Uma conversa sobre progressismo e extrativismo, na América Latina, com Sabrina Fernandes, doutora em Sociologia pela Carleton University (Canadá) e editora da Jacobin Brasil, Eduardo Gudynas, pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), Michael Löwy, diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e René Ramírez Gallegos, economista especializado em políticas públicas sociais, desigualdade, pobreza, que foi secretário de Educação, Ciência e Tecnologia do Equador, durante o governo de Rafael Correa.
A entrevista é de Thea Riofrancos, publicada originalmente por Jacobin América Latina e reproduzida por Observatorio de la crisis.
Eis a entrevista.
Governos progressistas, nas últimas décadas, fizeram alguns avanços importantes em termos de “políticas de soberania”: bancos, gastos públicos, política externa etc. No entanto, em questões socioambientais eles têm sido questionados sob vários ângulos. Talvez a questão mais espinhosa seja que tipo de soberania eles conseguiram —ou tentaram— promover com um modelo econômico centrado na extração e exportação de matérias-primas, ou seja, em uma base produtiva que, como foi apontado, leva mais ao aprofundamento da dependência do que à extensão da soberania. Qual é a sua leitura do tipo de desenvolvimento empreendido durante o chamado “ciclo progressista”?
Michael Löwy: A principal conquista dos governos progressistas girou em torno da redistribuição de renda, com medidas sociais em favor das camadas mais pobres da população. Aqui é preciso distinguir dois tipos de governos progressistas: os “social-liberais” (como Brasil e Uruguai), que desenvolveram uma importante política social, mas sem alterar o modelo neoliberal, e os anti-imperialistas (Venezuela e Bolívia), que enfrentaram a oligarquia e o imperialismo buscando alternativas soberanas. Em ambos os casos, porém, deparamo-nos com um modelo de desenvolvimento baseado na extração e exportação de matérias-primas, o que levou a uma nova forma de dependência do mercado internacional.
Além disso, o extrativismo é negativo sob outros pontos de vista: em primeiro lugar, é contraditório à soberania alimentar, que exige a produção de alimentos para o mercado interno e não produtos para exportação. Em segundo lugar, muitas vezes tem consequências ambientais extremamente negativas para as populações indígenas ou camponesas locais. E terceiro, no caso da extração de combustíveis fósseis – particularmente petróleo -, contribui para o catastrófico processo planetário de mudança climática.
Sem dúvida, os governos progressistas adotaram medidas sociais importantes em termos de redistribuição social. Mas eles não questionaram o modelo econômico capitalista de exportação. É verdade que é difícil para países como Equador, Venezuela ou Bolívia interromper a produção de petróleo ou gás de uma só vez. Mas há medidas intermediárias, como a proposta do Parque Nacional Yasuní promovida pelo governo de Rafael Correa no Equador (embora mais tarde o tenha abandonado): em uma região de florestas altamente biodiversas, deixar o petróleo no subsolo exigindo indenização dos países ricos.
Este projeto foi o símbolo de uma opção radical: preferir a natureza ao mercado, a vida ao lucro. Os países capitalistas industriais não se entusiasmaram com o projeto, não só porque não tem nada a ver com os “mecanismos de mercado” onde têm sua preferência, mas porque temiam o efeito estimulante dessa iniciativa: outros países poderiam apresentar propostas semelhantes.
Eduardo Gudynas: A avaliação das estratégias de desenvolvimento do progressismo está se mostrando não fácil. Dentro dos países são reivindicados, mas ao mesmo tempo são muitos os protagonistas desse ciclo que os atrapalham, seja por sua sincera convicção de ter feito a coisa certa, seja pela intenção de esconder erros. As recentes campanhas eleitorais, por exemplo, na Bolívia e no Equador, as condicionaram ainda mais, porque as energias estavam voltadas para conquistar novamente o governo. Mas a isso se sobrepõe uma rede de opiniões e analistas transnacionalizados, tanto de dentro quanto de fora da América Latina, que abusam de simplificações e slogans.
Por exemplo, você me diz que o progressismo alcançou “políticas de soberania” no setor bancário e noutros setores. Esses tipos de ditados são muito comuns, especialmente no Norte Global. Mas eles estão um pouco errados. Na realidade, sob o progressismo, o banco privado vivia num paraíso: a sua cobertura da população aumentava e a financeirização se diversificava. Isso aconteceu nos governos de Correa no Equador, Lula da Silva no Brasil ou da Frente Ampla no Uruguai, entre outros. Isso explica a bancarização obrigatória no Uruguai ou a expansão da financeirização para setores como consumo popular, educação ou saúde no Brasil.
