domingo, 7 de maio de 2023

Rewilding – Renaturalização da Natureza, mas sem fundamentalismos!

Desde 2021 e até 2030 estamos na Década das Nações Unidas para o Restauro dos Ecossistemas; por causa disso, ou por isso, têm surgido por todo o mundo organizações e iniciativas que se reclamam do “rewilding”.

Mesmo em Portugal – onde a palavra “renaturalizar” existe há muito - surgem movimentos que adotam a designação de língua inglesa, rewilding, em lugar de usarem a nossa língua, vá-se lá saber porquê!

O termo foi usado inicialmente, em 1990, e consagrado pelos biólogos americanos Michael Soulé (1936-2020) e Reed Noss (1952) num artigo publicado em 1998 (1)

No geral, rewilding é definido como “... esforços de conservação destinados a restaurar e proteger processos naturais e áreas selvagens. Rewilding é uma forma de restauração ecológica com ênfase na recuperação do conjunto geograficamente específico de interações e funções ecológicas que teriam mantido a dinâmica do ecossistema antes das influências humanas. Isso pode exigir intervenção humana ativa para ser alcançado. As abordagens podem incluir a remoção de artefatos humanos, como represas ou pontes, conectando áreas selvagens e protegendo ou reintroduzindo predadores de ponta e espécies-chave.” (2)

O conceito de restauro ecológico é antigo, e o rewilding pouco lhe acrescenta. O busílis está no conceito de “espécie-chave”, termo cunhado em 1969 pelo zoólogo americano Robert Trent Paine (1933-2016); o que são? Resumindo, trata-se de espécies fundamentais para o funcionamento de um ecossistema e não, necessariamente, espécies emblemáticas ou vedetas, estas também designadas por “espécie-bandeira”, que são usadas para protagonizar uma causa ambiental.

Define-se espécie-chave como “uma espécie cujo impacto na sua comunidade ou ecossistema é desproporcionalmente grande relativamente à sua abundância relativa. O desaparecimento de uma espécie-chave do seu ecossistema pode ter consequências dramáticas neste último. Uma espécie-chave é aquela que desempenha um papel crítico na manutenção da estrutura de uma comunidade ecológica e cujo impacto é maior do que seria esperado com base na sua abundância relativa ou biomassa total. [...] Espécie-chave difere de espécie dominante, pois seus efeitos são maiores do que o previsto em relação a sua abundância.” (3)

Segundo Pedro Prata, líder da Equipa Rewilding Portugal, em declarações à imprensa em 03/03/2022, “... se uma paisagem está degradada, e faltam espécies-chave ou estão presentes espécies invasoras, poderá ser preciso intervir para remover essas espécies invasoras e promover o retorno da vida selvagem nativa. Tendo isso feito, devemos deixar que as coisas sigam o seu rumo natural, com o mínimo de intervenção humana.” (4)

O cerne da questão é “... promover o retorno da vida selvagem nativa.” Mas “nativa” com referência a que período da história? Idade Média, após a Revolução Industrial, atualidade? Ao tempo de um Portugal com 1 milhão de habitantes (Séc. XV a XVII), com 2 a 4 milhões de habitantes (Séc. XVIII a XIX), ou aos 10 milhões atuais?

É que a densidade populacional humana e, logo, as atividades a ela ligadas (agricultura, pastorícia, urbanização, redes de comunicações, indústria, etc.) condicionam de sobremaneira o território, logo a flora e a fauna, não sendo possível existirem no séc. XXI todas as espécies dos séculos anteriores, com particular destaque para as espécies de grandes dimensões e conflitualidade territorial com o Homem. O que não quer dizer que algumas espécies entretanto extintas não possam reaparecer (cf. Esquilo, Águia-imperial, etc.).

Uma das vantagens que tem sido apontada para a (re)introdução de grandes herbívoros é a sua capacidade de controlar a vegetação e, assim, diminuir o risco de incêndios rurais e florestais.

A herbivoria é conhecida e estudada há muito, e consiste na utilização na alimentação de animais de plantas vivas, ou partes de plantas, fazendo, assim, a produção primária subir na cadeia alimentar.

Os insetos são o grupo animal que mais contribui para a herbivoria que, em animais terrestres de quatro membros, se começou a desenvolveu no período carbonífero (há 307 - 299 milhões de anos) (5)

Mas a herbivoria também pode ter efeitos negativos sobre a natureza, nomeadamente sobre alguns grupos de plantas; os Javalis, por exemplo, praticam herbivoria (embora sejam omnívoros) e tem um predileção especial por bolbos de orquídeas, ranúnculos, narcisos e outras espécies selvagens, muitas delas um situação muito crítica do ponto de vista de conservação.

