a longo prazo para proteger normas e valores universais, e para criar instituições de cooperação.
Reconstruir a ordem global não significa regressar ao sistema que se desintegrou nos anos 2010. Uma nova e melhor ordem global deveria atribuir papéis mais destacados a poderes não ocidentais que estejam dispostos a fazer parte dela. Também deverá reconhecer a importância das lealdades nacionais. A ordem global desintegrou-se principalmente devido ao assalto das forças populistas, que argumentam que as lealdades patrióticas são incompatíveis com a cooperação global. Os políticos populistas declaram que quem é patriota deve opor-se às instituições globais e à cooperação global. Mas não existe qualquer contradição intrínseca entre patriotismo e globalismo, porque patriotismo não significa odiar os estrangeiros. Patriotismo significa amar os nossos compatriotas. E no século XXI, se queremos proteger os nossos compatriotas da guerra, pandemias e colapso ecológico, a melhor forma de o fazer é cooperando com os estrangeiros.

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