Na realidade, os progressismos estavam cheios de claro-escuro. Tiveram avanços, estagnações e retrocessos dentro de cada setor. Devemos comemorar que reduziram a pobreza e a marginalidade, porque aliviou milhões de famílias; mas isso não quer dizer que não devamos deixar de reconhecer as limitações que tinham em sua acentuada dependência da ajuda monetária condicionada aos mais pobres ou do crédito para consumo popular. Devemos também parabenizar seus investimentos em infraestrutura, que por exemplo no Equador são evidentes em suas estradas e pontes. Mas, ao mesmo tempo, devemos entender que muito dinheiro foi perdido dentro dos labirintos do Estado, seja por meios legais, mas ineficientes, bem como por corrupção.
Essas contradições se deviam ao fato de que os progressismos —em termos gerais e muito esquemáticos— estavam orientados para uma variedade de capitalismo que buscava capturar uma proporção maior do excedente para tentar a redistribuição económica. Mas ele recorreu a práticas específicas que, como o extrativismo e o consumo de massa, exigiam sua subordinação ao capital. E isso aconteceu de várias formas: blindaram o setor financeiro, aprofundaram a exportação de matérias-primas, atraíram investimentos estrangeiros e aderiram plenamente a instituições globais (como a Organização Mundial do Comércio).
Tal operação se dava por meio de tênues balanças em que os Estados progressistas procuravam, por um lado, regular o capital e, por outro, tinham que ceder a ele. Esses equilíbrios eram instáveis, mas enquanto os preços das commodities eram altos, o excedente apropriado era capaz de sustentar as medidas de compensação e de amortecimento. Quando os preços das commodities caíram, tal coisa deixou de ser possível. E, pior ainda, isso ocorreu ao mesmo tempo em que se exauriu a capacidade de renovação política do progressismo.
René Ramírez Gallegos: A superação do modelo extrativista, e com ele da acumulação como tal, sempre foi o horizonte. Mas o fundamental é não perder a noção de temporalidade: primeiro, porque é um debate que não pode deixar de lado a subjetividade; segundo, porque há reformas do presente e reformas transitórias que apontam para uma mudança quantitativa (como a satisfação de necessidades) e para um salto qualitativo (como a transformação para uma sociedade do «bem viver»).
Nessa perspectiva, é preciso destacar que “outra acumulação” (que inclui a “não acumulação” como horizonte) implica e exige que haja muita acumulação hoje (obviamente, para fins ecossociais). Isso não é algo que uma certa esquerda gosta de ouvir. Mas vivemos dentro do capitalismo e, embora o horizonte seja superá-lo, devemos pensar na “grande transição” para essa “grande transformação estrutural”. Não pensar na ponte temporária é escrever ficção científica.
A opção de transformação social deve ser sustentável ao longo do tempo, pois acumular para benefício social em larga escala leva décadas, mas esbanjar acumulação em benefício de poucos é muito fácil (e assim foi visto ou é visto nos governos neoliberais de Bolsonaro, Macri ou Moreno). A opção que os governos progressistas tinham para essa acumulação eram os recursos naturais. E aqui devemos nos perguntar pelo menos duas coisas: a acumulação obtida com a exploração dos recursos naturais serviu para redistribuição de renda e democratização de direitos? Claramente sim.
Segundo a CEPAL, sob governos progressistas houve uma clara redução da pobreza, da desigualdade e da cobertura dos direitos sociais. Em segundo lugar, cabe perguntar se os recursos obtidos foram utilizados para uma mudança na matriz produtiva (o modo de produção). Do meu ponto de vista, não é suficiente. Em alguns países, a necessidade de tal transformação nem sequer foi discutida.
Independentemente da situação política, todas as economias latino-americanas continuam partilhando certas características centrais: os setores econômicos predominantes são baseados na extração de recursos, agricultura de monocultura e indústria de baixos salários; em termos de emprego, a região é marcada por um grande setor informal, bem como pela prática enraizada de precarização e terceirização, resultando numa classe trabalhadora que trabalha em extrema precariedade sem rede de proteção social; e em termos de inserção no sistema mundial, a região encontra-se em um lugar de dependência caracterizado por exportações de baixo valor agregado, plena integração aos mercados globais e altos níveis de dívida soberana. O que a pandemia e a crise económica revelaram sobre o modelo de acumulação na região? Que abordagem deve orientar a recuperação latino-americana e em que escala ela deve ser concebida e implementada?
