domingo, 20 de março de 2022

"O senhor Dona Alice" por Ana Primavesi


O senhor Dona Alice
"O túnel era escuro mas bastante cômodo. Era arrematado com uma massa viscosa que tornava as paredes duras e estáveis. De vez em quando forquilhava para dar acesso a uma gruta espaçosa, cujo chão e paredes eram revestidas caprichosamente com pedrinhas.

Aqui morava Dona Alice, uma minhoca da nobre tribo dos Enchytraideos. Tinha trazido as pedrinhas, uma por uma da superfície para arrematar seus quartos, onde descansava e dormia. Agora mesmo, estava repousando numa de suas salas lendo o noticiário das minhocas. Achou um absurdo que estavam importando minhocas da família das Eisenia para criação de rãs. Era uma família vagabunda, que vivia quase que exclusivamente de esterco de gado, crescia rápido e praticamente não cavava túneis e casas. Mas finalmente, recebia o que merecia. Era criada somente para ser jogada como comida à rãs que as devoravam.

Dona Alice sentiu um arrepio porque era um sistema bastante cruel. Outra notícia dizia que um professor da tribo dos Octaclátios virá para dar uma palestra sobre a melhor maneira de misturar a terra com húmus. Mas Dona Alice achou que não iria adiantar muito porque nesta região tropical, o húmus era raro, e o que se tinha para comer eram folhas frescas ou semi-decompostas. Leu ainda, que a maior população de minhocas vivia no Alto do Araguaia na Amazônia, onde se supunha que não existissem minhocas.

Fechou o jornal e foi à sua despensa para beliscar uma folha que estava sendo preparada pelas bactérias. Estava quase no ponto para ser comida. Passou por um de seus depósitos de lixo e olhou com curiosidade as bactérias e fungos, especialmente os actinomicetos que brigavam pelos restos. E de repente lhe veio a pergunta: será que são tão pobres que não têm coisa melhor para comer do que meu lixo, ou ela era tão fina que jogava tanta coisa boa fora?

Comeu uns fios de fungos sem pedir licença e seguiu seu caminho. Inspecionou os quartos onde iria depositar os casulos com seus ovos. Aqui estariam protegidos e os filhotes poderiam viver um bom tempinho dentro do casulo, consumindo o líquido nutritivo que tinha colocado com muito cuidado. Aqui, ninguém iria incomodá-los e poderiam sobreviver bem à primeira fase de sua vida. Depois viria a luta pela sobrevivência.

Hoje, não estava de bom humor. Tinha brigado com seu companheiro o Senhor Eisino, porque tinha dito para ele que nas próximas semanas ela seria o dono da casa. “Como?” perguntou ele, “Sem mais nem menos você quer que troquemos?” “Naturalmente,” disse Dona Alice, “A partir de hoje eu sou o Senhor Alicio e você é a Dona Eisina. Acho muito justo que troquemos. Por que somente eu devo fazer os ninhos e produzir os casulos, se você também pode?”

E quando uma raiz de Cambará entrou para perguntar se poderia usar seu túnel, em busca de água, lá em baixo, no lago subterrâneo, e ainda não sabia da troca chamando-a de Dona Alice, esta berrava irritada: “Nada de Dona Alice. Sou o Senhor Alicio! Está bem!” “Desculpe,” gaguejava a raiz, “Não sabia que tinham trocado novamente.” “É algo confuso seu status. Nunca sei se devo dizer Dona Alice ou Senhor Alicio.” A minhoca olhava desconfiada para a raiz, não sabendo se era gracejo ou se falava sério. Mas quando viu que era toda sincera, alisou suas cerdinhas que sempre eriçava quando estava brava, desenrolou seu corpo em todo seu tamanho para mostrar seu cinto novo e disse algo conciliador: “Diga simplesmente senhor Dona Alice, aí se evita confusão.”

A raiz riu baixinho, com cuidado para que o senhor Dona Alice não a visse nem ouvisse, e seguiu seu caminho em direção à água.

Eisino, agora Eisina, foi à superfície para pegar algumas folhas e ventilar sua raiva. Ontem ainda era o maridinho e hoje devia ser esposa. Mas depois consolou-se que a vida das minhocas era assim mesmo. Ia colher algumas folhas semi decompostas porque eram mais gostosas. E caso não encontrasse nada, arrastaria também uma plantinha nova para sua casa. Depois resolveu fazer outro túnel para não encontrar mais com Alicio naquele dia. Empurrava a terra com força.

“Nossa!"- gritou uma vespinha que estava prestes a depositar um ovo numa larvinha e que foi varrida por este terremoto, enquanto a larvinha aproveitava para fugir. “Que maneira grosseira, onde se viu empurrar a casa dos outros?” Eisina não disse nada mas andava igual a um caterpiller, derrubando tudo que estava em seu caminho. Mas depois a terra ficou dura e seca e resistia à sua cavação. Já se arrependia um pouco de sua teimosia, mas como verdadeira minhoca não desistia facilmente. Molhava a terra com água de sua reserva que sempre carregava junto e depois, sem maiores dificuldades, a engolia, porque não tinha onde depositá-la. Usava sua própria barriga como carreta. Depois, quando saída da terra despejava tudo na superfície, agora misturada com húmus e cálcio de sua glândula especial e formando pequenos cones. Tinha certeza que a chuva não iria destruí-las e a entrada de água estaria garantida. Sem umidade nem minhoca nem planta consegue viver.

