Diante do enfrentamento de uma crise sanitária, humana e ecológica, o biólogo Humberto Maturana adverte que se não nos encontrarmos no mútuo respeito e colaboração, não iremos gerar mudança alguma orientada para o bem-estar da humanidade. “Sem a pandemia ou com ela, iremos direto à nossa extinção”, adverte.
A reportagem é de Paulina Sepúlveda, publicada por La Tercera, 30-04-2020. A tradução é do Cepat.
Hoje, a vida pode ser definida como uma antes e uma depois da Covid-19. A primeira, a conhecemos, é o mundo sem pandemia. Um mundo sem o medo do contágio de um vírus incompreensível. Um mundo sem quarentena e sem urgentes expectativas do anúncio de uma vacina. Uma vida de certa calma, quando se olha sob a ótica atual.
E o futuro? Ainda não há clareza, mas em muitos aspectos não será o mesmo, explica a partir da compreensão biológica-cultural, Humberto Maturana, destacado biólogo e Prêmio Natural de Ciências Naturais de 1994, que junto com sua colega Ximena Dávila, no ano 2000, fundaram Matríztica.
Isso foi há 20 anos. E há mais de 20 anos, ressalta Maturana, refletem sobre o vivo e o humano.
O vivo e o humano que hoje enfrentam uma prova. Uma crise sanitária-humana e ecológica, em que o caminho para recuperar a convivência democrática é o que “nos parece fundamental para sair dela”, explica Dávila.
Todos e em todo o mundo enfrentam uma ameaça externa compartilhada. A Covid-19 pode ter a singularidade de que socialmente seja imprescindível nos reagrupar, ajudar e cooperar. O Sars-Cov-2 – vírus que produz a Covid-19 – é um chamado à consciência. Um lembrete de que nós, seres humanos, só somos em relação a outros seres humanos, “e este é um momento histórico e uma grande oportunidade para nos tornar autoconscientes”, comenta Dávila.
Somos uma unidade biológica-cultural como humanidade, destaca Maturana, e só poderemos sair da crise que vivemos “deixando de competir para colaborar, corrigindo nossos erros no respeito mútuo, atuando em um projeto comum”.
Ciência e vulnerabilidade
A pandemia de coronavírus está evidenciando fragilidades da sociedade de mercado e o hiperindividualismo. E a ciência, nesse sentido, é vista com outros olhos. “Na medida em que se entende que a ciência é um aspecto da compreensão do que ocorre em nosso viver cotidiano”, afirma Maturana.
Mas, não é que a ciência tenha se tornado mais relevante. Ambos concordam em que as atenções das pessoas e dos países estão voltadas à pesquisa científica, porque é a que pode encontrar um caminho que acabe com esta pandemia por meio de uma vacina que nos proteja do vírus.
Ambos ressaltam que o que está sendo feito para evitar a propagação do vírus, e em primeiro termo conter seu avanço, é o adequado. Se não se tem remédio ou anticorpos, a forma de deter o curso de uma epidemia é deter os contágios, “que, sim, precisamos saber como se propaga e é isso que está sendo feito nesse momento”, aponta Maturana.
Mas o mundo era muito mais vulnerável do que se acreditava. Bastou um ínfimo vírus. Um que avançou com tal letalidade que fez com que os relatos, que em algum momento líamos sobre a peste negra de séculos atrás, nos parecessem cotidianos. A crise que vivemos nos faz repensar a partir da dor que bateu em nossa porta, disse Dávila, “nos torna conscientes sobre nossa relação conosco e com o mundo”.
Depois que foram iniciadas as medidas para restringir o avanço do vírus e evitar um colapso do sistema sanitário, falou-se do isolamento social. Mas o isolamento da quarentena, o uso de máscaras ou a manutenção de uma certa distância nos encontros, disse Maturana, não são medidas de isolamento social, muito pelo contrário, “são atos sociais que se escolhem nesse momento, porque são as únicas medidas que podemos adotar para deter o contágio, quando não temos uma vacina ou um medicamento para isso”.
Hoje, o sentido de cooperação e colaboração social é precisamente nos manter em isolamento e só sair se necessário. Paradoxalmente, a cooperação e colaboração social não passam por estar em grupos. Hoje, vive-se a colaboração social “respeitando as medidas de isolamento que sabemos que são os únicos meios de que dispomos para deter os contágios”, aponta Maturana.
Por isso, o impacto social desta pandemia dependerá em grande medida de se estamos dispostos ou não a colaborar. Se agora não estamos dispostos a colaborar na detenção dos contágios, o efeito será desastroso. “Conforme ouvimos do mundo da medicina, todos e todas em algum momento seremos infectados pelo vírus da Covid-19, caso não pratiquemos os procedimentos de isolamento necessários para evitá-lo totalmente ou para o tornar mais lento, de modo que tenhamos tempo para produzir uma vacina que nos proteja. O isolamento social para o qual somos convidados é físico, não da alma, é um ato de autocuidado e de amor”, acrescenta Dávila.
E embora seja um aspecto biológico, um vírus, o que confina o mundo não é um chamado da natureza para a humanidade reagir, mas, ao contrário, o entendimento, disse Dávila, de que não importa para o mundo natural, em sua atuação espontânea, o que nós, seres humanos, fazemos.
O mesmo acontece com a mudança climática, a escassez de água e a ameaça dos vírus. “O mundo natural não se importa com nada do que pode nos acontecer sem a água ou com o vírus, também em nada se importa se este encontrou ou não com um hóspede oportuno para a sua reprodução. É a nós, seres humanos, que refletimos, conversamos, tomamos decisões, que deve importar qual mundo geramos em nosso conviver”, acrescenta.
Maturana é enfático em apontar que se não nos escutarmos e não nos encontrarmos no mútuo respeito, na honestidade e na colaboração, que é a convivência democrática, “não geraremos mudança alguma orientada para o bem-estar da humanidade, sem pandemia viral ou com ela, iremos direto à nossa extinção”.
Se não estivermos dispostos a reconhecer que temos os conhecimentos necessários para atuar de maneira adequada frente a essas distorções ecológicas, geradas pelo modo de viver humano, isto nos levará a um desastre social. “Se não escolhermos atuar de acordo com os conhecimentos que temos, quer dizer que somos tontos ou malévolos”, aponta Maturana.
“Nós, os seres humanos, somos os únicos seres vivos que podemos atuar de maneira consciente para evitar o desastre sobre a biosfera que essas distorções ecológicas trarão no futuro de nosso conviver social biológico-cultural. O primeiro e último remédio é nos encontrar no amor, em nos deixar aparecer, no conviver democrático que nos permite conversar e refletir, escolhendo entre todos os seres humanos, ou seja, entre todas as pessoas, as tarefas que conservam a harmonia e o bem-estar entre nós e com a biosfera”, aponta Maturana.
Fonte: aqui
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