Sabrina Fernandes: A pandemia revelou que as classes capitalistas do continente não têm vergonha em seu espírito de maximizar seus lucros quando a população mais pobre vive o risco diário de morrer, seja de fome ou de COVID. Com o aumento da informalidade do emprego e da pobreza, esperamos que as organizações de esquerda em todos os continentes percebam de uma vez por todas que o atual modelo de desenvolvimento nos mantém vulneráveis e que não é possível derrotar a direita sem políticas mais radicais.
Nossa história é uma história de golpes e intervenções imperialistas. A memória do atentado a Salvador Allende, por exemplo, vive como um aviso melancólico de que “não podemos pedir muito”. Esse é um caminho perigoso de aceitação do sistema capitalista. Mas então o que fazer? Primeiro, entenda que a burguesia se fortalece quando pode governar tanto com a direita quanto com a esquerda. O golpe contra o governo de Dilma Rousseff, nesse sentido, foi um golpe duplo: veio de fora (como sabemos, pela influência dos Estados Unidos), mas também de dentro, dos mesmos grupos aliados dos governos de Dilma e de Lula um pouco antes.
Por outro lado, é preciso nos convencer de que os governos de esquerda devem investir muito mais num projeto de mudança ecológica como força de criação de novos empregos, numa rede energética o máximo autónoma possível, bem como em caminhos para uma agricultura agroecológica reformada. Os investimentos devem ser públicos, estaduais ou comunitários: bem diferente dos acordos de fomento, que estimulavam projetos de 20 ou 30 anos de lucro para corporações que nem sequer garantem um bom serviço.
Para que a recuperação nada mais seja do que um novo pacote de estímulos econômicos no capitalismo, as organizações sindicais devem ser incluídas no processo de planejamento, assim como a comunidade de professores e pesquisadores deve opinar sobre mudanças importantes nos conteúdos das universidades e da direção de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. E esse investimento com dinheiro público deve incluir também as comunidades, pois elas estão mais aptas a saber se o problema local da fome é melhor resolvido com hortas comunitárias ou com mais comida na escola das crianças.
A crise atual se sobrepõe a várias crises que já estavam em andamento em 2019 e antes. Por sua vez, embora existam semelhanças, as diferenças entre os países também são muito importantes. O que acontece, por exemplo, no Brasil não é o mesmo que acontece no Chile, México ou Colômbia. Após esse alerta, pode-se dizer que diferentes graus de colapso, colapso ou miséria são observados na política e no papel dos governos. Em alguns casos, isso é extremo, como pode ser visto com a inação e o autoritarismo de Jair Bolsonaro no Brasil. Sem atingir esse nível, outras situações também são dramáticas. É o caso, por exemplo, do Peru, onde enquanto os contágios avançavam, a política partidária desmoronava.
Nesse desespero, os governos recorrem novamente ao extrativismo como forma de aliviar a crise econômica. Todos os países sul-americanos, sem exceção, tentam aumentar suas exportações de matérias-primas e ao mesmo tempo agregar novos setores (como a mineração de lítio ou a expansão das monoculturas transgênicas).
René Ramírez Gallegos: A pandemia de COVID-19 exigiu uma mudança radical nos sistemas agroindustriais de alimentos, única forma de reduzir ou eliminar a possibilidade de novas zoonoses. Isso foi alertado há muito tempo pelos movimentos ambientalistas. Da mesma forma, a importância do papel da mulher na reprodução da vida tem feito parte das lutas dos movimentos feministas. Mais ainda: todo o modelo de relação entre o ser humano e a natureza deve ser transformado, pois é o imperativo da acumulação que tem levado à depredação do meio ambiente e aos desequilíbrios ecológicos que permitem a atual pandemia.
Embora a região tenha que consolidar um estado de bem-estar social que coloque o público e o comum antes do privado ou do comercial, conseguir isso não leva à superação dos problemas colocados pela pandemia. Deixar de ser “periferia” e passar a fazer parte do “centro” não é a solução para os países da nossa região. A Europa, sendo o continente com os maiores níveis de bem-estar do mundo, não escapou dos impactos da pandemia. O objetivo deve ser construir alternativas ao desenvolvimento. Porque o desenvolvimento como o conhecemos nos leva a aprofundar a crise sanitária, e esse tipo de ameaça se tornará cada vez mais frequente no mundo.
Além do momento da recuperação, qual é o horizonte político da esquerda? Se entendermos a pandemia do COVID-19 como a primeira grande crise ecológica global, é hora de um paradigma que aborde mais explicitamente as questões entrelaçadas de extração de recursos, danos ecológicos e mudanças climáticas? Em outras palavras, é hora de passar do “socialismo do século 21” para a discussão do ecossocialismo, um novo pacto ecossocial, uma economia democrática verde ou alguma outra formulação? Como você define sua visão de uma alternativa radical ao modelo econômico predominante e como você acha que as conexões fundamentais entre a economia e a natureza poderiam ser articuladas?