Também é preocupante em ambientes insulares, como se verificou na ilhas Desertas, levando ao abate, em 2019, das cabras descendentes das ali introduzidas, pensa-se que no séc. XV. (6).

Assim, há que ser muito cuidadoso na utilização destes conceitos, sob pena de resultados negativos.

Recentemente (13/03/2023) o jornal Público trazia um peça com o título “Castores – Descoberto o rasto perto de Portugal. Será que vão voltar?” e dentro do artigo uma peça intitulada “Análise do valor económico - O trabalho dos castores pode poupar “milhões de euros” onde se dá ênfase ao papel destes mamíferos na modelação de rios remetendo para um artigo de Daniel Veríssimo e Catarina Roseta-Palma, dois economistas e professores do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, publicado na revista Nature-Based Solutions, 3 (2023), intitulado, “Rewilding with the beaver in the iberian peninsula - Economic potential for river restoration”.

Perante o entusiasmo pela presença, perto de nós, desta espécie extinta em Portugal pelo séc. XV e na Península Ibérica no séc. XVII, até nos esquecemos que a sua presença atual em Espanha se deve a uma introdução clandestina feita em 2003, na Bacia do Ebro, e que na altura foi muito contestada por entidades oficiais e ambientalistas.

E esquecemos de ponderar se ainda há condições biogeográficas para a presença desta espécie em Portugal, sem entrar em conflito com a população humana e as suas atividades.

Também o Urso-pardo, cuja presença de um indivíduo "espanhol" divagante no Norte de Portugal foi confirmada em 2019, despertou os mesmos desejos de regresso, esquecendo, mais uma vez, que não temos áreas despovoadas suficientemente amplas (como têm a Galiza ou as Astúrias) para que este carnívoro (embora de dieta omnívora) possa viver sem conflitualidade. Trata-se, além do mais, de um animal muito perigoso, dada a sua atração por locais humanizados. Em Itália, por exemplo, já este ano houve vários casos de ataques mortais de ursos-prdos a pessoas, e nos Estados Unidos são correntes.

O mesmo se passa com algumas ideias, a meu ver absurdas, de reintrodução do Bisonte-europeu; no relatório “Current status of the European bison (Bison bonasus) and future prospects in Pan-Europe - A Large Herbivore Network project” da autoria de Yannick Exalto, publicado pelo Large Herbivore Network (LHNet) em 2011 a possibilidade de introdução do Bisonte em Portugal nem sequer é colocada.

Claro que, como amante da biodiversidade, gostaria de ver Ursos, Auroques, Bisontes e Castores nas paisagens lusas; mas diz-me o bom senso que isso se poderia virar contra a conservação da natureza, a exemplo do que se passa com o pacífico Lobo-ibérico cuja presença tem sido relativamente tolerada à custa do pagamento, pelo Estado, das reses que abate.

O lobo é uma espécie-chave dos nossos ecossistemas, como poderia ser o bisonte ou o castor, mas estes noutras latitudes mais setentrionais.

Por cá há inúmeras outras espécies de animais e plantas bem mais carecidas de medidas de conservação. Não usemos as espécies-chave como espécies-bandeira, se queremos conservar a biodiversidade no seu conjunto, embora as espécies-bandeira rendam mais nas campanhas de angariação de apoios.

Poucos contribuiriam para uma recolha de fundos destinada à conservação do pardal-dos-telhados, mas facilmente se recolherão apoios para reintroduzir o urso-pardo, que daria belas fotografias em anúncios comerciais.

Restaurar (rewilding) a natureza, claro que sim, mas sem fundamentalismos e com respeito pelo Homem!

3 de Maio de 2023

Nuno Gomes Oliveira

Fontes

(1) Soulé, Michael; Noss, Reed (Fall 1998), "Rewilding and Biodiversity: Complementary Goals for Continental Conservation", Wild Earth, 8: 19–28)

(2) Rewilding (conservation biology)

(3) Espécie-chave

(4) Não sabe o que é o Rewilding? Este artigo é para si

(5) Sahney, S., Benton, M.J. & Falcon-Lang, H.J. (2010). "Rainforest collapse triggered Pennsylvanian tetrapod diversification in Euramerica". Geology. 38 (12)

(6) Recuperação dos Habitats Terrestres das Ilhas Desertas e Selvagens

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