O debate moral e político sobre a abolição da escravatura sempre foi entendido como tendo sido iniciado pelos europeus no século XVIII. Nos casos onde os africanos são reconhecidos como tendo qualquer papel em acabar com a escravidão, seus esforços são tipicamente imaginados como confinados a atos impulsivos de resistência, como revoltas em navio, plantações e casa grande, fugas, marronagem e assim por diante. O livro que estou produzindo no momento, Lourenço da Silva Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the 17th Century , interrompe essa versão da história através do questionamento ao comércio atlântico de escravos feito por um membro de uma família real angolana no século XVII.
Príncipe Lourenço da Silva Mendonça
O Príncipe Lourenço da Silva Mendonça, um membro do povo Mbundu, nasceu em Angola, provavelmente em Pedras de Pungo-e-Ndongo. O ano de seu nascimento é desconhecido, mas seu avô, o rei Hari ou Philipe I, governou Pedras de Pungo-e-Ndongo de 1626 a 1664, período em que serviu lealmente aos portugueses. Seu sucessor, o tio de Mendonça “Dom João”, no entanto, não desejando permanecer como um rei vassalo obrigado a pagar anualmente 100 escravos (um imposto conhecido como baculamento) à Coroa portuguesa, rompeu a aliança e declarou guerra aos portugueses. Portugal retaliou, e em 1671, após a guerra de Pungo-e-Ndongo, Mendonça e seus três irmãos e dez primos foram exilados para Salvador, Bahia/Brasil, pelo governador de Luanda, Francisco de Távora “Cajanda”. Mendonça morou em Salvador por dezoito meses, depois foi enviado para o Rio de Janeiro em 1673, onde viveu possivelmente por seis meses.
Contudo, as autoridades do governo da Bahia e do Rio tinham Mendonça como uma ameaça. Eles temiam que ele e seus primos pudessem fugir e se unissem à comunidade de escravizados fugitivos ‘Quilombo dos Palmares’, que foi uma das primeiras comunidades quilombolas no Brasil. Em agosto de 1673, Mendonça e seus três irmãos foram enviados a Portugal por ordem da Coroa Portuguesa. Mendonça foi enviado para o Convento de Vilar de Frades, em Braga, enquanto seus irmãos foram para diferentes mosteiros na mesma cidade. No Convento de Vilar de Frades, Mendonça estudou durante três ou quatro anos, antes de se mudar para Lisboa, onde, em 1681, foi nomeado Advogado da Irmandade Negra. Os detalhes exatos da vida de Mendonça durante a meia década subsequente não são claros. O que sabemos é que, enquanto em Portugal, ele desenvolveu rigorosamente um argumento moral, político e legal contra a escravidão, e depois viajou para a Corte Real de Madrid, em Toledo, Espanha, onde viveu dezoito meses, e foi apoiado por Dom Carlos II, rei de Espanha e pelo arcebispo de Toledo, Luis Manuel Fernández de Portocarrero e Guzmán.
De lá, ele viajou para o Vaticano para mover um processo penal contra nações envolvidas na escravidão do Atlântico (incluindo o Vaticano, Itália, Espanha e Portugal), em 6 de março de 1684, acusando-os de cometer um crime contra a humanidade. Antes de chegar ao Vaticano, ele conseguiu galvanizar o apoio das confrarias das Irmandades Negras de escravos e pessoas livres de ascendência africana no Brasil, Portugal e Espanha (onde ele havia viajado e vivido), além de diferentes organizações de Homens, Mulheres e Juventude. Essas organizações formaram grupos de pressão, enviando cartas ao Vaticano que exigiam que o Papa Inocêncio XI tomasse medidas para abolir a escravidão no Atlântico. Em outras palavras, Mendonça mobilizou um movimento ativista contra a escravidão ainda no século XVII, o qual alcançou maior solidariedade internacional até do que os movimentos antiescravistas dos séculos XVIII e XIX. Além disso, embora fosse um esforço global empreendido pelos próprios africanos negros, também foi um movimento inclusivo. O caso apresentado por Mendonça pedia a libertação não apenas dos negros africanos, mas também de outros grupos constituintes da escravidão no Atlântico, como os cristãos-novos e os povos indígenas das Américas. A reivindicação de Mendonça pela liberdade era universal.
Pensamento antiescravagista de Mendonça
No seu processo legal enviado ao Vaticano, Mendonça descreveu pessoas escravizadas no Brasil e noutros lugares como vivendo suspensas entre a violência e a miséria infligidas por seus senhores e a perda de esperança de existência humana expressa em suicídio, caso decidissem acabar com seu próprio sofrimento. Ele encapsulou sua condição na frase latina “mors certa est”, ou traduzida para o espanhol, “Morir Es Lo Mas Cierto”, ou seja, “A morte é certa”. Isto está inscrito no brasão da carta que o núncio vaticano em Portugal, Gasper de Mesquita, deu a Mendonça, e encapsula o seu processo contra a escravidão. É uma versão condensada do aforismo completo, que é “mors certa est, em eius hora incerta est”, ou “a morte é certa, sua hora não é”. Ao remover ‘hora incerta’ ou ‘sua hora não é’, Mendonça chamou a atenção para o erro fundamental da escravidão.
Da antiga mitologia e filosofia grega em diante, o conhecimento de que a morte é certa, mas não a sua hora, foi entendido como parte integrante da condição humana. Faz parte do que nos distingue dos Deuses (que são imortais) e também de outros animais (que não estão conscientes da sua própria mortalidade). Para os escravizados, no entanto, Mendonça argumentou, o “quod“, ou o quando, que não era mais um mistério. A “hora incerta” da morte de africanos escravizados, ameríndios nativos e também cristãos-novos sob inquisição em Portugal, havia sido removida, já que a morte era sua companheira diária. A cessação da vida não era, para eles, um futuro misterioso, mas uma característica constante do presente. Eles estavam morrendo a medida em que viviam. Assim, Mendonça omitiu intencionalmente a cláusula “hora incerta” para indicar que as pessoas escravizadas estavam sujeitas a uma violência e terror tão extremos e contínuos que viviam na mesma hora da morte. Eles eram, na verdade, mortos-vivos.
Ao remover a incerteza da hora de sua morte dessa maneira, sugere Mendonça, os escravos são removidos da categoria da humanidade. “Morir Es Lo Mas Cierto” era uma mensagem clara ao Papa de que a escravidão era um erro fundamental e universal contra a humanidade e incompatível com os preceitos do cristianismo. Vale a pena lembrar que um africano entregou essa mensagem cerca de cem anos antes de o movimento antiescravista europeu começar a ganhar ímpeto.
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