Sabrina Fernandes: Vivemos um momento frágil para a esquerda revolucionária, e a direita continua avançando em nosso continente. Não podemos simplesmente esperar o momento da revolução, porque o risco de chegarmos tarde é grande. Um grande pacto ecossocial ou um green new deal, qualquer que seja o nome de um sério projeto de descarbonização enraizado na justiça social, deve fazer parte da construção do ecossocialismo na América Latina.
Mas um pacto não será suficiente, e os ecocapitalistas sabem disso e tentam sequestrar as discussões sobre investimento e as políticas em torno dele. Assim, a tarefa é impulsionar ,medidas de descarbonização focadas no setor público, juntamente com um projeto de autonomia energética e investimento tecnológico. Um novo ciclo progressivo pode ser capaz de fazê-lo. A esquerda mais radical deve partir dessa base para trabalhar a consciência da classe trabalhadora em direção a uma ruptura secular. E só o ecossocialismo apresenta a possibilidade de uma síntese entre os debates do pós-extrativismo, descarbonização, direito à cidade, bem viver, ecofeminismo, soberania e internacionalismo, antirracismo e decrescimento.
René Ramírez Gallegos: Os paradigmas não nascem de grandes think tanks, mas de lutas históricas, de processos democráticos, de resistências criativas. Mas são necessários quadros analíticos para acompanhar e fornecer ferramentas para essas grandes disputas civilizatórias. No Equador, em um movimento constituinte entre 2007 e 2008, surgiu do intelecto social coletivo o pacto social que se denominou “bem viver” ou Sumak Kawsay. Do meu ponto de vista, essa proposta vai além do chamado “socialismo do século XXI” e até do ecossocialismo: é uma proposta nascida de um amplo processo constituinte.
É uma proposta de mudança social epistêmica e é, voltando ao exposto, uma alternativa social ao desenvolvimento. Não veio de nenhuma cabeça, de nenhum think tank. Tem suas raízes em uma frente social antineoliberal que foi canalizada para um processo constituinte, que se nutriu dos saberes ancestrais dos povos indígenas, do feminismo, da economia social e solidária, do ambientalismo, das lutas estudantis, das classes médias, dos pobres, etc. Esse quadro analítico propõe que o conceito de “bem viver” deve ser lido a partir do que está consagrado no pacto de convivência assinado pelos equatorianos na Constituição de 2008. Algo semelhante aconteceu na Bolívia, enquanto se construía um processo constituinte com paradigmas alternativos.
As políticas públicas, é claro, não surgem no vácuo ou são concedidas livremente pelas elites políticas. Os Estados são condensações da luta de classes, e as políticas que decretam refletem o equilíbrio de poder predominante na sociedade em geral. Dadas suas respostas acima, como essa mudança de paradigma poderia ocorrer? Que atores coletivos, forças de classe e movimentos sociais estão preparados para atuar como protagonistas na próxima batalha pelo modelo de recuperação econômica e social, e além? Que alianças e blocos poderiam reunir diferentes grupos em uma força com potencial hegemônico, capaz de transformar o modelo de acumulação vigente?
René Ramírez Gallegos: Um problema grave nessas duas décadas do século XXI é que na América Latina tem havido um processo de desindustrialização com a transição para uma sociedade centrada no setor de serviços, muitas vezes deslocalizada (isso no quadro de uma sociedade heterogênea, informal, com alta níveis de subemprego). Isso torna muito mais complexa a lógica da ação coletiva em torno das lutas pelo trabalho decente.
Há algumas semanas, li um tuíte que, seguindo Chico Mendes, dizia: «ambientalismo sem luta de classes é jardinagem; o feminismo sem luta de classes é a guerra dos sexos; anticolonialismo sem luta de classes é (potencial) fascismo». É claro que a lógica também deve ser lida de trás para frente; ou seja, não se deve pensar em luta social sem luta feminista, ambientalista ou pós-colonial, nem ambientalismo sem luta feminista etc. O que é preciso é a convergência de todas essas lutas sociais. A forma que a convergência assume depende de cada contexto: na Argentina, por exemplo, é liderada por trabalhadores e mulheres; no Equador, agora, pelo movimento indígena. E esses setores terão que se articular com os movimentos políticos que disputam eleitoralmente o Estado.
