O poder tecnológico que possuímos devia ser exercido com responsabilidade e respeito para com os ecossistemas que nos rodeiam, que nos fornecem os serviços dos quais dependemos para comer, ter água para beber e ar respirável.
Maria Loução |
Desde 2020 que o relatório do Fórum Económico Mundial, dos riscos globais, lista a perda de biodiversidade e o colapso dos ecossistemas de entre as cinco ameaças principais desta década.
As sociedades e a economia dependem da biodiversidade e dos seus serviços, daí constituírem uma emergência planetária. Mais de metade do Produto Interno Bruto (PIB) total do mundo está moderada ou altamente dependente do que a natureza oferece com impactos na produção, cadeias de fornecimento e mercados. Isto devia suscitar preocupação. No entanto, assistimos a pressões internas e externas que nos levam a pensar de outra forma.
O aumento do PIB e o desenvolvimento das sociedades são avaliados através da produção, da eficiência em acumular dividendos, seguindo a máxima “tempo é dinheiro”. O desenvolvimento tecnológico é incentivado, alienando e diluindo as variações naturais ou “normais” que caracterizam os ecossistemas. Estas estratégias são contra as leis da natureza, onde o equilíbrio se alcança com evolução e adaptação; o que requer tempo, diferente da escala de tempo que nos norteia.
Hoje, mais do que nunca, importa perceber que não estamos sozinhos no planeta e o poder tecnológico que possuímos devia ser exercido com responsabilidade e respeito para com os ecossistemas que nos rodeiam, que nos fornecem os serviços dos quais dependemos para comer, ter água para beber e ar respirável.
O contexto socioeconómico
Há muito que os cientistas avisavam que a desflorestação, a perda e degradação de habitats, o uso e abuso de monoculturas intensivas, o comércio ilegal de espécies selvagens, o consumo de animais e o aumento da densidade populacional urbana facilitam as pandemias.
O aparecimento do vírus SARS, em 2003, foi um aviso. A crise económica de 2008 convidou à moderação nas medidas para estimular a economia, em vão. O vírus SARS-CoV-2 veio alterar completamente todas as medidas e projecções dos governos e famílias, expondo e exacerbando as fraquezas sociais: serviços de saúde, condições de vida, habitação, emprego, denunciaram profundas desigualdades.
Ficou também claro que as estratégias de “combate” tiveram diferentes benefícios consoante a sua proactividade: as acções iniciais foram exponencialmente benéficas, as tardias difíceis de debelar e as mais tardias poucos benefícios trouxeram.
O ritmo e o grau de mudança transformadora que esta pandemia trouxe foram mesmo surpreendentes. Uma crise desta dimensão foi capaz de desafiar a manutenção do statu quo de interesses económicos poderosos, porque o actual desenvolvimento socioeconómico está interligado e depende de cadeias de fornecimento globais. Medidas que pareciam impossíveis ontem passaram a ser hoje possíveis e inevitáveis no futuro próximo.
Esta pandemia trouxe também uma maior confiança na ciência e nos cientistas, não só em Portugal mas a nível mundial, como confirma o Welcome Global Monitor 2020. Na Europa, o Eurobarómetro indica Portugal como um dos países onde a população considera altamente positivo o impacto da ciência e da tecnologia na sociedade.
A resposta à pandemia veio trazer uma nova esperança e credibilidade, em particular às ciências da saúde. Mas isso remete para outros dois aspectos que têm ficado diluídos: (i) a resposta rápida da ciência foi devida a um conhecimento científico acumulado que permitiu criar uma vacina em tempo record; (ii) a causa desta pandemia deve-se sobretudo à incúria e desleixo como gerimos os nossos ecossistemas.
Apesar do reconhecimento do perigo da perda de diversidade e uniformização das paisagens, ainda há uma compreensão limitada da razão dessa importância para a economia. A sociedade, profundamente antropocêntrica, sente uma certa desresponsabilização sobre a perda de biodiversidade. Mantém também uma lógica egocêntrica, muito mais limitada e voltada para si e para os seus, esquecendo o colectivo, dando prioridade às espécies das quais o Homem mais depende, não só para alimento, como para companhia. A pandemia exacerbou esta necessidade de sobrevivência, de concentração individual.
Economia ecológica
Desde os seus primórdios, o Homem depende da natureza para sobreviver. A necessidade de alimento, abrigo, roupa, medicamentos têm assegurado esta forte ligação. Imperava o “Respeito pela Natureza” e as actividades agrícolas ou cinegéticas estavam adaptadas aos recursos disponíveis, para manter a capacidade de carga dos ecossistemas.
Com a revolução agrícola o Homem abandonou a simbiose com a natureza e acelerou a ganância e alienação. Perdemos de vista quão dependentes estamos do meio natural para a nossa existência. Nem sentimos a noção de risco, nem alcançamos até onde nos leva esta alienação e indiferença.
Encontramo-nos na era digital, onde tudo se passa e incentiva a ser realizado num ambiente virtual. O mundo pretende ser tecnológico, as empresas digitais imperam e crescem, a robótica veio para ficar, imitar e prever as reacções humanas, as redes sociais substituem as reuniões familiares. A produção alimentar também evoluiu para a criação de proteína em laboratório, substitutos de carne ou peixe, ou produção sem solo, de vegetais e algas. Nos campos, a Política Agrícola Comum (PAC) incentiva o aparecimento de empresas que privilegiam o regadio e a exploração de áreas extensas de uma só espécie de forma clonal.
A diversidade, quando acarinhada, fica apenas nas orlas a fim de manter alguns polinizadores que – já compreenderam – podem vir a desaparecer, com custos económicos e sociais difíceis de contabilizar.
