segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Cidades-esponja. O que são e como podem ser resposta às cheias e secas em meio urbano

Parque Urbano da Várzea, Setúbal

Enquanto ainda se fazem contas ao prejuízo causado pelas duas vagas de cheias que afetaram várias zonas do país, com a Área Metropolitana de Lisboa à cabeça, há uma certeza de que ninguém duvida: o cenário de catástrofe provocado por fenómenos climáticos extremos vai repetir-se. E, apontam os especialistas, com uma intensidade e frequência cada vez maiores. Importa, por isso, alterar o comportamento reativo para uma atitude progressivamente mais preventiva. "Estamos num processo de perdas pós-enchentes, somos reativos. Há uma crise e reagimos, não fazemos planeamento", lamenta José Carlos Ferreira, doutorado em Ambiente e Sustentabilidade.

Ultrapassadas as dificuldades do momento, o professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-Nova) afirma que facilmente "nos esquecemos que estes fenómenos existem e que se estão a intensificar".

Responsável pela coordenação dos temas relacionados com a água na Associação Natureza Portugal (ANP/WWF), Ruben Rocha concorda com a ideia de que, ao nível da sociedade e dos decisores políticos, falta "capacidade de resposta a longo prazo", o que alimenta a continuação de um ciclo de eventos climáticos extremos, como os incêndios, a seca ou as chuvas intensas. "Falaremos novamente de seca quando começarmos a chegar a níveis muito baixos de água nas barragens", critica, enquanto pede uma mudança de paradigma no que à prevenção diz respeito.

Situações de inundações como as vividas nas últimas duas semanas "não são completamente novas", diz Pedro Nunes, que defende que "não podemos justificar tudo com base nas alterações climáticas". O ambientalista da Associação ZERO fala na necessidade de adotar uma visão holística dos desafios climáticos, que obrigam à implementação de políticas públicas desde o ordenamento do território à adaptação das infraestruturas urbanas para que se tornem mais resilientes.

Um dos fatores a considerar passa por incentivar uma ocupação mais equilibrada do país, revertendo os números anunciados pelo Censos 2021. De acordo com os dados definitivos divulgados em novembro, 20% da população portuguesa concentra-se em apenas 1,1% do território, sobretudo na zona litoral. "Isso acaba por ser um fator que contribui para que estas situações sejam mais graves, porque são, normalmente, zonas urbanas mais impermeabilizadas", justifica Pedro Nunes.

Os efeitos das alterações climáticas, que vêm agravar a intensidade e frequência de eventos extremos, não são facilmente reversíveis. Esses impactos podem ser mitigados através da descarbonização, mas os resultados só serão visíveis a longo prazo. "Mesmo que transformássemos a nossa vida de um dia para o outro, os efeitos continuariam cá. Mais do que mitigar, é preciso adaptar. Porque ou nos adaptamos ou sofremos", reforça João Carlos Ferreira.

O coordenador do mestrado em Urbanismo Sustentável e Ordenamento do Território da FCT-Nova acredita que a resposta está na alteração do modelo de desenvolvimento das cidades e na concretização de soluções que "transformem o território, ocupando-o de forma ecológica". Este caminho passa, sobretudo, pela alteração dos planos diretores municipais (PDM), para que evitem a construção em zonas de perigo, como em leito de cheias, mas também que integrem estratégias relacionadas com o conceito de cidade-esponja.

O termo foi cunhado pelo arquiteto paisagista e urbanista chinês Kongjian Yu e refere-se, essencialmente, a cidades ambientalmente adaptáveis que apostam em planos de gestão integrada da água. As soluções adotadas variam consoante a realidade hidrográfica das zonas urbanas e a sua configuração, mas podem incluir pavimentos permeáveis, jardins biodiversos e edifícios com coberturas verdes. É uma forma de "incorporar, de forma plena e holística, o ciclo da água no ordenamento dos espaços urbanos", explica Rafael Marques Santos.

O professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa detalha que o urbanismo sustentável permite "intervenções cirúrgicas" em áreas com "grandes erros estruturais", sempre com o objetivo de reduzir os impactos, por exemplo, em cheias. Umas são mais fáceis, outras mais complexas e dispendiosas, como demolições pontuais em zonas particularmente perigosas.

"Não vamos conseguir retirar toda a urbanização de Alcântara ou de Algés", aponta. Mas a criação de elementos de contenção é uma opção, desde logo com bacias de retenção nos pontos mais altos das cidades que "atrasem" a chegada da água, a grande velocidade, às partes baixas. O essencial, esclarece, é "olhar de forma muito atenta para a água numa perspetiva de todo o ciclo" e implementar medidas que cumpram dois objetivos de uma só vez - prevenir os riscos de momentos em que existe água em excesso, assim como atenuar situações de seca.

"Os edifícios podem ter espaços de cisterna para acumulação de água que podem ser úteis", afiança. Se em tempo de chuva intensa os edifícios conseguem guardar alguma dessa água e evitar que seja escoada para a rua, noutros momentos esse recurso pode ser usado para regas, lavagens e outros fins.

O mesmo poderá ser feito em estruturas municipais e há bons exemplos de como isso pode ser feito. Em Roterdão, nos Países Baixos, a Waterplein Benthemplein Waterplein Benthemplein é uma praça de betão usada durante todo o ano para atividades de lazer dos habitantes, mas é pensada para que em época de chuva intensa possa inundar e evitar a sobrecarga dos sistemas de escoamento da cidade.

Outra ferramenta complementar é a criação de jardins alagáveis, biodiversos e compostos por plantas com capacidade de absorção da água. Estes locais podem inundar e continuar a servir como espaço de recreio, bem como ajudar a refrescar as cidades durante o verão - exemplo disso são cidades como Taizhou, na China, ou Nova Iorque, nos EUA.

Em Setúbal, refere João Carlos Ferreira, o Parque Urbano da Várzea foi "muito eficaz nestas cheias", apesar de aquela cidade piscatória ter tido 30% mais chuva do que Lisboa. "Foi todo redesenhado para ser uma grande bacia de retenção e não inundar a Baixa de Setúbal. Esteve no limite, mas está a funcionar e a cumprir o seu propósito", atesta.

Ambientalistas, arquitetos e urbanistas concordam ser preciso agir, revendo os planos de ordenamento, criando estruturas verdes e multiusos nas cidades, mas, acima de tudo, implementando estratégias de longo prazo diversas e adaptadas à realidade de cada local. "Estes momentos de crise também servem para as adaptações necessárias", remata Rafael Marques Santos.

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