Michael Löwy: Atualmente, acho que as forças mais ativas na luta por uma mudança de paradigma na América Latina são os jovens, as mulheres, os camponeses e as comunidades indígenas. Movimentos como a Via Campesina têm um papel muito importante, pois procuram associar a luta camponesa pela terra com uma perspectiva ecológica. E as comunidades indígenas estão na linha de frente da luta contra o extrativismo, em defesa das florestas e dos rios. “Água sim, ouro não!” é a palavra de ordem dos camponeses e indígenas do Peru contra a mineração de ouro que envenena os rios. Muitas vezes as mulheres são as mais ativas nessas mobilizações, mesmo à custa de suas próprias vidas, como Berta Cáceres em Honduras.
No entanto, não conseguiremos criar uma força hegemônica capaz de romper com o modelo dominante sem o apoio da classe trabalhadora, do proletariado rural e urbano. Também precisamos incluir intelectuais, artistas, cristãos da libertação e a massa do “pobretariado”, os excluídos do sistema. A tarefa fundamental da esquerda socialista é organizar esse bloco de classes e camadas sociais. E fazendo isso de baixo: nos bairros, nas fábricas, nas escolas, no campo, nas florestas. A partir de demandas concretas e imediatas, como não pagar a dívida externa, reforma agrária, etc., mas tentar impulsionar, no mesmo movimento, uma dinâmica antissistêmica, anticapitalista.
Por fim, diante da possibilidade de um novo superciclo de commodities e com o retorno de vários governos progressistas, que conselho você daria aos governos de esquerda ou centro-esquerda —atuais e futuros— na região? Como devem se orientar em um contexto de crise multidimensional, em que outro boom de commodities pode trazer maior pressão para expandir a fronteira agrícola e extrativista? Como suas economias nacionais poderiam mudar para a transição para energia renovável, maior proteção social, agricultura regenerativa e outras alternativas econômicas ao extrativismo? Essa transição poderia ser financiada? É possível traçar um caminho nessa direção sem a coordenação dos governos do Sul Global para acabar com o regime de dívida e austeridade imposto pelas instituições financeiras?
Sabrina Fernandes: Se não há socialismo em um único país, também não pode haver ecossocialismo, pois reconhece que para a natureza não há fronteiras. Por outro lado, é perigoso para o progressismo ver um novo superciclo de mercadorias como uma janela de possibilidade para mais investimentos nos setores extrativistas, em colaboração com os grandes capitalistas.
Nunca devemos abandonar a luta pela distribuição justa da propriedade da terra e dos direitos originários e tradicionais aos territórios. Os governos de esquerda devem começar corrigindo a enorme desigualdade no acesso à terra se quiserem realmente evitar que o superciclo resulte em maior concentração de riqueza e ativos. E isso também está relacionado à discussão sobre o mercado financeiro e o papel que ele desempenha na garantia de lucros com commodities, quando diferenças de preços e barreiras de concorrência colocam em risco o trabalhador rural.
Mas há outra coisa que precisamos discutir: por que a transição para energia renovável é tão importante. Toda produção de energia em larga escala tem impactos ambientais e sociais. Nossa tarefa é minimizar os impactos atendendo às demandas das comunidades ameaçadas. Não é possível pensar – como algumas das grandes potências econômicas acreditam hoje – que se trata apenas de crescimento e desenvolvimento econômico, mas agora com energias renováveis. Dessa forma, os impactos que o sistema industrial extrativista tem são esquecidos, mesmo quando se trata de investimentos em tecnologia verde.
Para alguns desses governos, a busca por lítio e outros minerais já é vista como uma nova oportunidade de crescimento. Na Bolívia, Luis Arce disse desde sua campanha que aspira fazer do país uma grande energia solar com seu próprio lítio. Declarações como essas não levam em conta os limites do lítio boliviano, as exigências de proteção ambiental na área e o grande desafio da transferência de tecnologia. Explorar o lítio e exportá-lo sem acesso direto à tecnologia não resulta no desenvolvimento verde da Bolívia, mas de outros, seja da União Europeia ou da China.
Michael Löwy: Não existe “receita milagrosa” para sair dos impasses da crise atual. Mas uma coisa é certa: os governos progressistas não tomarão o caminho de uma mudança de paradigma se não houver pressão social e política “de baixo” que os leve a fazê-lo. É por isso que a tarefa prioritária dos ecossocialistas passa pela organização do movimento, pela aliança de classes e grupos sociais interessados em uma mudança radical.
Mas para isso não podemos sentar e esperar que todos os governos do Sul Global se juntem. Com mais um ou dois governos avançados, que servem de exemplo e estimulam outras experiências, já teremos dado um grande passo em direção ao objetivo final: uma agenda latino-americana para uma mudança de paradigma, capaz de criar uma relação de forças no continente nível.
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