Num ambiente urbano, industrializado e tecnológico, o conforto moderno permite-nos viver o mundo natural numa outra dimensão.
A economia estimula a sobrevivência e incita a noção de exploração da propriedade como um modo de vida. Se possui terreno é para explorar, limpar, e por isso planta-se não pela necessidade de manter ou criar um ecossistema biodiverso – não dá dinheiro e é utópico – mas para comer, comercializar ou produzir bens transaccionáveis.
A separação da natureza faz-se também na escola, em família, no colectivo empresarial. A criatividade virtual dá azo a este progressivo modo de vida fortemente urbano e pressionado pelos media a ser mais tecnocrata, como símbolo de modernidade. Os dispositivos electrónicos atraem os sentidos; o clima e ambiente é artificializado; o “verde” urbano assegura-se nos parques, nos passeios à custa de rega; a biodiversidade dos campos é apresentada e mediada, de forma “mais limpa”, através de jogos, filmes, documentários.
Poucas pessoas estão cientes do custo económico que esta mudança tem na nossa saúde, tanto a nível social como individual.
A necessidade de mudança da abordagem económica leva ao surgimento de novas estratégias políticas de desenvolvimento. As questões de saúde pública e a recuperação económica assim o exigem. Esta pandemia veio relembrar que a permanente rota de crescimento económico pode levar a humanidade ao colapso, não só pela alteração do clima mas também da diversidade, de que o Homem depende.
A crise ambiental, que estamos a sentir, espelha a necessidade do crescimento económico passar a incluir princípios ecológicos e convida à fusão entre os dois conceitos: economia e ecologia. A Economia procura gerir a casa do Homem; a Ecologia estuda a casa onde o Homem e todos os outros organismos vivem. A economia ecológica propõe medidas avaliando o impacto das actividades nas dimensões ambiental e social, para a sustentabilidade do todo.
Como aplicar as lições tiradas da pandemia e a necessidade de implementar uma economia ecológica, à melhor gestão e conservação da biodiversidade? São muitas e variadas as possíveis estratégias, mas ficam aqui alguns exemplos.
Estratégias de minimização dos riscos ambientais
1. Reconhecer a interligação entre os sistemas económicos e a natureza. Nas últimas décadas, em nome da dependência do turismo, a especulação e pressão imobiliária incentivam a venda de terrenos, ao arrepio de Planos Directores Municipais (PDM), que colocam em causa a degradação de áreas protegidas pelas directivas europeias, onde a biodiversidade devia ser conservada. Depois de degradadas, as áreas não serão mais atractivas. Porque não prever os danos a longo prazo?
2. Estabelecer a ligação entre desenvolvimento e conservação biológica. Portugal possui depósitos de lítio, matéria-prima essencial para a descarbonização da sociedade europeia. A exploração deste “petróleo branco”, que pode trazer um valor acrescentado à economia, pode ser lícita e oportuna.
O problema coloca-se quando a ambição torna a oportunidade em ameaça afectando, nomeadamente, a quantidade e qualidade de água disponível às populações, ecossistemas com estatuto de protecção. Mesmo com medidas de mitigação, o que pesa mais? O valor actual de um bem ou a perda irrefutável de um património natural destruído e irrecuperável?
3. Saber valorizar os serviços do ecossistema. O Homem dificilmente entende que os ecossistemas prestem serviços que são de todos e para todos, sem “trabalho”. Os mais óbvios são o fornecimento de bens alimentares, mercadorias, energia de biomassa, ou mesmo água. Mas outros, como polinização, controlo de pragas e doenças, regulação climática e amortecimento de catástrofes, retenção do solo, qualidade do ar, não são tão óbvios, porque são “normais”.
A sua valoração devia ser assegurada até para ressarcir proprietários de zonas “menos produtivas”, a gerir para conservar, sem necessidade de exploração ou venda. Isto requer modificações na avaliação económica e, consequentemente, nos cálculos do PIB.
4. A crise climática e a perda de diversidade estão interligadas. É urgente avaliar o tipo de actividades humanas que mais impacte causam nos ecossistemas. O sistema climático está directamente relacionado com a quantidade, distribuição e balanço da energia no planeta; a biodiversidade aumenta a resiliência às alterações abruptas ou graduais; a emissão de gases com efeito de estufa está directamente relacionada com a produção de alimentos; a alteração da paisagem tem vindo a ser justificada pelas mudanças sociais e económicas que impelem o retorno financeiro a curto prazo.
5. Caracterizar o impacto da implementação da “energia verde”. O investimento em energias renováveis origina oportunidades de negócio, ligado, por exemplo, ao agrivoltaico, projectos de energia fotovoltaica em solos de rendimento agrícola. O interesse dos proprietários e das empresas alia-se ao dos governos. Não há projecção – nem investimento em estudos para essa avaliação – de efeitos sobre a sustentabilidade ecológica, ao longo do tempo. Outro exemplo é a produção agrícola de biocombustíveis, isto é, produtos não alimentares, ou corte de árvores para queima.
A ironia é que não se pode queimar carbono (carvão, óleo ou gás) formado há mais de 300 milhões de anos, porque aumenta os gases com efeito de estufa. No entanto, o carbono produzido no século XXI é energia renovável.
A mudança na abordagem económica está em saber introduzir os custos de acções que entrem em conta com princípios ecológicos de respeito pela natureza. À semelhança do Acordo de Paris, assumir um Acordo Global para a Biodiversidade incentivaria as empresas a colocar a protecção e o restauro dos ecossistemas no seu core business, a fim de minimizar impactes ambientais.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
NOTA: Este ensaio foi escrito no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos. A autora assina o texto também na qualidade de Presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia.
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