Em Portugal, precisamos de assumir a salvaguarda de espaços onde a preservação da natureza seja não apenas a principal prioridade, mas o único objectivo, afirma Miguel Dantas da Gama.
Das serras que compõem o Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), há muito que desapareceram animais selvagens que hoje apenas sobrevivem em cotas mais elevadas de espaços a maiores latitudes.
Espécies como a perdiz-nival (Lagopus mutus) terão ocorrido há tanto tempo, que agora apenas podemos admitir como provável a sua anterior presença. O progressivo afastamento de épocas mais frias como a última glaciação terá sido a causa principal, mas o assentamento humano nestas serranias foi criando cercos crescentes a populações que acabaram por sucumbir.
O galo-montês (Tetrao urogallus), o urso-pardo (Ursus arctos), a charela (Perdix perdix) e a cabra-montês (Capra pyrenaica) foram perdas mais recentes. Relativamente a esta última, a admissão de que terão existido na Península Ibérica quatro subespécies (a «nossa», a C. pyrenaica lusitanica, no noroeste peninsular, foi uma delas) é a prova da fragmentação da população ibérica. Em núcleos progressivamente isolados, terão adquirido algumas características diferenciadoras.
Se o aquecimento global natural ditou a perda de habitat para muitas espécies, levando-as à extinção de uma forma irreversível, a progressiva investida humana acelerou o processo. A desflorestação é a intervenção com maior impacto, mas a caça também. Outras «práticas tradicionais» como as queimadas, durante demasiado tempo entendidas como positivas, mais não foram que processos de controlo dos danos causados pelo homem, acções de consequências agravadas nestes tempos em que picos de calor irrompem bem no seio das estações mais invernosas. Hoje em dia vemo-nos confrontados com os efeitos acumulados de séculos de intervenção humana sobre o meio.
A lista da fauna selvagem que se foi perdendo, no Parque Nacional e noutras serras de Portugal, foi crescendo, mas a Peneda-Gerês continuou a ser um território extremo – o último, ou o principal reduto em solo português, para espécies que só sobrevivem em habitats de montanha mais exigentes. Numa progressão pelo território europeu, de norte para sul e uma vez transposta a cordilheira pirenaica, é neste extremo sudoeste do continente europeu que se encontram as últimas serras do noroeste peninsular, que por se situarem muito perto da costa oeste enfrentam a forte influência do Oceano Atlântico. Ferreirinha-alpina (Prunella collaris).
Este facto é particularmente notório no reino das aves. Se a ocorrência do pardal-alpino (Montifringilla nivalis) ou da trepadeira-dos-muros (Tichodroma muraria) se tornou extremamente rara, ocasional ou de passagem, ainda hoje apontamos os extremos planálticos do norte da Peneda-Gerês como um dos limites das áreas de nidificação, ibéricas e europeias, de escrevedeiras-amarelas (Emberiza citrinella), picanços-de-dorso-ruivo (Lanius collurio), cartaxos-nortenhos (Saxicola rubetra), narcejas-comuns (Gallinago gallinago) e tartaranhões-azulados (Circus cyaneus), entre outras espécies.
O agravamento das alterações climáticas poderá ditar mais perdas irreparáveis, uma deslocação para latitudes superiores destes limites, acelerada pelo estado de grande debilidade em que se encontra o coberto vegetal de vastas áreas do interior do território do PNPG – conforme já evidenciado na crónica anterior, Peneda-Gerês, a realidade que supera o mito. Acções que tenham em vista a sua mitigação são por isso inadiáveis para evitar males maiores.
Para grandes vertebrados, a amplitude altitudinal na Peneda-Gerês não é significativa ao ponto de se poderem sugerir migrações. Mesmo assim, é possível verificar movimentações pontuais, empreendidas para contornar este empobrecimento da vegetação nativa. As cabras-monteses que regressaram ao Parque Nacional há duas décadas utilizam certas corgas, às vezes com uma frequência diária, para acederem a bosquetes a baixas altitudes onde encontram o alimento que escasseia na penedia próxima dos cumes, o seu habitat de excelência. Fazem-no ao longo de todo o ano e não apenas nos meses mais invernais como seria de esperar.
Mas para pequenos animais, que vivem a quinhentos ou seiscentos metros de altitude, a possibilidade de poderem subir até perto dos mil e quinhentos metros pode ser a via para escaparem a esta mudança ditada pelas condições climáticas. Porém a severa desflorestação a maiores altitudes contraria uma fuga migratória destes pequenos animais, a subida da designada «escada da extinção», deslocações que as espécies selvagens estão a empreender em várias regiões do planeta na busca de espaços alternativos que lhes assegurem o habitat de que dependem. Importa salientar que quando se refere a desflorestação, o desaparecimento dos carvalhais de altitude, dos vidoais, das teixeiras (bosques de teixos), não se alerta apenas para a perda do arvoredo, mas também para os vários andares de vegetação deles dependentes (arbustivo, herbáceo…).
Se a avaliação da evolução de populações dos animais de maior porte é mais fácil, o que estará a passar-se com os mais pequenos? O que estará ou poderá acontecer a répteis e anfíbios, a víboras, tritões e salamandras, animais que se sabe serem os mais expostos às alterações bruscas, intempestivas e imprevisíveis do clima? E no grande e importante mundo dos invertebrados, nomeadamente dos artrópodes como aracnídeos e insectos, onde se contam as libélulas e as borboletas que tanto valorizam a Peneda-Gerês?
Lutar para que o Parque Nacional continue a ser um território extremo, parcela integrante das áreas de ocorrência de espécies animais e vegetais de montanha que se tornaram raras, passa obrigatoriamente por restaurar os seus bosques nativos, o que requer ordenamento do território no que ao pastoreio diz respeito. Perante a actual situação, a única forma de o garantir, insisto, é criar vedações temporárias para protecção, recuperação e expansão das manchas boscosas existentes. Mas de uma forma ambiciosa – não com um carácter de projecto piloto – devidamente concertada com os proprietários de gado, que, de novo insisto, devem ser apenas os que residem no território do Parque Nacional.
Parcelas nucleares como são as Áreas de Proteção Total, insisto também, mais uma vez, têm que ficar livres de qualquer tipo de exploração humana. Em Portugal, de uma vez por todas, temos de assumir a salvaguarda de espaços onde a preservação da natureza não seja apenas a principal prioridade, mas sim o objectivo único.
Fonte: Uniplanet, 02.02.2021
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