A região onde estava era nova e ainda não existiam folhas semi decompostas. Assim mesmo, carregou algumas folhas para sua despensa, que ainda não estava revestida, e respingou um líquido por cima das folhas para atrair bactérias, que deveriam começar a digeri-las. Bactérias trabalham bastante rápido e logo iriam dar uma comida especial. Enquanto isso, comeu alguns fios de fungos e caçou algumas larvinhas de saltadores ou colêmbolos e até de nematoides.

Os nematoides velhos que estavam por perto olhavam-na com ódio. Mas nesse dia, Eisina estava nervosa e não suportou esta sem-vergonhice dos nematoides, esses verminhos brancos e sem forma alguma que pareciam simplesmente uns fios. Avançou contra eles e espirrou um jato de líquido por cima deles que os fez dissolver em forma de espuma. “Estes não vão me provocar mais” pensou satisfeito. Mas agora estava com fome e furtivamente, entrou no túnel comum dela e de Alicio e comeu com gosto uma folha preparada por bactérias. Uma raiz de grama-batatais entrou, virou-se e disse: “Como está gostoso aqui: fresquinho e úmido. Lá fora tem um calorão horrível.” E para agradar Eisina, deixou cair algumas radículas e disse ocasionalmente, mas suficientemente alto para ser ouvido: “Aqui debaixo do meu manto espesso nunca haverá calor e seca, e, comida nunca faltará.” “Enquanto não lhe queimarem.” Disse Eisina secamente.

Com tantas minhocas na terra, o pasto era bom, muito bom, até bom demais. Pelo menos o dono do pasto pensava assim. Aqui iria dar uma ótima lavoura de algodão. Fincou uma enxada para tirar uma mostra da terra, justamente onde estava Eisina, e a cortou ao meio. Um besouro que passava nesse instante, quase morreu de rir. “Dona Flor e seus “dois maridos!”gritou ele: “Esposas” observou Eisina triste.

Uma formiga que se encontrava por perto, olhou e perguntou: “Como se chamará a outra metade?” E logo apareceu uma centopeia que fez seus cálculos se dava para comer uma das partes, uma vez que a minhoca diminuiu de tamanho, e parecia exatamente adequada. Mas depois desistiu. Alguns saltadores que não tinham medo de nada, perguntaram: “Qual das duas partes é a Eisina?” A Eisina também não sabia. Como iria saber se cada parte iria dar uma minhoca inteira? Um ácaro sugeriu: “Chame uma parte de Eisina e outra de Aloisia, em homenagem a Alicio. Mas agora as duas partes se revoltaram. Isso lhes faltava. Homenagear outros com a própria desgraça. Mas afinal, nem sabia ao certo se era uma desgraça ou uma vantagem. O único que poderia sabê-lo, era a velha toupeira, o bicho mais sábio debaixo da terra, mas não queria perguntar, porque corria o risco de ser engolida na hora.

Atraído pelo barulho geral, apareceu Alicio. Olhou algo surpreso as duas partes de Eisina e disse laconicamente: “Eisina I e Eisina II, agora somos um casal a três.” Mas uma aranha que passava abanou a cabeça em desaprovação: “Embora isso seja moda entre os humanos em Brasília, não precisam imitar esta sem vergonhice!”

A entrada da enxada foi somente o início de uma série de catástrofes. Resolveram arar e gradear o campo e plantar algodão. E para não nascerem plantinhas nativas, que chamavam de invasoras, aplicaram herbicida. Das minhocas da terra revolvida, quase nenhuma escapou dos passarinhos. Alicio se refugiou a tempo para o fundo de seu túnel, arrastando consigo Eisina I e II. Mas veio ainda pior. Aplicaram liberalmente adubo e, o nitrogénio amoniacal é mortal para a maioria dos bichinhos da terra. A terra nua e desprotegida aqueceu muito sob os raios solares diretos. Os depósitos das minhocas se esvaziaram, e as folhas semi-decompostas terminaram. Não tinha mais comida. Mas a vista não lhe animou. Havia somente algodão, plantinhas novas que nem pensavam em jogar alguma folha. E, mesmo se as tivesse jogado, não teria ajudado, pois estavam impregnadas de veneno.

Eisina se levantou e se espichou, mas não podia ver nada, a não ser algodão. Não poderia migrar por cima desta terra seca e quente. E ir para longe, era impossível. Minhoca que se preze, não migra muito. Somente as da família dos lumbricus migram com gosto, mas também após uma chuva.

Quando finalmente choveu, Alísio tentou fugir com as duas Eisinas. Mas a plantação não tinha fim. Era grande demais. Cansados, desistiram. E agora?

Todas estavam famintas e fracas. Era melhor voltar à terra. Cavaram um pequeno túnel e deitaram. “Agora, quem iria fazer túneis para as raízes poderem buscar água? Quem iria proteger as entradas dos túneis, para a água poder entrar? Quem iria preparar a terra fofinha e rica em cálcio para as plantas? Quem iria matar os nematóides ou criar bactérias benéficas?” quis saber Eisina I. Alício deu um nó duplo no seu corpo e Eisina I e II fizeram o mesmo. Já quase anestesiada perguntou ainda: “E se essas adversidades não terminarem tão cedo?” O fim da frase foi um sussurro quase inaudível e depois elas caíram num sono profundo do qual nunca mais iriam acordar.

Os homens não se deram conta que as minhocas eram seus melhores amigos.
In: A Convenção dos Ventos - Agroecologia em Contos

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